Por Guido Vassallo, no site Outras Palavras:
Falta de kits
Mas além do diagnóstico cínico de Trump, durante várias semanas faltou nos Estados Unidos um estoque suficiente de kits de exame para comprovar quem estaria infectado, o que significa que muitos casos potenciais podem ter passado desapercebidos. Os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgãos capitais da saúde pública do país, só permitiram inicialmente os testes nos seus próprios laboratórios.
Durante mais de um mês, cada Estado devia enviar, por correio, as amostras de possíveis contágios para a sede dos CDC em Atlanta, único lugar autorizado para realizar os exames. Foi apenas na semana passada que os 50 Estados do país começaram a contar com capacidade técnica para realizar os exames de forma autônoma.
Segundo cifras oficiais, até 10/3 só 79 laboratórios estatais ou do sistema de saúde pública tinham capacidade para fazer os testes, em um país de mais de 327 milhões de habitantes. Só com a circulação de recursos oriunda da declaração de emergência nacional é que se espera que os laboratórios privados consigam se habilitar para a tarefa.
O alto custo de ficar doente
Em teoria, os CDC oferecem o teste de coronavírus gratuitamente, sempre e quando um médico o prescreva. As grandes seguradoras [empresas de “planos de saúde”] afirmam que também não vão cobrar por esse serviço em alguns Estados. Mas a presumida gratuidade não é suficiente para esconder o restante das dificuldades.
Osmel Martinez Azcue contou ao Miami Herald como, ao voltar de uma viagem à China com sintomas de gripe, buscou um hospital em Miami para fazer o exame do coronavírus. O teste indicou que não era mais que uma gripe, mas, ao chegar em casa, uma fatura de 3.270 dólares o esperava. “Como se pode esperar que os cidadãos contribuam para reduzir o risco de contágio entre as pessoas se os hospitais vão nos cobrar mais de 3 mil dólares por um exame de sangue e um teste nasal?”, perguntava-se indignado esse jovem de origem cubana.
O caso de Shefali Luthra, membro da Kaiser Family Foundation, não chegou a ser doloroso, mas também expõe o fracasso do sistema e a sua falta de coordenação. Três dias após retornar de uma conferência em Nova Orleans, ela foi avisada que pelo menos um dos participantes da reunião tinha testado positivo para o coronavírus. “Como jornalistas e divulgadores da medicina estamos em teoria bem equipados para saber o que acontece. Mas na vida real, descobrir se estamos em risco e, depois, fazermos o exame é quase impossível. Tanto o acesso ao médico quanto aos exames variam dramaticamente, dependendo do lugar onde alguém vive e quem ele é, e não está claro quais seriam os parâmetros”.
O que mais chamou a atenção de Luthra foi uma evidente discriminação. O deputado republicano Matt Gaetz foi o único desse grupo de trabalho que conseguiu ser examinado. “Inicialmente, eu não tinha os sintomas, mas decidi que deveria tentar fazer o exame, como Gaetz. Além disso, Trump prometeu que os exames estariam disponíveis para qualquer um que precisasse”, observa Luthra, com uma sutil inflexão de ironia. “Até hoje, mesmo possuindo um excelente plano de saúde, não pude ter acesso ao tão desejado exame”.
A crise do coronavírus também traz à luz a fragilidade do sistema laboral norte-americano. Os CDC recomendam a todos os americanos que fiquem em casa se estiverem doentes. Mas como poderiam fazer isso, se em muitos casos isso significa automaticamente deixar de ser remunerado? À diferença do que acontece na maior parte dos países industrializados, nos Estados Unidos não há nenhuma lei federal que obrigue as empresas a pagar licença por doença aos seus trabalhadores.
Sherry Leiwant, copresidente da organização A Better Balance, que faz campanha por uma maior proteção nos locais de trabalho, comenta: “Uma boa quantidade de pesquisas demonstra que o contágio pode ser contido com a licença de saúde paga”. Mas acrescenta que os trabalhadores preferem “não ficar em casa em isolamento se isso significa colocar em risco seu emprego”. Segundo recente levantamento da firma YouGov, quase a metade dos trabalhadores admitiram que no ano passado compareceram doentes aos seus locais de trabalho.
Pela primeira vez na história e movido pela urgência da situação, o Congresso norte-americano está abordando o problema. O projeto de lei aprovado na última sexta-feira prevê “10 dias de licença por doença e 12 semanas de licença paga para aqueles que estiverem doentes com o covid-19 ou cuidando de um familiar próximo em quarentena ou afetado pelo fechamento das escolas”, detalha Leiwant. Mas a medida, que agora passará pelo Senado, exime dessa responsabilidade as grandes empresas do país. Mais uma vez, os maiores favorecidos serão os mais poderosos.
“É uma gripe”, dizia Donald Trump sobre o coronavírus há menos de um mês, com essa tão própria mistura de ignorância e arrogância que lhe é característica. Desde essa singela definição até o presente momento ocorreram mais de mil mortes, 70 mil contágios e uma declaração de emergência nacional nos Estados Unidos. A propagação da pandemia exibe, como poucas vezes, os notáveis fracassos do sistema de saúde norte-americano: boa parte da população não tem seguro médico e não existe, em muitos Estados da federação, a licença de saúde no trabalho.
Para completar, as dificuldades ficaram evidentes no momento de implementar os primeiros testes de coronavírus no âmbito público. Ainda que a declaração de emergência nacional pretenda estender sua aplicação aos laboratórios privados, não está claro ainda quantos norte-americanos poderiam fazer frente aos custos. Enquanto isso, os pré-candidatos democratas à presidência, Bernie Sanders e Joe Biden, buscam capitalizar os erros de Trump e de sua gestão, como plataforma para apresentar seus programas de saúde.
Nas suas primeiras aparições públicas após os primeiros casos de coronavírus no país, Trump mostrou-se cético e subestimou o alcance real da crise. O presidente, no máximo, deixou de pensar que o coronavírus era um problema exclusivamente chinês (chamou-o de “um vírus estrangeiro”) para passar a desconsiderá-lo como uma armação do partido democrata.
No dia 11/3, quando já choviam as queixas a respeito da condução do governo na gestão da pandemia, Trump declarou intempestivamente a suspensão da entrada no país dos estrangeiros que tivessem passado por algum dos 26 países europeus do espaço Schengen. O anúncio da emergência nacional chegou no momento de encerramento de una semana particularmente difícil para a bolsa norte-americana. Ainda que em 13/3 tenha registrado uma sutil recuperação, os principais índices sinalizaram a pior queda desde a crise financeira de 2008. E essa, sim, parece ser a maior preocupação do mandatário norte-americano.
A saúde em estado crítico
Basta um elemento para alimentar a hipótese pessimista (mas realista) de que o coronavírus vai continuar se expandindo no país: a inexistência de um sistema público de saúde consolidado e abrangente.
Em um artigo interessante publicado em The Guardian, o ex-secretário [“ministro”] do Trabalho durante o governo Clinton, Robert Reich, afirma que: “Em lugar de um sistema de saúde público, temos um sistema privado com fins de lucro, para as pessoas que têm a sorte de pagá-lo, e um sistema de seguro social desarranjado, para as pessoas que ainda têm a sorte de possuírem um trabalho em tempo integral”.
Na atualidade, 30 milhões de pessoas não possuem seguro médico, e outros 40 milhões só têm acesso a planos deficientes, com a exigência de pagamentos complementares e seguros com custos de tal forma elevados que só podem ser utilizados em situações de extrema gravidade, de acordo com a Kaiser Family Foundation, uma organização dedicada a pesquisar questões de saúde pública. O medo das pessoas de não poder pagar as caríssimas consultas e tratamentos conspira para impedir que os contágios pelo coronavírus sejam detectados e que, assim, a doença continue se propagando.
Diante desse contexto, ressurgiram no cenário político os programas de saúde dos pré-candidatos democratas Bernie Sanders e Joe Biden. O Medicare For All, proposto por Sanders, é a base da sua plataforma progressista. Esse projeto deixaria intacta a infraestrutura atual de médicos, hospitais e outros provedores de atenção médica, mas nacionalizaria a indústria dos seguros de saúde. Quase todo o dinheiro que as pessoas e os empregadores pagam atualmente através das seguradoras, assim como grande parte do dinheiro que os Estados pagam, de acordo com o projeto de Sanders, passaria a ser pago pelo governo federal.
O programa de Biden, por outro lado, é menos ambicioso. Não tocaria no atual Medicare, bem como nos planos das seguradoras privadas, que oferecem os chamados Medicare Advantage, mas daria aos americanos mais jovens a opção de se inscreverem em uma nova apólice administrada pelo governo. O foco é colocado na juventude, à diferença de Sanders, que acredita que a prioridade são as pessoas de terceira idade. Não é casual que se trate, este, do grupo etário mais castigado pelo coronavírus.
Nas suas primeiras aparições públicas após os primeiros casos de coronavírus no país, Trump mostrou-se cético e subestimou o alcance real da crise. O presidente, no máximo, deixou de pensar que o coronavírus era um problema exclusivamente chinês (chamou-o de “um vírus estrangeiro”) para passar a desconsiderá-lo como uma armação do partido democrata.
No dia 11/3, quando já choviam as queixas a respeito da condução do governo na gestão da pandemia, Trump declarou intempestivamente a suspensão da entrada no país dos estrangeiros que tivessem passado por algum dos 26 países europeus do espaço Schengen. O anúncio da emergência nacional chegou no momento de encerramento de una semana particularmente difícil para a bolsa norte-americana. Ainda que em 13/3 tenha registrado uma sutil recuperação, os principais índices sinalizaram a pior queda desde a crise financeira de 2008. E essa, sim, parece ser a maior preocupação do mandatário norte-americano.
A saúde em estado crítico
Basta um elemento para alimentar a hipótese pessimista (mas realista) de que o coronavírus vai continuar se expandindo no país: a inexistência de um sistema público de saúde consolidado e abrangente.
Em um artigo interessante publicado em The Guardian, o ex-secretário [“ministro”] do Trabalho durante o governo Clinton, Robert Reich, afirma que: “Em lugar de um sistema de saúde público, temos um sistema privado com fins de lucro, para as pessoas que têm a sorte de pagá-lo, e um sistema de seguro social desarranjado, para as pessoas que ainda têm a sorte de possuírem um trabalho em tempo integral”.
Na atualidade, 30 milhões de pessoas não possuem seguro médico, e outros 40 milhões só têm acesso a planos deficientes, com a exigência de pagamentos complementares e seguros com custos de tal forma elevados que só podem ser utilizados em situações de extrema gravidade, de acordo com a Kaiser Family Foundation, uma organização dedicada a pesquisar questões de saúde pública. O medo das pessoas de não poder pagar as caríssimas consultas e tratamentos conspira para impedir que os contágios pelo coronavírus sejam detectados e que, assim, a doença continue se propagando.
Diante desse contexto, ressurgiram no cenário político os programas de saúde dos pré-candidatos democratas Bernie Sanders e Joe Biden. O Medicare For All, proposto por Sanders, é a base da sua plataforma progressista. Esse projeto deixaria intacta a infraestrutura atual de médicos, hospitais e outros provedores de atenção médica, mas nacionalizaria a indústria dos seguros de saúde. Quase todo o dinheiro que as pessoas e os empregadores pagam atualmente através das seguradoras, assim como grande parte do dinheiro que os Estados pagam, de acordo com o projeto de Sanders, passaria a ser pago pelo governo federal.
O programa de Biden, por outro lado, é menos ambicioso. Não tocaria no atual Medicare, bem como nos planos das seguradoras privadas, que oferecem os chamados Medicare Advantage, mas daria aos americanos mais jovens a opção de se inscreverem em uma nova apólice administrada pelo governo. O foco é colocado na juventude, à diferença de Sanders, que acredita que a prioridade são as pessoas de terceira idade. Não é casual que se trate, este, do grupo etário mais castigado pelo coronavírus.
Falta de kits
Mas além do diagnóstico cínico de Trump, durante várias semanas faltou nos Estados Unidos um estoque suficiente de kits de exame para comprovar quem estaria infectado, o que significa que muitos casos potenciais podem ter passado desapercebidos. Os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgãos capitais da saúde pública do país, só permitiram inicialmente os testes nos seus próprios laboratórios.
Durante mais de um mês, cada Estado devia enviar, por correio, as amostras de possíveis contágios para a sede dos CDC em Atlanta, único lugar autorizado para realizar os exames. Foi apenas na semana passada que os 50 Estados do país começaram a contar com capacidade técnica para realizar os exames de forma autônoma.
Segundo cifras oficiais, até 10/3 só 79 laboratórios estatais ou do sistema de saúde pública tinham capacidade para fazer os testes, em um país de mais de 327 milhões de habitantes. Só com a circulação de recursos oriunda da declaração de emergência nacional é que se espera que os laboratórios privados consigam se habilitar para a tarefa.
O alto custo de ficar doente
Em teoria, os CDC oferecem o teste de coronavírus gratuitamente, sempre e quando um médico o prescreva. As grandes seguradoras [empresas de “planos de saúde”] afirmam que também não vão cobrar por esse serviço em alguns Estados. Mas a presumida gratuidade não é suficiente para esconder o restante das dificuldades.
Osmel Martinez Azcue contou ao Miami Herald como, ao voltar de uma viagem à China com sintomas de gripe, buscou um hospital em Miami para fazer o exame do coronavírus. O teste indicou que não era mais que uma gripe, mas, ao chegar em casa, uma fatura de 3.270 dólares o esperava. “Como se pode esperar que os cidadãos contribuam para reduzir o risco de contágio entre as pessoas se os hospitais vão nos cobrar mais de 3 mil dólares por um exame de sangue e um teste nasal?”, perguntava-se indignado esse jovem de origem cubana.
O caso de Shefali Luthra, membro da Kaiser Family Foundation, não chegou a ser doloroso, mas também expõe o fracasso do sistema e a sua falta de coordenação. Três dias após retornar de uma conferência em Nova Orleans, ela foi avisada que pelo menos um dos participantes da reunião tinha testado positivo para o coronavírus. “Como jornalistas e divulgadores da medicina estamos em teoria bem equipados para saber o que acontece. Mas na vida real, descobrir se estamos em risco e, depois, fazermos o exame é quase impossível. Tanto o acesso ao médico quanto aos exames variam dramaticamente, dependendo do lugar onde alguém vive e quem ele é, e não está claro quais seriam os parâmetros”.
O que mais chamou a atenção de Luthra foi uma evidente discriminação. O deputado republicano Matt Gaetz foi o único desse grupo de trabalho que conseguiu ser examinado. “Inicialmente, eu não tinha os sintomas, mas decidi que deveria tentar fazer o exame, como Gaetz. Além disso, Trump prometeu que os exames estariam disponíveis para qualquer um que precisasse”, observa Luthra, com uma sutil inflexão de ironia. “Até hoje, mesmo possuindo um excelente plano de saúde, não pude ter acesso ao tão desejado exame”.
A crise do coronavírus também traz à luz a fragilidade do sistema laboral norte-americano. Os CDC recomendam a todos os americanos que fiquem em casa se estiverem doentes. Mas como poderiam fazer isso, se em muitos casos isso significa automaticamente deixar de ser remunerado? À diferença do que acontece na maior parte dos países industrializados, nos Estados Unidos não há nenhuma lei federal que obrigue as empresas a pagar licença por doença aos seus trabalhadores.
Sherry Leiwant, copresidente da organização A Better Balance, que faz campanha por uma maior proteção nos locais de trabalho, comenta: “Uma boa quantidade de pesquisas demonstra que o contágio pode ser contido com a licença de saúde paga”. Mas acrescenta que os trabalhadores preferem “não ficar em casa em isolamento se isso significa colocar em risco seu emprego”. Segundo recente levantamento da firma YouGov, quase a metade dos trabalhadores admitiram que no ano passado compareceram doentes aos seus locais de trabalho.
Pela primeira vez na história e movido pela urgência da situação, o Congresso norte-americano está abordando o problema. O projeto de lei aprovado na última sexta-feira prevê “10 dias de licença por doença e 12 semanas de licença paga para aqueles que estiverem doentes com o covid-19 ou cuidando de um familiar próximo em quarentena ou afetado pelo fechamento das escolas”, detalha Leiwant. Mas a medida, que agora passará pelo Senado, exime dessa responsabilidade as grandes empresas do país. Mais uma vez, os maiores favorecidos serão os mais poderosos.
* Publicado originalmente no jornal argentino Página 12.Tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel.
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