domingo, 31 de outubro de 2021

O meio e a mensagem

Charge: Ajit Ninan
Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:


Virou lugar-comum atacar as esquerdas por sua fragilidade no uso das redes sociais. A extrema direita mostrou competência em ocupar esse novo ecossistema informativo, baseado no investimento em tecnologia, engajamento e mensagens falsas que despertam medo. Um trio poderoso. Com isso, elegeram o presidente e o mantêm num patamar inacreditável para tamanha incompetência e capacidade de destruição.

Para muitos, a saída está em disputar o mesmo terreno, deixar de lado as antigas teorias da comunicação, fundamentadas numa relação natural entre emissor, mensagem e receptor, com a vitória das melhores ideias num contexto de democratização da informação. Quem tem melhor argumento vence a discussão; as melhores propostas se consolidam no tempo; a mentira será desmascarada pelos fatos.

Esse cenário, sonho de verão de um liberalismo mágico numa sociedade em que a comunicação é um grande negócio, supõe uma pretensa igualdade de utilização dos meios, como se todos dispusessem dos mesmos canais. E, sobretudo, da crença da ativação da capacidade crítica da população frente ao bombardeamento diário de notícias. O que não ocorre. Há mudanças profundas tanto nos meios hegemônicos de circulação da informação como na produção de mensagens, que perderam a raiz dos fatos para crescer no lodo da manipulação.

Os meios tradicionais de comunicação, que sempre jogaram a favor do projeto neoliberal, se viram perdidos no tiroteio das redes de ódio e mentiras e, quando quiseram acionar o gatilho da formação da opinião pública via imprensa comercial, se viram perdidos e sem força. No campo das redes sociais, a lógica é outra: não se trata mais da verdade, mas do verossímil. Ser é parecer. No atual modelo de circulação de informações, vale mais o afeto que a razão. As métricas deixaram de ser de audiência para entronizar o engajamento.

Há alguns dados psicológicos nessa história. Em primeiro lugar, a criação de um sentimento de pertencimento que as redes presenteiam a um público que sempre se julgou escanteado e desvalorizado em suas opiniões. A partir das bolhas, estabelece-se uma nova forma de participar do debate público. Os seguidores de um grupo nas redes sociais se identificam por valores, não por ideias e fatos. Trocam sua baixa autoestima pela arrogância.

Outro elemento psíquico está vinculado ao medo. Não há nada mais operativo e com menor esforço mental que o temor. Por isso, mais que defender projetos positivos, o melhor caminho é oferecer a defesa contra uma possível destruição de algo julgado essencial. É onde entram as mentiras em torno de ideologia, como o anticomunismo; e de costumes, que favorecem uma gama variada de preconceitos.

A teoria da comunicação e a psicologia não explicam tudo, mas ajudam a entender um fato aparentemente incompreensível: a disposição em acreditar em mentiras, falsidades e manipulações. É pela comunicação e pela exploração atávica do medo, num contexto de grande insegurança, que essa estratégia ganha força. O que as redes possibilitam como estrutura, a insegurança pessoal vitamina com ressentimento.

É desse território, dominado pelo uso massivo de redes compartilhadas e de construção de ambiente de medo e ódio, que se ergueram o negacionismo, a anticiência, a defesa da violência como política de segurança pública, a destruição da rede de proteção social, o aniquilamento das políticas ambientais, entre outros desvarios.

Arquitetura das redes

Há várias tarefas para enfrentar essa situação. Uma delas – fundamental – é dominar a arquitetura das redes sociais. Não é possível mais deixar os discípulos de Steve Bannon sozinhos em campo, nem apelar para um saudosismo de tempos de formação política a médio e longo prazos, cujos resultados correm o risco de chegar depois da terra arrasada. O cenário está a exigir disputa de todos os espaços, reais e virtuais, o que implica em irrigar a cultura política progressista com a nova lógica das redes.

Para ficar no discurso clássico, agitação e propaganda, hoje, respondem por outros processos e circulam em outros territórios. Sem deixar de criticar a volatilidade e superficialidade das redes, é preciso resgatar seu potencial democrático, que foi celebrado no primeiro momento e depois relegado como aquém dos princípios da política mais consistente. Em política, é sempre bom lembrar, nada é mais consistente que conquistar e manter o poder.

No entanto, o necessário apego ao meio não tira a responsabilidade de se cuidar cada vez melhor da mensagem. E talvez esteja vindo daí a melhor chance de mudar o jogo. O domínio avassalador das redes pela extrema direita tem esbarrado nos últimos dias em alguns obstáculos importantes, que estão de alguma maneira apontando os limites das mentiras que a sustentam.

As afirmações criminosas de Bolsonaro, que relacionam as vacinas da covid-19 com aids, foram rejeitadas em todo o mundo e levaram ao seu afastamento das plataformas por alguns dias. Recebeu críticas da comunidade científica, do comando da saúde pública do Reino Unido (usado como argumento para sua afirmação mentirosa) e da imprensa brasileira e internacional. Foi defendido apenas por seu ministro da saúde, que mais uma vez perdeu a dignidade para não perder o cargo.

Manifestações homofóbicas do jogador de vôlei Maurício Souza levaram ao protesto dos patrocinadores e a demissão do clube que o atleta bolsonarista defendia. O técnico da seleção brasileira já avisou que não tem lugar para ele no seu time. O atleta, que fez uma retratação canalha nas redes, em que reforça seus preconceitos, foi repudiado por colegas de profissão, mas ganhou a defesa de Flávio Bolsonaro, Sikêra Júnior e Mário Frias. Autoexplicativo.

O presidente, em entrevista chapa-branca à Jovem Pan, se recusou a responder uma pergunta sobre as rachadinhas, crime pelo qual seu filho Flávio é investigado, e se retirou do estúdio. Ao tentar transferir a lógica do cercadinho do palácio para o cercadinho eletrônico dos apoiadores, mostrou o que entende por liberdade de expressão e debate público e passou vergonha ao vivo.

O blogueiro Allan dos Santos, com prisão decretada pelo STF e com repasses também proibidos por sentença da corte, anunciou o fim de seu blog por falta de recursos financeiros, mesmo com a intervenção dos filhos do presidente junto a investidores. Não é um acaso que recursos financeiros, filhos do presidente e Allan dos Santos estejam juntos na mesma operação.

Nos quatro casos, há uma nítida contradição entre a defesa alegada da liberdade de opinião e o recurso ao crime, à corrupção e à covardia. Mesmo dominado o meio, todos eles perderam na mensagem, sobretudo por reações que não vieram propriamente da esquerda, mas de setores da sociedade cansados do jogo das fake news e do preconceito. O que aponta para a necessidade de sempre fortalecer a tarefa de expandir o uso das redes sociais com a melhor informação possível.

A batalha da comunicação, hoje, talvez cobre um acentuado foco na conquista dos meios, seja na crítica da imprensa burguesa, na construção do jornalismo popular e no uso das redes sociais como estratégia de ampliação real de vozes. O que precisa se expandir para todos os territórios da política: da circulação de ideias, da formulação de consensos, da crítica ao poder e mesmo das disputas eleitorais.

Mas nada disso vale a pena se no lugar do discurso do ódio e do medo como ferramenta de dominação das consciências não estiver presente a verdade, o conhecimento e a busca de uma sociedade mais justa. A comunicação progressista não precisa se curvar às demandas contemporâneas do meio. Seu maior desafio é fazer prevalecer a mensagem que a trouxe até aqui: a verdade é sempre revolucionária.

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