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“O mercado é só uma máquina que aloca recursos” – Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central do Brasil, 18/11.
“Os mercados votam todos os dias. Os mercados que têm o verdadeiro sentido do Estado” – George Soros, especulador internacional, em 1996.
A declaração do Lula [17/11] de priorizar o enfrentamento das graves urgências sociais provocou a histeria coletiva da ortodoxia econômica, da mídia, de banqueiros, de financistas, especuladores e, claro, do deus-mercado.
Toda essa gritaria não é em vão, tem lá sua razão de ser. E como tem!
Acontece que a canalização de maior volume de recursos do orçamento para combater a fome e a miséria diminui a disponibilidade orçamentária para o pagamento de juros da dívida pública. E isso, como se sabe, tende a aumentar a fome voraz do mercado.
O pagamento de juros da dívida, que em 2023 deverá ultrapassar 700 bilhões de reais – algo como 132 bilhões de dólares –, é a segunda maior despesa do orçamento nacional, ficando atrás somente dos gastos previdenciários.
Uma quantia respeitável. Para se ter um parâmetro: esta cifra astronômica, paga anualmente pelo povo brasileiro, é superior ao PIB de nada menos que 120 países do mundo.
Em toda América Latina, apenas os PIB’s do México, Argentina, Colômbia, Chile e Peru são superiores a esta “mesada anual” que o povo brasileiro transfere ao rentismo na forma de pagamento de juros da dívida.
Como explicaram Bresser-Pereira e outros autores da Carta Aberta ao Presidente Lula, “esse volume de pagamento de juros é o maior programa de transferência de renda do mundo, só que é uma transferência de renda de toda a sociedade para o 1% mais ricos de nossa população”.
A “insatisfação” do mercado com o discurso do Lula foi editorial de todos grandes jornais de circulação nacional no dia seguinte, 18/11 – ordem unida em defesa do sacrossanto mercado.
A Folha de São Paulo disse que “aumento da inflação e dos juros, menos emprego […] e mais ganhos para os rentistas […] seriam os efeitos práticos e prováveis da proposta petista para a expansão incondicional do gasto público”. Ora, mas se “a proposta petista” propicia “mais ganhos para os rentistas” e não o seu contrário, por que então os rentistas se oporiam a ela?
O jornal O Globo, com hipocrisia, alertou que Lula “deveria “encarar a realidade da bomba fiscal prestes a cair sobre o país”, como se a bomba já não tivesse sido detonada pelo governo militar, que ultrapassou o teto de gastos em 795 bilhões de reais em quatro anos e, além disso, deixou a economia e as finanças do país em escombros e o povo brasileiro na miséria.
O Valor Econômico acusou que “Lula reforça discurso de gastos sem a contrapartida fiscal”. Para o Valor, “a “inquietação [do mercado] é alimentada pelo desequilíbrio do discurso do Lula, quase todo centrado em gastos e estímulo ao crescimento, o que eleva o déficit público”.
O Estadão argumentou que apesar da experiência política, “Lula mal conhece o mercado, ignora seu funcionamento e é preconceituoso em relação aos critérios de quem participa do jogo”. Sim, “do jogo” – ou da jogatina, da orgia financeira ou da rapinagem, se se preferir.
O Globo também referiu uma suposta “ignorância” do Lula sobre o mercado. Lula “tem agido como se fosse um recém-chegado ao mundo da responsabilidade pública e das grandes decisões”, afirmou o veículo da família Marinho.
Ora, Lula conhece tanto o mercado – o “jogo” –, que quando ele comunicou a prioridade de garantir dinheiro suficiente no orçamento para combater a fome e a miséria, como que prevendo a reação do mercado, emendou: “se eu falar isso, vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar. Porque o dólar não aumenta e a bolsa cai por conta das pessoas sérias, mas por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia”.
Bingo! Em menos de uma hora jornalistas e “especialistas” do mercado movimentaram-se com a mesma intensa excitação dos agentes do mercado. A profecia do Lula se confirmou: naquele dia [17/11] a bolsa despencou 3,35% e o dólar valorizou 4,09%.
Quem deu uma explicação “sociológica” sobre a natureza do mercado foi Roberto Campos Neto, o presidente do Banco Central do Brasil nomeado por Bolsonaro e que ainda terá dois anos de mandato no cargo durante o governo Lula.
Campos Neto saiu-se com a seguinte pérola: “O mercado não é um monstro ou um inimigo. O mercado é só uma máquina que aloca recursos” [18/11]. O mercado, e não o Estado e a sociedade, é a “máquina que aloca recursos”!
Em meio a esta polêmica nova/antiga, José Luís Fiori, um dos mais importantes intelectuais do Brasil, republicou artigo de 1996 que tem notável atualidade para o debate atual. “Inacreditável, um artigo de 1996, escrito contra os mesmos Malan, Bacha et caterva que estão hoje nas folhas públicas. Como se as ideias econômicas tivessem ficado estagnadas para sempre. Ou, quem sabe, são os mesmos interesses de sempre…”, resumiu Fiori.
Neste texto – Aos condenados da terra, o equilíbrio fiscal – Fiori disseca “o fenômeno da globalização financeira que acabou colocando os Bancos Centrais na condição de reféns dos mercados e dos agentes privados e ‘desterritorializados’”.
Fiori avalia que esta captura dos Bancos Centrais se deu “de forma tão dura e explícita que George Soros pôde declarar recentemente que ‘os mercados votam todos os dias. Eles forçam os governos a adotar medidas impopulares, mas indispensáveis. Hoje são os mercados que têm o verdadeiro sentido do Estado’”.
Mais claro impossível. É o mercado, e não o povo, a política, a soberania popular , o governo, o Congresso ou a democracia quem define como o Estado deve funcionar e como e onde devem ser alocados os recursos socialmente produzidos e arrecadados.
A responsabilidade fiscal a qualquer custo significa, na realidade, a transferência de fatia extraordinária da renda produzida pelo povo brasileiro para um punhado de rentistas e especuladores.
Em 2023, 700 bilhões de reais do orçamento público nacional serão drenados para os bolsos de menos de 1% da população do país, enquanto dezenas de milhões de brasileiros vítimas do capitalismo continuarão padecendo de fome, miséria, pobreza e indigência.
O dogma especulativo da responsabilidade fiscal unifica neoliberais e ultraliberais – sejam eles democratas ou fascistas, sejam eles antipetistas ou bolsonaristas.
É o ódio do mercado à democracia e ao povo. Para o mercado e seus defensores, em primeiro lugar vem o dinheiro; que, às custas de vidas humanas sacrificadas, gera mais dinheiro.
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