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Concordo em boa medida com o artigo de Vladimir Safatle, intitulado “A única saída é o impeachment”, veiculado no último dia 20 na edição brasileira do jornal El País. Sim, ele tem razão: devemos colocar na ordem do dia o impeachment de Jair Bolsonaro. Sim, o impeachment teria um valor civilizatório, sinalizando importante ganho de qualidade no processo de maturação da consciência política do povo brasileiro. Sim, a questão central do impeachment não é tanto “quem assume”, mas o fato de que Bolsonaro não apresenta condições mínimas para exercer a chefia do Estado brasileiro. E sim, quem quer que venha a assumir não conseguirá evadir-se do fato de que seu mandato estará indelevelmente marcado não por um “vício”, mas por uma “virtude de origem”: ser fruto de um ascenso democrático e de uma vitória do povo — situação que, aliás, já condicionou governos da chamada Nova República.
No entanto, e já que se trata de, como diz o próprio Safatle, debater “as estratégias da oposição neste momento”, sinto-me tentado a apontar em seu raciocínio aquilo que, a meu ver, não contribui para esse propósito. Refiro-me, em especial, aos elementos que percebo como sobrevivências escolásticas em seu pensamento. Elas assumem a forma de raciocínios esquemáticos e antidialéticos, incapazes de servir a uma compreensão vivificada do processo político. Ocorre que a realidade não é uma cômoda perfumada, com gavetas arrumadas e providencialmente separadas umas das outras. O cartesianismo às vezes dificulta o entendimento do processo político, sempre mais rico, vivo e dinâmico do que muitas vezes supõem nossas vãs filosofias. Desconsiderar esse fato pode conduzir a revezes na jornada transformadora.
É o que acontece quando insistimos em enxergar contradições onde elas teimam em não existir. Na visão de Safatle, seria “delírio” seguir na luta por “políticas de proteção social” sob o governo Bolsonaro. Só o impeachment representaria verdadeira saída. Do ponto de vista tático, essa visão é equivocada. Não há incompatibilidade entre lutar pelo impeachment de Bolsonaro e pugnar, ao mesmo tempo, por “políticas de proteção social” ou mesmo, em sentido mais amplo, por uma verdadeira política de desenvolvimento nacional, democrático e inclusivo. Não é porque lutamos pelo fim do governo Bolsonaro que vamos cruzar os braços nas lutas concretas do dia a dia. Enxergar as coisas dessa forma seria romper os nexos entre o geral e o específico.
No entanto, e já que se trata de, como diz o próprio Safatle, debater “as estratégias da oposição neste momento”, sinto-me tentado a apontar em seu raciocínio aquilo que, a meu ver, não contribui para esse propósito. Refiro-me, em especial, aos elementos que percebo como sobrevivências escolásticas em seu pensamento. Elas assumem a forma de raciocínios esquemáticos e antidialéticos, incapazes de servir a uma compreensão vivificada do processo político. Ocorre que a realidade não é uma cômoda perfumada, com gavetas arrumadas e providencialmente separadas umas das outras. O cartesianismo às vezes dificulta o entendimento do processo político, sempre mais rico, vivo e dinâmico do que muitas vezes supõem nossas vãs filosofias. Desconsiderar esse fato pode conduzir a revezes na jornada transformadora.
É o que acontece quando insistimos em enxergar contradições onde elas teimam em não existir. Na visão de Safatle, seria “delírio” seguir na luta por “políticas de proteção social” sob o governo Bolsonaro. Só o impeachment representaria verdadeira saída. Do ponto de vista tático, essa visão é equivocada. Não há incompatibilidade entre lutar pelo impeachment de Bolsonaro e pugnar, ao mesmo tempo, por “políticas de proteção social” ou mesmo, em sentido mais amplo, por uma verdadeira política de desenvolvimento nacional, democrático e inclusivo. Não é porque lutamos pelo fim do governo Bolsonaro que vamos cruzar os braços nas lutas concretas do dia a dia. Enxergar as coisas dessa forma seria romper os nexos entre o geral e o específico.
Papel do Estado
As lutas pela retomada dos investimentos e do papel indutor do Estado; contra os cortes de verbas para a educação e pelo cumprimento imediato do disposto no PNE; pela restauração dos quantitativos de bolsas de pesquisa (e pelo aumento do valor das bolsas); pela estrita observância dos dispositivos legais de proteção do meio ambiente; pelo resgate do programa Mais Médicos, dentre muitas outras, nada disso é para depois do governo Bolsonaro. Mesmo na atual situação de defensiva do movimento popular, muitas dessas lutas podem resultar — e têm resultado — em vitórias concretas, ainda que limitadas e parciais. Essas conquistas alimentam a luta do povo e, à medida que contribuem para a acumulação de forças, jogam água no moinho do impeachment. Em outras palavras, a batalha contra o nazi-liberalismo galopante dá-se em múltiplas frentes, de múltiplas formas. Ela está longe de se restringir a uma palavra de ordem única, por mais importante que se torne a certa altura da batalha. Só alguém alheio à luta política real não percebe isso.
A questão que aqui se coloca, no final das contas, nem é propriamente a do rumo. Nesse plano já se vai forjando, progressivamente, uma unidade que promete ir além da esquerda, fundamentada na ideia de que, com Bolsonaro, perde a imensa maioria da nação. Nem mesmo se trata de perguntar se essa unidade ocorrerá algum dia, pois ela já amadurece diante de nossos olhos — desde que estejam abertos, claro. No entanto, o que principalmente aqui se debate são as veredas concretas da luta democrática. E já aqui nos vemos ante a segunda das antinomias metafísicas incensadas por Safatle. Segundo ele, “a esquerda brasileira já demonstrou […] estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos”. Pois devo confessar: está aqui mais um que não viu a tal “contradição”. Onde está mesmo ela? Estaria Safatle sugerindo que, onde há autoritarismo e golpe, não pode haver eleições?
Não é o que se passou, para citar um exemplo, na Itália de primórdios do século 1920. Ao contrário do que muitos pensam, a autocracia fascista não se precipitou como um raio num céu azul. Avançou sorrateiramente, ao longo de meses e anos, por entre as frestas abertas pela falência do regime liberal. Quando da nomeação de Mussolini como premier, após a Marcha sobre Roma (1922), o Partido Nacional Fascista (PNF) não tinha ainda maioria no Parlamento. Isso só iria acontecer nas eleições de abril de 1924, marcadas por um clima de intimidação contra sindicatos e organizações de esquerda.
As lutas pela retomada dos investimentos e do papel indutor do Estado; contra os cortes de verbas para a educação e pelo cumprimento imediato do disposto no PNE; pela restauração dos quantitativos de bolsas de pesquisa (e pelo aumento do valor das bolsas); pela estrita observância dos dispositivos legais de proteção do meio ambiente; pelo resgate do programa Mais Médicos, dentre muitas outras, nada disso é para depois do governo Bolsonaro. Mesmo na atual situação de defensiva do movimento popular, muitas dessas lutas podem resultar — e têm resultado — em vitórias concretas, ainda que limitadas e parciais. Essas conquistas alimentam a luta do povo e, à medida que contribuem para a acumulação de forças, jogam água no moinho do impeachment. Em outras palavras, a batalha contra o nazi-liberalismo galopante dá-se em múltiplas frentes, de múltiplas formas. Ela está longe de se restringir a uma palavra de ordem única, por mais importante que se torne a certa altura da batalha. Só alguém alheio à luta política real não percebe isso.
A questão que aqui se coloca, no final das contas, nem é propriamente a do rumo. Nesse plano já se vai forjando, progressivamente, uma unidade que promete ir além da esquerda, fundamentada na ideia de que, com Bolsonaro, perde a imensa maioria da nação. Nem mesmo se trata de perguntar se essa unidade ocorrerá algum dia, pois ela já amadurece diante de nossos olhos — desde que estejam abertos, claro. No entanto, o que principalmente aqui se debate são as veredas concretas da luta democrática. E já aqui nos vemos ante a segunda das antinomias metafísicas incensadas por Safatle. Segundo ele, “a esquerda brasileira já demonstrou […] estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos”. Pois devo confessar: está aqui mais um que não viu a tal “contradição”. Onde está mesmo ela? Estaria Safatle sugerindo que, onde há autoritarismo e golpe, não pode haver eleições?
Não é o que se passou, para citar um exemplo, na Itália de primórdios do século 1920. Ao contrário do que muitos pensam, a autocracia fascista não se precipitou como um raio num céu azul. Avançou sorrateiramente, ao longo de meses e anos, por entre as frestas abertas pela falência do regime liberal. Quando da nomeação de Mussolini como premier, após a Marcha sobre Roma (1922), o Partido Nacional Fascista (PNF) não tinha ainda maioria no Parlamento. Isso só iria acontecer nas eleições de abril de 1924, marcadas por um clima de intimidação contra sindicatos e organizações de esquerda.
Democracia
A verdade é que a democracia não é um interruptor, que se pode simplesmente ligar ou desligar. Ela é um processo, que avança ou regride, floresce ou definha, e isso depende da iniciativa e do tirocínio dos atores envolvidos. No Brasil de nossos dias, não apenas as forças progressistas precisam se “preparar rapidamente para as próximas eleições”. Mais do que isso, e como parte desse processo, elas precisam lutar para que as eleições realmente aconteçam, porque nem isso está garantido.
Ademais, embora Safatle não pareça dar-se conta disso, pensar que quando existe golpe não pode existir “preparação para as eleições”, e vice-versa, equivale a “fetichizar” a democracia burguesa. Em 2018 tivemos eleições, mas… tanto será bastante para pensar que vivíamos a plenitude da vida democrática? Podemos realmente nos referir às eleições de 2018 como democráticas e “limpas”? Ter combatido no certame eleitoral daquele ano nos impede de perceber que o ovo de serpente do autoritarismo, chocado pelo menos desde 2016, já ali dava seus frutos?
Para atuar com descortino na conjuntura atual, é necessário que se compreendam as particularidades do autoritarismo contemporâneo. Não vivemos um simples retorno ao fascismo clássico. Presenciamos, para além disso, a emergência de modalidades autocráticas inéditas — que muitos têm descrito com o recurso ao termo neofascismo. Há contraste e semelhanças com o século 20.
Em tempos de pandemia, não será descabido recorrer a uma metáfora biológica para pensar o fenômeno. Assim como ocorre com o corpo humano, que, invadido por um vírus, cria resistências que serão ativadas nas invasões subsequentes, também o corpo social tem suas defesas contra experiências que se revelaram catastróficas. Por isso o vírus do autoritarismo se vê obrigado a reformulações e mutações em face do crescimento da resistência. É assim que as tendências autocráticas do século 21 apresentam-se com traços qualitativamente distintos. Não seria produtivo paramentar-se com a mesma roupagem e insistir nas mesmas estratégias. Lembremos que o ex-secretário Roberto Alvim não caiu pelas ideias que defende, mas por ter resgatado um modo de apresentação démodé do qual a direita autoritária tenta hoje se livrar.
Autoritarismo
Na tentativa de descrever a peculiaridade do autoritarismo pós-moderno, a antropóloga Lilia Schwarcz propõe o termo democraduras (1) - regimes autoritários que comportam o respeito formal a certos expedientes de nossa limitada vida democrática. Se o fenômeno existe, é porque as formas de hegemonia e dominação política são hoje mais maciças e complexas. Já nos anos 1970 Raymond Williams (2) teorizava que as novas dominâncias do capitalismo avançado habilitam-se a cobrir áreas mais vastas da experiência, tendência facilitada por mudanças no ordenamento político e no sistema da comunicação social. Sistemas de ideias e práticas até então mais “reservados” passam a ser interpelados. A ordem dominante penetra o processo social e cultural de forma significativamente maior, tornando possível o avanço do autoritarismo mesmo com a preservação de uma democracia de fachada. Esse fato, aliás, também mostra o quanto nossas instituições são limitadas em prover uma experiência democrática mais profunda e autêntica.
Mas isso não significa que, por limitadas que sejam, devamos abandonar as instituições à própria sorte. Na verdade, o neofascismo até aplaudiria essa atitude. E é nesse ponto que nos deparamos com mais uma falsa dicotomia que parece estruturar o pensamento de Safatle: a que insiste na oposição entre a luta “autônoma” e espontânea das massas, de um lado, e as organizações políticas - movimentos, entidades, sindicatos, partidos -, de outro. “Em um campo comum”, diz o filósofo da USP, “baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva”.
Longe de mim sugerir que alguém precisa da autorização de partidos e lideranças políticas para dar vazão à sua militância. Entretanto pudemos ver, em junho de 2013, aonde a “ausência de hierarquia” e a “autonomia de ação e decisão” nos conduziram. Naquele momento entraram com força na vida política nacional ideias contrárias aos partidos e à própria política, vista em si mesma como “suja” e “ilegítima”. Havia nas tendências autonomistas certa ojeriza à ideia de mediação: não apenas aquela que se realiza no campo eleitoral-parlamentar, mas também a ação mediadora realizada por partidos, sindicatos e demais entidades de representação. Elas são vistas como “intrusas” que tentam, de maneira capciosa, apropriar-se do movimento, subvertendo sua lógica. Algumas dessas ideias impulsionaram tendências à fragmentação da representação e se tornaram ingredientes da crise política que ainda hoje vivenciamos, e resvala em dificuldades até mesmo para a formação de uma ampla frente contra Bolsonaro.
Na tentativa de descrever a peculiaridade do autoritarismo pós-moderno, a antropóloga Lilia Schwarcz propõe o termo democraduras (1) - regimes autoritários que comportam o respeito formal a certos expedientes de nossa limitada vida democrática. Se o fenômeno existe, é porque as formas de hegemonia e dominação política são hoje mais maciças e complexas. Já nos anos 1970 Raymond Williams (2) teorizava que as novas dominâncias do capitalismo avançado habilitam-se a cobrir áreas mais vastas da experiência, tendência facilitada por mudanças no ordenamento político e no sistema da comunicação social. Sistemas de ideias e práticas até então mais “reservados” passam a ser interpelados. A ordem dominante penetra o processo social e cultural de forma significativamente maior, tornando possível o avanço do autoritarismo mesmo com a preservação de uma democracia de fachada. Esse fato, aliás, também mostra o quanto nossas instituições são limitadas em prover uma experiência democrática mais profunda e autêntica.
Mas isso não significa que, por limitadas que sejam, devamos abandonar as instituições à própria sorte. Na verdade, o neofascismo até aplaudiria essa atitude. E é nesse ponto que nos deparamos com mais uma falsa dicotomia que parece estruturar o pensamento de Safatle: a que insiste na oposição entre a luta “autônoma” e espontânea das massas, de um lado, e as organizações políticas - movimentos, entidades, sindicatos, partidos -, de outro. “Em um campo comum”, diz o filósofo da USP, “baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva”.
Longe de mim sugerir que alguém precisa da autorização de partidos e lideranças políticas para dar vazão à sua militância. Entretanto pudemos ver, em junho de 2013, aonde a “ausência de hierarquia” e a “autonomia de ação e decisão” nos conduziram. Naquele momento entraram com força na vida política nacional ideias contrárias aos partidos e à própria política, vista em si mesma como “suja” e “ilegítima”. Havia nas tendências autonomistas certa ojeriza à ideia de mediação: não apenas aquela que se realiza no campo eleitoral-parlamentar, mas também a ação mediadora realizada por partidos, sindicatos e demais entidades de representação. Elas são vistas como “intrusas” que tentam, de maneira capciosa, apropriar-se do movimento, subvertendo sua lógica. Algumas dessas ideias impulsionaram tendências à fragmentação da representação e se tornaram ingredientes da crise política que ainda hoje vivenciamos, e resvala em dificuldades até mesmo para a formação de uma ampla frente contra Bolsonaro.
Dialética
A maneira de assim conceber as questões da representação política deriva, em grande medida, da peculiar dialética - ou da falta dela - entre indivíduo e coletivo revelada nas manifestações de 2013. Ela remete às obras de Antônio Negri e Michael Hardt, autores que postulam o advento de uma nova forma de organização política, pluralista e “horizontal”, a qual não busca constituir-se como coletivo homogêneo, hierarquizado e programático (3). Esse tipo de manifestação recusa os canais políticos convencionais em nome da criação de relações simétricas, plenamente “democráticas”.
Junho de 2013 seguiu um modelo de mobilização que tem por base indivíduos conscientes, “autônomos” e “protagonistas”. Nesse ambiente avesso a partidos, sindicatos e demais entidades de representação, a crítica das mediações políticas abriu caminho a um discurso protofascista. Nesse contexto, muitos manifestantes se tornaram presa fácil do discurso contra a política e os partidos e outras organizações, embora essa aversão ainda se apresentasse naquele momento com tinturas anarcoides (4).
Refração a partidos e lideranças, e consequente fragmentação da representação; dispersão e atomização de demandas e focos de poder; formação de nichos de interesse setorizados e, mesmo, individualizados, contando com a facilitação dos novos avatares digitais. Tudo isso ajudou a determinar o desfecho de 2013. O ocaso do movimento é prova viva de que, sem orientação política consequente, a rebeldia das massas nem sempre encontra uma saída progressista. Ficou patente, ali, a força do sistema em canalizar os legítimos anseios das massas para o caminho estéril da revolta cega, que pode facilmente servir a propósitos inconfessáveis.
Movimento secundarista
A verdade é que horizontalidades e verticalidades não são coordenadas incompatíveis entre si. É o que mostrou o movimento secundarista em 2018, durante o período de ocupações de escolas contra a reforma do ensino médio do governo Temer. Naquela oportunidade, a combinação de estruturas horizontalizadas, comando unificado e clareza programática inauguraram uma forma inédita de combate político. As ocupações conseguiram pautar junto à população a necessidade de uma formação humanista e cidadã. Representaram, para o governo Temer, um primeiro desafio.
Na oposição metafísica, e em larga medida demagógica, entre “horizontalidade” e “verticalidade” - como se uma dispensasse a outra -, reside o calcanhar de aquiles de muitos movimentos críticos e iconoclastas que pontificaram na história recente, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Sem uma orientação política clara e consequente, esses movimentos comportam-se como autênticos “meteoros”: brilham intensamente, mas de forma efêmera, sucumbindo rapidamente às forças do status quo. Nesse sentido, ao contrário do que afirma Safatle, se há uma coisa que o autonomismo não revelou ao longo dos últimos anos foi “sabedoria estratégica”.
Evidentemente, ele tem razão quando sugere que muito do problema da clivagem entre partidos, de um lado, e massas empoderadas, de outro, é decorrência das próprias engrenagens das organizações políticas, em particular partidos e sindicatos, incapazes de acompanhar o dinamismo de atores, coletivos, formações culturais, espaços abertos de debate e mobilização e demais articulações da sociedade civil. Dinamismo, aliás, amplificado com os novos dispositivos sociotécnicos que tornaram ainda mais complexas e multifacetadas as ambiências civis.
No entanto, é forçoso reconhecer que, se em instituições como partidos e sindicatos reside hoje o problema, é também ali que está a solução. Se por um lado não podemos absolutizar o papel das lideranças e organizações políticas, por outro não podemos subestimá-las. É verdade que, na luta política e cultural, novos sentidos estão o tempo todo em estado de emergência, e estruturas mais institucionalizadas e menos flexíveis podem ter pouco a dizer sobre isso. Mas quem habita o cotidiano da luta do povo, a bordo dessas estruturas ou fora delas, merece todo crédito e confiança.
Panelaços
Aqui vale lembrar, aliás, que a luta pelo impeachment do governo miliciano não começou com os panelaços. Por exuberante e inovadora que seja essa experiência, ela já estava em ebulição em cada luta em defesa da educação, da saúde, do salário, da moradia, do meio ambiente; em cada ação de parlamentares como a vereadora Marielle Franco; em cada manifestação contra o racismo, o machismo e os demais preconceitos tão bem representados no atual governo. A luta pelo impeachment está em curso no dia a dia, através das mil e uma formas de gritar Fora Bolsonaro!. Para o sucesso dessa luta, “vamos precisar de todo mundo”: atores individualizados, lideranças, movimentos, entidades, sindicatos, personalidades, partidos políticos.
É preciso retomar, neste momento, uma das mais importantes lições das experiências revolucionárias do século 20: sem liderança consequente nenhuma luta é bem sucedida. Afinal, a teoria não brota espontaneamente das massas, e “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário” (5). O papel de intelectuais e lideranças políticas é, nesse sentido, decisivo. Nessa perspectiva, qualquer discurso que, em nome do idílio das “massas autônomas”, estimule preconceitos para com líderes e organizações políticas inevitavelmente levará água ao moinho da reação. A propósito, surpreende que Safatle insista no endeusamento do autonomismo quando os próprios Negri e Hardt já ensaiaram autocrítica, ainda que tímida, sobre esse discurso (6).
Estou convencido de que muitas das agruras que hoje vivenciamos são fruto do abandono do marxismo por largos contingentes da esquerda brasileira. Como no início do século 20, ele foi substituído pelas “tendências filosóficas da moda, que surgem com tanta frequência nos países europeus” (7). Muitas delas não fazem mais do que reverberar modalidades de liberalismo crítico - boas para reformas nos marcos do sistema, mas impotentes para transformações de fundo. O problema não está apenas em que, com isso, teses como a da necessidade da organização revolucionária são substituídas por um espinozismo abstrato - com o perdão da redundância.
O problema reside, antes, no próprio abandono da dialética revolucionária, que é onde reside a riqueza maior do marxismo — sua visão de totalidade, de que as coisas não podem ser separadas em gavetinhas estanques, de que é necessário atentar às conexões e transições entre polos aparentemente incompatíveis, mas na verdade intercambiáveis. Uma visão de “interdependência e ligação estreita, indissolúvel, de todos os aspectos de cada fenômeno […], ligação que mostra um processo único universal do movimento” (8). A luta do povo não pode prosperar quando se substitui essa riqueza de pensamento pela metafísica política que separa o povo das organizações (e da organização), as lutas gerais das específicas, as tarefas de curto prazo das de longo prazo. Pois, se alguém concebe apenas um desses polos, digamos, o curto prazo, restringe-se a um pragmatismo vulgar. Porém, no extremo oposto, se pensa apenas no longo prazo, nos grandes momentos da ação política transformadora, sujeita-se a derrotas reais e, portanto, paradoxalmente, a um afastamento dessa perspectiva. É o que explica Gramsci (9) ao comentar o tema que define como “a tendência a diminuir o adversário”:
É por si mesma um atestado da inferioridade de quem se deixa possuir por ela. Tende-se de fato a diminuir raivosamente o adversário para poder crer que se será seguramente vitorioso. […] Crê-se na “vontade de crer” como condição da vitória, o que não seria errado se não fosse concebido mecanicamente e não se tornasse um autoengano (quando contém uma indevida confusão entre massa e líderes e rebaixa a função do líder ao nível do mais recuado e incôndito recruta: no momento da ação o líder pode permitir-se infundir nos recrutas a persuasão de que o adversário será certamente vencido, mas ele mesmo deve manter um juízo exato e calcular todas as possibilidades, até as mais pessimistas). Um elemento dessa tendência é de natureza opiácea: é realmente próprio dos fracos abandonar-se à fantasia, sonhar de olhos abertos que os próprios desejos são a realidade, que tudo se desenvolve segundo os próprios desejos. […] Mas a luta permanece sonhada e vencida em sonho. Outro aspecto dessa tendência é aquele de ver as coisas de maneira pictórica, em seus momentos mais épicos. Na realidade, de onde quer que se comece a operar, as dificuldades aparecem de súbito graves porque não se tinha jamais pensado concretamente nelas; e como ocorre de começarmos sempre pelas pequenas coisas (na maioria das vezes as coisas grandes são um conjunto de pequenas coisas), as “pequenas coisas” são desprezadas; é melhor continuar a sonhar e remeter a ação ao momento das “grandes coisas”. A função de sentinela é onerosa, tediosa e cansativa; por que “desperdiçar” assim a personalidade humana e não conservá-la para o grande momento do heroísmo? (p. 1885-1886).
Definitivamente, esse tipo de concepção não serve para o momento atual, que está a exigir visão multilateral do processo político, atenta à dialética viva que só se aprende na política real.
* Fábio Palácio é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, onde coordena o projeto de pesquisa “Nas redes e nas ruas - o ciberativismo à luz do materialismo cultural”, atualmente focado no exame das conexões entre o Movimento Brasil Livre (MBL) e as jornadas de junho de 2013. Diretor nacional e presidente estadual da Fundação Maurício Grabois.
Notas
(1) SCHWARCZ, L. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Cia. Das Letras, 2019.
(2) WILLIAMS, R. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.
(3) HARDT, M.; NEGRI, A. Multidão : Guerra e democracia na era do império. 4ª ed. São Paulo: Record, 2005.
(4) PALÁCIO, F. Sob o céu de junho : movimentos juvenis e crise da política nas manifestações de 2013. Juventude.br, nº 16, p. 14-20, set. 2018.
(5) LÊNIN, V.I. Que fazer?. In:______. Obras escolhidas. V. 1. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1981, p. 96-97.
(6) “Temos consciência […] de que esses movimentos têm grandes desafios pela frente. Mais importante, para mim, é a necessidade de que eles criem forças políticas duradouras e efetivas. Essas multidões […] tiveram sucesso ao criar belas relações democráticas nos limites de uma praça por alguns meses. Contudo, ainda não foram capazes de se expandir no espaço e no tempo para transformar a sociedade de uma forma duradoura”, disse Michael Hardt, um mês após as manifestações de 2013, ao jornal Folha de S. Paulo. Cf. MACHADO, U. Protestos recusam representação política por uma “democracia real”, diz professor dos EUA. Folha de S.Paulo [online]. 3 jul. 2013. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/poder/2013/07/1305450-protestos-recusam-representacao-politica-por-uma-democracia-real-diz-professor-dos-eua.shtml.
(7) LÊNIN, V.I. Sobre o significado do materialismo militante. In:______. Obras escolhidas. V. 3. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1982. p. 564.
(8) LÊNIN, V.I. Karl Marx. In:______. Obras escolhidas. V. 1. Lisboa: Avante!; Moscou: Progresso, 1981, p. 10.
(9) GRAMSCI, A. Quaderni del Carcere. Volume terzo — Quaderni 12-29. Edizione critica dell’Istituto Gramsci — A cura di Valentino Gerratana. 2ª ed. Torino: Giulio Einaudi editore, 1977. p. 1885-1886.
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