Por Vitor Nuzzi, na Rede Brasil Atual:
Localizado em uma península à beira do lago Paranoá, o Palácio do Alvorada foi inaugurado dois anos antes de Brasília, em 1958, como residência oficial do presidente da República, que percorre um trajeto de quatro quilômetros até o “escritório”, no Palácio do Planalto.
Desde o ano passado, o que deveria ser um espaço de encontro com jornalistas tornou-se palco de hostilidades por parte de “populares” contra os profissionais da imprensa, em um espaço batizado de “chiqueirinho”. A situação se agravou a ponto de vários veículos tomarem, na última segunda-feira (25), a decisão – inédita – de não mandar mais ninguém para o Alvorada.
O editor de Política do jornal O Estado de S. Paulo em Brasília, Leonêncio Nossa, descarta um viés político.
“A decisão de jornais de suspender cobertura presencial no Alvorada é apenas questão de segurança, longe de ser um protesto”, escreveu no Twitter, no mesmo dia 25.
“Isso sempre ocorre em áreas de risco. Repórter só entra se PM garantir. Quem não entende isso esquece Tim Lopes e Santiago Andrade. O GSI garante?”
O repórter Tim Lopes, da TV Globo, foi morto por traficantes enquanto fazia apurações na Vila Cruzeiro, Penha, zona norte do Rio de Janeiro, em 2002.
Cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago morreu há seis anos, depois de ser atingido por um rojão durante a cobertura de um protesto perto da Central do Brasil, também no Rio.
GSI é o Gabinete de Segurança Institucional, que cuida, ou deveria cuidar, da área onde ficam os jornalistas.
Em nota divulgada durante a semana, afirmou que “criou as melhores condições possíveis para o trabalho dos profissionais de imprensa e, também, um espaço reservado aos apoiadores do presidente”.
Rotina arriscada
Esses apoiadores estão sempre lá.
Ficam muito próximos aos jornalistas e não costumam ser contidos pelos agentes – ao mesmo tempo, são estimulados pelo chefe de governo.
Um risco visível, expondo as equipes de imprensa que costumam ir ao local em dois períodos diários: pela manhã, uma hora antes do primeiro compromisso oficial do presidente, e à tarde, depois da última agenda. Essa rotina revelou-se perigosa.
“No Brasil, a residência oficial da Presidência não é local seguro para um jornalista trabalhar. Dia triste para o jornalismo e uma vergonha para a democracia brasileira”, escreveu ainda nesse dia 25, também no Twitter, o repórter Fabio Murakawa, da sucursal do Valor Econômico em Brasília.
Profissionais de quatro dos principais veículos comerciais foram procurados para falar de seu cotidiano nas coberturas-aventuras do Alvorada.
Nenhum quis ou pôde falar, por razões diversas, mesmo sem se identificar.
Conflito civilizado
As relações entre os jornalistas e a Presidência da República nunca foram tranquilas. “É conflituosa, mas dentro de uma civilidade”, observa o cientista político Fábio Kerche, ex-secretário de Imprensa, inicialmente como adjunto e depois como titular, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
Uma tensão até certo ponto compreensível, lembra: “A imprensa sempre quer saber mais, e o governo tem seu ritmo”.
Para ele, a imprensa teve a mão “mais pesada” durante governos petistas. Mas o que acontece agora “é um ataque não só à integridade física (dos jornalistas), mas à própria liberdade de imprensa”.
Kerche vê também certa “vulgarização” da palavra presidencial no bolsonarismo.
Lembra que seu antecessor e chefe na Secretaria de Imprensa, Ricardo Kotscho, sempre destacava a importância da fala de um presidente da República.
“Não gostava, por exemplo, que ele (Lula) falasse andando, deveria haver um certo ritual”, lembra. O que acontece agora “é mais um indício dos traços autoritários desse governo”, mas não surpreende.
Autocrítica
Nesse sentido, o ex-secretário considera “irresistível” cobrar uma reflexão por parte da imprensa.
“Tanta gente cobra uma autocrítica do PT, da esquerda… Bolsonaro sempre foi assim. Brincaram com fogo”, comenta, lembrando que o ex-deputado e então candidato sempre desqualificou e atacou interlocutores, defendeu restrição de liberdades e constrangeu as pessoas.
“Não ia poupar a imprensa”, conclui.
Em seu período na lida com os jornalistas, Kerche não se recorda de entrevistas no Alvorada. “O plantão era no Palácio do Planalto. Lula trabalhava muito cedo e ia embora muito tarde.”
Havia demanda por mais entrevistas coletivas. “Eles (jornalistas) reclamavam disso, e de certa forma com razão. Mas ele (Lula) falava muito em viagens, sempre tinha contato com a imprensa, fazia o ‘quebra-queixo’ (conversas rápidas com jornalistas, no jargão da área), recebia setoristas no café da manhã. Houve mais entrevistas no segundo mandato”, diz o ex-secretário.
Papel do jornalismo
Para Fernando Oliveira Paulino, professor da Universidade de Brasília (Unb) e diretor de Relações Internacionais da Associação Latino-Americana de Investigadores da Comunicação (Alaic), os episódios do Alvorada refletem a compreensão que a atual Presidência da República tem da atuação jornalística.
“Isto é, desde janeiro de 2019 houve uma série de situações nas quais o presidente expôs os profissionais a constrangimentos e embaraços por entender que o papel do jornalismo não inclui necessariamente o contraditório e a fiscalização permanente das autoridades públicas”, observa.
“Tais situações de tensionamento e hostilidade refletem a polarização política como um instrumento de governo e uma estratégia para manter uma parte da população mobilizada, principalmente pelas mídias sociais, oferecendo apoio para o atual governo.”
O professor Laurindo Lalo Leal Filho, da Universidade de São Paulo (USP), tem visão semelhante.
“Esse palco que foi montado lá (no Alvorada) tem um objetivo. Ele é feito intencionalmente pelo presidente para dar visibilidade ao apoio popular que acredita ter. Diante da clara incompetência para o cargo, Bolsonaro busca apoio nesses grupos organizados. Faz parte de uma política de comunicação desse governo, e os meios de comunicação se tornaram cúmplices”, avalia, ao lembrar que, até então, existia uma relação litigiosa entre mídia e poder público, mas “sempre no nível das ideias e declarações”.
Quem são eles?
Lalo acredita, inclusive, que há uma pauta “quicando” à espera de uma apuração, para identificar os personagens que ficam no chiqueirinho para aplaudir o presidente e xingar os jornalistas.
“Quem são essas pessoas? Como elas chegam lá? Elas pagam do próprio bolso?”
Segundo ele, há pelo menos dois meses a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) fazia gestões para que as empresas tirassem de lá seus profissionais.
“Demoraram muito para tomar essa atitude, embora não tenha sido uma decisão unânime.” No mesmo dia 25, o presidente da ABI, Paulo Jeronimo de Sousa, o Pagê, cumprimentou os grupos Globo e Folha, os primeiros a decidir não mandar mais jornalistas ao local, alegando falta de segurança para trabalhar.
A Federação Nacional dos Jornalistas e o sindicato da categoria no Distrito Federal também apoiaram.
Bem antes disso, em 2 de março, o site Congresso em Foco havia tomado essa decisão.
“Debatemos muito o tema na redação e em fóruns da área, mas não fizemos nenhum comunicado oficial. Apenas deixamos de ir e passamos a monitorar pelas mídias sociais e pelo telefone”, diz o site, em editorial.
Na sequência, o Congresso em Foco aborda um receio comum aos veículos de comunicação, o de tomar um “furo” – ou seja, perder uma notícia, no jargão jornalístico, por estar ausente do local.
Material impróprio
“Prejuízo de conteúdo? Zero, já que todas as baboseiras que dali saem são fartamente reproduzidas pelo poderoso exército de comunicação paralelo do bolsonarismo. É material geralmente impróprio para publicar sem edição profunda, de modo a poupar os desavisados das sandices que o presidente costuma dizer, como a leviana prescrição de um medicamento que mata.”
Segundo o site, ainda assim geralmente eram matérias bastante acessadas e que rendiam audiência.
Mas a redação começou a questionar se valia a pena prosseguir, pela segurança “física e moral” dos profissionais. “Agressões ao jornalismo, a jornalistas e a empresas jornalísticas não são acidentes de percurso de Bolsonaro. São parte fundamental da sua trajetória pública.”
Outro ex-assessor do Palácio do Planalto, que pede anonimato, concorda.
“É do projeto dele (Bolsonaro) brigar. Ele fez do conflito com a mídia uma de suas bandeiras”, afirma, citando a falada reunião ministerial de 22 de abril, quando o presidente ameaçou demitir ministros que recebessem elogios da imprensa. “E estava falando para os seus”, observa o profissional, para quem os veículos de comunicação custaram a abandonar os plantões no Alvorada.
Domesticável
“A imprensa estava se prestando a uma exploração favorável (ao presidente). Contribuía para agitar esse núcleo duro.” O ex-assessor também acredita que existiu erro de avaliação por parte das empresas de comunicação. “Acho que houve uma ilusão de que o Bolsonaro era domesticável”, diz.
“A tensão existe, é normal, é maior dependendo do governo e do veículo. Foi maior nos nos governos Lula e Dilma e menor no governo Fernando Henrique”, diz o ex-assessor.
A situação mudou agora porque existe um fato novo: “O que explica isso é que nunca tivemos um presidente como Jair Bolsonaro”.
Mas ele considera que existem argumentos favoráveis pela manutenção do plantão.
Embora a maior parte do tempo seja dedicada a impropérios, às vezes pode sair uma notícia.
“A primeira vez que ele quis degolar o chefe da Polícia Federal no Rio foi ali, na porta do Alvorada”, lembra.
Para Fábio Kerche, o receio do “furo” poderá fazer com que, aos poucos, os jornalistas voltem para a área do chiqueirinho. É também um meio competitivo, lembra.
Ele conta que, nos cafés da manhã com o presidente, chegava a realizar sorteio para determinar o lugar onde cada jornalista iria sentar, para evitar reclamações e acusações de favorecimento.
Tensão contínua
O professor Fernando Paulino, da UnB, acredita que por um lado a tensão entre mídia e Presidência vai se manter durante todo o mandato. “Por outro, é preciso verificar por quanto tempo as empresas terão condições de manter uma postura altiva diante das dificuldades políticas e de vulnerabilidades econômicas em função da queda de receita publicitária”, acrescenta.
Ele identifica uma política de comunicação, no atual governo, que privilegia empresas e profissionais “mais alinhados” com o poder. “A priorização de canais e de apresentadores de TV, por exemplo, pode ser medida com os recursos de propaganda oficial que têm sido oferecidos sem necessariamente seguir os critérios de mídia técnica que embasavam decisões dos governos anteriores”, diz.
O pesquisador lembra ainda da mudança de rumo em relação ao jornalismo público. “Outra característica do atual governo tem sido desestimular as práticas associadas aos princípios de comunicação pública como algo complementar à comunicação privada e à comunicação estatal, conforme preceitua a Constituição Federal. Essa percepção contribuiu decisivamente para a atual gestão da Empresa Brasil de Comunicação e a incorporação da EBC no planejamento de privatização.”
Na economia ninguém mexe
O professor Lalo faz mais uma ressalva em relação ao comportamento da imprensa, ainda durante a campanha eleitoral. As repreensões surgem pelo viés “moral”, mas nunca na condução da economia – tanto que o ministro Paulo Guedes, com sua plataforma de “reformas”, segue sempre preservado.
“O discurso era que as instituições brasileiras eram fortes o suficiente para conter esses arroubos. A crítica é na questão dos costumes, mas nunca na agenda econômica.”
Ele cita a mesma reunião de 22 de abril e a cobertura pelo Jornal Nacional na semana passada, quando o vídeo foi liberado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.
Ministros como Damares Alves (da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), Abraham Weintraub (Educação) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) foram criticados. “O Guedes, nada.”
Em seu editorial, o Congresso em Foco afirma que houve alguma colaboração da imprensa para que Bolsonaro se transformasse em “mito”, como é chamado pelos seguidores.
Em vez de se escandalizar ou se chocar com as falas e atitudes do candidato, parte da população se identificava – “e a serpente crescia em tamanho e poder letal”.
Assim, os ataques a jornalistas, que não se limitam ao cercadinho do Alvorada, atingem toda a sociedade, que espera por informação, um de seus direitos.
“Não há jornalismo perfeito, e é legítimo apontar e corrigir os seus erros. Quem promove campanha contra imprensa, no entanto, é aspirante a ditador, é quem não aceita ser questionado.”
Protesto houve, um vez. Aconteceu em 1984, por iniciativa dos repórteres fotográficos que cobriam a Presidência. Em represália à proibição de se registrar imagens no gabinete, eles puseram as máquinas no chão durante a passagem de João Figueiredo, último general-presidente da ditadura.
Para fotografar a manifestação na rampa do Planalto, foi escolhido J. França, do Jornal do Brasil. Era outro contexto, mas a imagem tem sido muito lembrada e discutida por jornalistas.
Dez anos atrás, uma coleção de entrevistas com alguns dos principais assessores de comunicação da Presidência da República revelou um pouco do funcionamento da engrenagem da mídia, da política e suas relações nem sempre amistosas. Os depoimentos estão reunidos nos dois volumes de No Planalto, com a Imprensa – Entrevistas de secretários de imprensa e porta-vozes: de JK a Lula. Um painel da história recente do país, que logo terá novos e tormentosos capítulos.
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