Complexo do Alemão, 12/10/22. Foto: Ricardo Stuckert |
As trajetórias de Lula e Bolsonaro já foram exaustivamente analisadas do ponto de vista político. Não conheço, porém, nenhuma análise do ponto de vista dos arquétipos literários. Suas biografias são pratos cheios para uma nação como o Brasil, onde a maioria do povo é pobre e confia na sorte (ou no milagre) para sair do buraco.
No estudo de obras literárias, há técnicas de garimpar textos e descobrir por que causam tanto impacto a leitores de sucessivas gerações. O professor Matthew Jockers, das universidades de Nebraska e Vermont, analisou inúmeros romances. Chegou a seis tipos de arquétipos que servem de base à elaboração de narrativas complexas: 1) Ascensão (da pobreza à riqueza ou de má a boa sorte); 2) Declínio (de bom a mau, tragédia); 3) Ícaro (ascensão e declínio); 4) Édipo (declínio, ascensão e declínio de novo); 5) Cinderela (ascensão, queda, ascensão); 6) Homem no buraco (queda e ascensão).
A pesquisa se baseou na análise de sentimento, uma técnica estatística usada por marqueteiros para analisar postagens em mídias digitais. Cada palavra é associada a uma "pontuação de sentimento". Assim, uma palavra é qualificada como positiva (feliz) ou negativa (triste), ou associada a emoções mais sutis, como medo, alegria, surpresa e anseio. Por exemplo, a palavra "abolir" é negativa, associada a raiva.
Ao fazer a análise de sentimento das palavras de um romance, percebe-se as mudanças de humor ao longo do texto, revelando um tipo de narrativa emocional.
Bons exemplos são “A divina comédia”, de Dante Alighieri; “Madame Bovary”, de Flaubert; “Romeu e Julieta”, de Shakespeare; “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen; “Frankenstein”, de Mary Shelley; e “O patinho feio”, de Hans Christian Andersen.
“A divina comédia” é um poema épico de ascensão. O autor inicia por descrever sua jornada no inferno, acompanhado pelo poeta Virgílio. Eis ali "um homem no buraco". Ao sobreviver milagrosamente ao inferno, a dupla escala a montanha do purgatório, na qual repousam as almas dos excomungados, preguiçosos e luxuriosos. Beatriz, paixão e musa de Dante, substitui Virgílio como companhia e a ascensão do casal ao paraíso é marcada por crescente alegria. A alma do poeta se torna plena "do amor que move o sol e outras est relas".
Lula se encaixa melhor no poema de Dante que Bolsonaro. Saiu da miséria (o inferno), padeceu uma vida de trabalhador assalariado (o purgatório) e, enfim, chegou a presidente da República com 87% de aprovação (o paraíso). Bolsonaro saiu do purgatório (sua fracassada e breve carreira militar) e chegou ao paraíso (eleito presidente). Sabe-se, porém, que caso seja derrotado no próximo dia 30 será condenado ao inferno (o retorno a uma vida sem mandato e o risco de cair nas malhas da Justiça).
Lula condiz com o arquétipo Cinderela. Após a ascensão à presidência, conheceu a queda sob as garras injustas da Lava Jato e, agora, experimenta a preferência eleitoral e poderá ser o primeiro brasileiro eleito três vezes para chefiar a nação. Neste caso, em 1º de janeiro de 2023 a faixa presidencial o cobrirá como o sapatinho ofertado pelo príncipe se adequou ao pé de Cinderela.
Bolsonaro sabe que está mais para Madame Bovary, que se deslumbrou com amores fortuitos, e corre o risco de, após o imprevisível voo que o alçou ao Planalto, cair como Ícaro no mais profundo abismo.
Esses arquétipos estão enraizados em nosso inconsciente. São amplamente utilizados em todas as narrativas ficcionais, como novelas de TV. Causam maior impacto quando são realidade, como é o caso da família real britânica. Ela dispensa novelas de TV na Inglaterra. Os dramas – o tio que abdicou da coroa para se casar com uma mulher desquitada; a rainha longeva; o filho que se separa da mulher bela para se juntar à mulher feia; o príncipe flagrado em orgia; e o príncipe de “sangue azul" que se casa com uma mulher de “sangue negro” etc... – tudo isso atrai olhares e provoca a imaginação.
No dia 30 nossos votos haverão de acrescentar mais um capítulo à tragédia brasileira. Há aqueles que votarão pela “pontuação de sentimento negativo” (Bolsonaro) e aqueles que darão o seu voto à “pontuação de sentimento positivo” (Lula). Espero em Deus que a maioria dos eleitores vote sem medo de ser feliz.
* Frei Betto é escritor, autor de “Jesus militante – o Evangelho e o projeto político do Reino de Deus” (Vozes), entre outros livros.
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