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As propostas de arrocho fiscal carregam consigo consequências muito mais graves do que simplesmente o discurso mentiroso e demagógico de buscar o tal do saudável equilíbrio das contas públicas. Via de regra, as medidas se concentram sobre a limitação e/ou a redução das despesas orçamentárias para que as receitas possam se igualar aos gastos na apuração final do resultado das contas da tesouraria governamental.
Ocorre que a obsessão irracional com o corte em tais rubricas termina por prejudicar de forma aguda as contas das áreas sociais, dos investimentos públicos e dos salários dos servidores, dentre tantos outros setores estratégicos para a dinâmica econômica e social. Além de provocar redução de direitos legais e constitucionais, o viés pela austeridade também se revela como um tiro no pé da própria capacidade de se promover a recuperação da atividade econômica de forma mais geral.
A teoria macroeconômica convencional reconhece a importância daquilo que até mesmo os manuais de orientação conservadora classificam como “multiplicador do gasto do governo”. Assim, uma eventual despesa do setor público em um determinado momento tende a se converter em elemento ativador da atividade econômica, gerando um aumento da demanda que certamente se transformará em geração de renda, de emprego e mesmo de tributos mais à frente. Ao insistir única e exclusivamente no corte de despesas, a política do austericídio termina por agudizar os aspectos recessivos do quadro da economia, além de poupar de forma injustificável as despesas financeiras de tal redução ou limite.
Austeridade: saúde e educação na mira
Isso foi o que ocorreu desse 2006, quando a dupla Temer/Meireles conseguiu introduzir no texto constitucional a chamada política do teto de gastos. A previsão é que durante longos 20 anos (2017 a 2036) o Brasil estaria impedido de aumentar as despesas orçamentárias para além das perdas inflacionárias. Uma loucura! Pois a política foi mantida até o final de 2022, quando a campanha de Lula para Presidente da República prometia a revogação da medida. Porém, a nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda alterou bastante as expectativas criadas para mudanças na política econômica para o terceiro mandato.
O novo ministro manteve a essência da política austericida, ao convencer Lula a enviar ao Congresso Nacional um projeto de lei complementar instituindo o Novo Arcabouço Fiscal (NAF). A estratégia para agradar ao povo do financismo era substituir o teto de gastos, ao invés de simplesmente revogá-lo. A obstinação com a disciplina fiscal manteve a política de contenção de despesas para alcançar os resultados nas contas federais. Assim, a austeridade nutela de Haddad continua impedindo o governo de cumprir as promessas de recuperar políticas públicas que haviam sido destruídas ao longo dos 6 anos anteriores, além de criar obstáculos concretos para que Lula consiga cumprir a promessa de realizar 40 anos em 4. Para tais projetos políticos, seria necessária uma reviravolta na contenção de gastos, uma vez que qualquer programa nacional de desenvolvimento envolve aumentos expressivos nas despesas públicas e nos investimentos estatais. O NAF impede tal movimento.
Para agravar ainda mais a situação, o governo encaminhou uma proposta para o presente ano que pressupõe a meta de “zerar o déficit primário”. Isso significa que haverá preocupação apenas com contenção das chamadas despesas primárias. No dicionário do fiscalês, a definição de gastos primários refere-se apenas às rubricas não-financeiras. Assim, estão fora do cálculo todas despesas de natureza financeira, como as relativas ao pagamento de juros da dívida pública.
Novo Arcabouço Fiscal e o fim dos direitos sociais
Ora, como a NAF limita o crescimento das despesas em 70% da elevação das receitas, o fato concreto é que as políticas sociais ficam ameaçadas, assim como os investimentos públicos. No entanto, existem alguns grupos de gastos para os quais a própria Constituição preserva um patamar mínimo atrelado a algum tipo de indexação. As despesas previdenciárias, por exemplo, ficam atreladas ao valor da salário mínimo. As despesas de saúde e de educação, por seu turno, ficam atreladas a fórmulas envolvendo a receita tributária do governo federal.
Assim, como a limitação das despesas gerais está dada com o novo teto do Haddad, a tendência é de permanecerem as disputas dentro do bolo geral dos gastos. Se ela não pode crescer mais de 70% do que crescem as receitas, haverá uma espécie de autofagia entre as despesas primárias. O governo, ao invés de revogar o equívoco que foi o NAF, desde então vem alimentando a imprensa com boatos e notícias de promover a eliminação dos pisos constitucionais de saúde e de educação. O Ministro da Fazenda ainda não se manifestou, pois sabe que o tema é muito sensível e caro às forças progressistas que ajudaram a derrotar Bolsonaro e eleger Lula mais uma vez em 2022.
Porém, vários integrantes do segundo escalão da área econômica já falam há muito tempo abertamente de tal alternativa para acelerar o austericídio. Em março de 2023 o Secretário do Tesouro Nacional abriu a temporada de caça aos pisos constitucionais. Em setembro do ano passado, o governo resolve fazer uma consulta formal ao Tribunal de Contas da União (TCU) a respeito do tema. Uma atitude temerária, tendo em vista o comportamento daquele órgão, quando deu aval ao impeachment de Dilma Roussef, sob a falsa alegação das pedaladas fiscais.
Na sequência das ameaças aos pisos, em dezembro de 2023, o Secretário do Orçamento (subordinado de Simone Tebet, titular do Ministério do Planejamento) fez outra declaração favorável à retirada das garantias constitucionais para a saúde e para a educação. Finalmente no boletim de março recente, a Secretaria do Tesouro Nacional (STN) divulgou um boletim com dados e cálculos que justificam a necessidade de se promover a desvinculação constitucional dos pisos mínimos paras estas duas áreas sociais tão carentes e tão sensíveis. A cronologia acima preocupa bastante, pois demonstra uma intenção explícita em eliminar as conquistas.
Lula precisa defender os pisos
O argumento falacioso de que não existem recursos não se sustenta a uma primeira avaliação. Ao longo dos últimos 12 meses, o governo gastou exatamente R$ 747 bilhões a título de pagamento de juros da dívida pública. Trata-se de mais um recorde na série histórica apresentada pelo Banco Central em sua página. Não faz sentido dar um tratamento arrochado para os gastos de natureza social e liberar um volume como esse sem teto, sem limite sem contingenciamento para atender aos desejos dos detentores de títulos da dívida pública. Governar é estabelecer prioridades. Haddad, ao que tudo indica, já fez a sua a favor dos interesses do povo da banca.
É fundamental que Lula assuma para si o comando estratégico de tais decisões de política econômica. Não é possível que, em nome de uma suposta obstinação de seu Ministro da Fazenda com as metas do austericídio tão querido à Faria Lima, o terceiro mandato termine por realizar o trabalho sujo que nem mesmo Joaquim Levy, Henrique Meirelles ou Paulo Guedes ousaram concluir. Os pisos da saúde e da educação não podem e não devem ser tocados!
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