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O debate relacionado com as causas identitárias vem ganhando destaque entre a militância de esquerda em razão das posturas tomadas pelo atual presidente do Chile, Gabriel Boric.
Conforme pode ser constatado ao analisar seus pronunciamentos, Boric tem se mostrado um aguerrido lutador em favor de muitas das pautas associadas ao combate à homofobia e à misoginia, às lutas contra a discriminação racial e pela descriminalização do aborto, etc.
Por outro lado, várias das principais reivindicações históricas do movimento trabalhista vêm recebendo por parte dele escassa atenção. Pouca ênfase tem sido dada às lutas que questionam as bases de sustentação da exploração capitalista. A organização autônoma e consciente da classe trabalhadora não é tida como uma de suas principais preocupações. E isto não contribui positivamente nas lutas trabalhistas por aumentos salariais, melhores condições de trabalho, diminuição da jornada laboral, eliminação ou redução do desemprego e por amparo previdenciário, por exemplo.
Além disso, Boric também rompeu com a tradição anti-imperialista da esquerda latinoamericana e vem se mostrando como um fiel aliado da linha política traçada pelo imperialismo estadunidense para a América Latina e para o mundo em geral. Tanto assim que ele se tornou um dos mais agressivos detratores dos governos dos países que mais resistem à imposição da hegemonia dos Estados Unidos nesta região, ou seja, Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Em meu entender, é inaceitável que um militante consciente de esquerda ignore a importância das lutas que visam pôr fim às discriminações raciais, de gênero, de homofobia e todas as demais do tipo das mencionadas mais acima neste texto. No entanto, isto não deveria implicar em nossa concordância em colocar tais reivindicações como prioridades exclusivas em nossos esforços por construir um mundo com justiça e dignidade para toda nossa população.
O objetivo primordial de todos os que estamos engajados no processo que busca forjar uma sociedade mais igualitária, justa e solidária é participar ativamente da luta para que tenhamos um mundo no qual os direitos básicos de todo ser humano sejam atendidos. Lutamos por um mundo onde ninguém passe fome; onde não haja nenhuma criança desamparada e sem escola; um mundo no qual nenhum trabalhador esteja desempregado e nenhum ser humano tenha de viver ao relento e sem assistência médica; entre outras coisas. No que diz respeito a nosso posicionamento internacional, estamos determinados a não aceitar que os destinos de nossa nação estejam subordinados aos desígnios de outras potências estrangeiras. Por isso, estou convencido de que uma esquerda de verdade tem de ser necessariamente anti-imperialista.
Portanto, todos os que compartilham conosco desses sonhos e desejos estão aptos a desempenhar um papel ativo no processo de embates com vistas a concretizar nossos objetivos. Não podemos e não devemos concordar passivamente com nenhuma discriminação injusta praticada contra ninguém que se enquadre neste amplo leque de pessoas.
Contudo, para nós da esquerda, não dá no mesmo irmanarmo-nos às causas feministas das mulheres trabalhadoras que às aspirações das mulheres das classes dominantes; não pode ser igual nosso engajamento na defesa dos direitos dos trabalhadores negros que no apoio às pretensões de igualdade dos capitalistas afrodescendentes a seus pares de raça branca; não podemos equiparar a solidariedade que devemos prestar a homoafetivos de extração popular com a destinada aos poucos deles que compõem o grupo dos exploradores; nunca deveríamos ignorar que existem diferenças gritantes entre a imensa maioria dos integrantes de nossos povos originários e aqueles indivíduos vinculados a anseios alheios aos do conjunto de suas próprias etnias.
Lamentavelmente, as classes dominantes parecem ter entendido melhor a maneira adequada de lidar com as questões identitárias do que nós da esquerda.
Creio estar evidente que nossos grandes capitalistas aprenderam a situar sempre em primeiro lugar os interesses essenciais de sua própria classe. Até mesmo o nazismo bolsonarista, que representa o nível da degradação moral mais abjeta a que a as classes dominantes podem chegar, sabe que o que deve prevalecer são os interesses materiais concretos das classes às quais essa nefasta ideologia serve.
É por isso que, apesar de toda sua podridão racista, o nazismo bolsonarista não vacilou em colocar no comando da fundação mais significativa na história da defesa de nossos afrodescendentes uma pessoa de pura cepa africana. Como o escolhido para exercer essa função também estava comprometido com a manutenção dos privilégios das classes dominantes, a cor de sua pele não tinha a menor importância.
Embora o nazismo bolsonarista se nutra de um ódio colérico contra nossos povos originários e se empenhe para extirpar de nossa terra todos os vestígios ainda existentes de nossos aborígenes, eles costumam acolher sem vacilação a qualquer adepto deles provenientes que se disponha a servir nas hostes de seus exterminadores. Ainda deve estar fresco em nossa memória o caso do índio nazibolsonarista que tantos danos nos causou durante os preparativos para o golpe de Estado de 8 de janeiro passado. Em outras palavras, ainda que os nazibolsonaristas odeiem profundamente os povos indígenas, todo indígena que demonstre estar disposto a aderir a suas ideologia e prática macabras será bem aceito por eles.
Em resumo, nós da esquerda queremos com sinceridade pôr fim a todas essas discriminações odiosas que afligem a nossa população. No entanto, os interesses essenciais das classes com as quais nos identificamos precisam sempre ser nossa prioridade. São esses interesses prioritários os que deveriam balizar nossas condutas.
Estamos cientes da justeza da luta para eliminar os preconceitos de tinte identitário. Nossa obrigação moral e ética é travar o combate para erradicá-los de nosso seio. Entretanto, precisamos ter clareza sobre a preponderância das questões reais que possibilitam a exploração das maiorias por pequenos grupos de cunho oligárquico. Devemos estar dispostos a acolher e prestar solidariedade a todos os que são vítimas de preconceitos. Porém, a centralidade das questões socioeconômicas não pode ser ignorada. A luta contra as discriminações identitárias faz todo sentido, desde que esteja umbilicalmente acoplada à luta geral para a solução dos problemas mais prementes das classes trabalhadoras.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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