Por Roberto Sávio, no sítio Outras Palavras:
As recentes eleições alemãs borraram as fronteiras entre norte e sul da Europa. Ao longo dos últimos três anos, todo o mundo parecia olhar apenas para a crise na Grécia, seguida pela da Irlanda, de Portugal; pelo declínio da França, a estagnação da Espanha e a falta de governabilidade na Itália. Poucos perceberam que a Holanda (quinta economia da zona do euro) foi obrigada a admitir que em 2014 não conseguirá cumprir a meta de déficit fiscal abaixo de 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e já atingiu os 3,8%.
A Finlândia, outra forte aliada no dogma de “austeridade” da Alemanha e sua firme imposição no sul da Europa, admitiu que terá de violar outro princípio: aquele segundo o qual o endividamento não pode ultrapassar 60% do PIB. Também a Áustria parece caminhar em direção à desaceleração, sem falar da situação difícil dos países da Europa Oriental e da Polônia. A Eslovênia figura na lista como o próximo país a ser “resgatado”, depois do Chipre.
Em seu discurso no Dia do Príncipe, para as duas casas do parlamento holandês, o rei William praticamente liquidou o conceito de Estado de bem-estar social, ao dizer claramente que o sistema clássico da segunda metade do século XX seria “insustentável”, e clamar por sua substituição pela chamada “participação da sociedade”, em que as pessoas são responsáveis por seu próprio futuro. O rei lia um discurso preparado pelo premiê liberal Mark Rutte, que comanda o país com apoio dos sociais-democratas. […]
É exatamente a mesma posição do candidato republicano Mitt Romney durante sua campanha contra Barack Obama, nas últimas eleições dos EUA. Trata-se de um excelente exemplo de como o modelo social europeu vem progressivamente minguando e se tornando cada vez mais parecido com o norte-americano. E para ficar ainda mais semelhante, logo depois do discurso do rei o governo holandês comprou, por 6 bilhões de dólares, 37 caças F-35. A manutenção destes caças irá custar 300 milhões ao ano – um custo que certamente deixará mais seguros os cidadãos holandeses ameaçados de cortes em aposentadorias e benefícios sociais…
Ao vencer as eleições, Angela Merkel já anunciou que irá manter a “austeridade” como base dos relacionamentos da Alemanha na Europa. Em outras palavras, os países devem continuar cortando custos sociais para equilibrar o orçamento. Merkel acredita que a unidade europeia é importante: sabe bem que uma das razões para o sucesso da Alemanha é que uma Europa fraca torna mais forte a economia alemã, via exportações e taxas de juros. Mas Merkel não é uma líder da Europa, ela é líder da Alemanha. Nunca tentou explicar aos seus cidadãos as razões fundamentais da vantagem alemã.
O fato é que os empréstimos às nações do sul da Europa destinaram-se, primeiramente, a pagar as dívidas dos bancos daqueles países, sendo que alto percentual foi parar nos bancos alemães, detentores de títulos da Grécia, Irlanda, Portugal e por aí vai (além de a Alemanha injetar, em seus próprios bancos, 300 bilhões de dólares).
Merkel é uma líder que, ao contrário de seus antecessores, não se sente responsável, por razões pessoais e históricas, pelos pecados passados da Alemanha. Ela não tem problema algum em projetar uma imagem controversa de seu país. Não vê problemas em manter relações difíceis com outros líderes europeus. Tem sido acusada usar como modelo a Suíça (mais Zurique que Genebra): um país que só quer saber de comercial e, basicamente, evita envolver-se na solução dos problemas internacionais, a não ser que afetem estabilidade nacional. Merkel não definiu posição alguma da Alemanha sobre assuntos globais, além do reconhecimento genérico de que os Estados Unidos são o país responsável pela ordem mundial. Ela aceitou a posição de Obama nas questões da Líbia, do Egito e da Síria, mas não comprometeu a Alemanha a tomar nenhuma medida concreta. Na prática, a Alemanha está completamente ausente de qualquer debate global, de meio ambiente a desarmamento; de governança e governabilidade ao papel das Nações Unidas.
Na Europa, ela considera que os alemães – que teriam pago seus impostos e trabalhado duro, enquanto Grécia, Irlanda e Portugal gastavam dinheiro alegremente – estavam comprometidos, sob o comando do antigo chanceler Gerhard Schröder, com um processo doloroso e não solicitado de redução do bem-estar social. O modelo social alemão, acredita, tem sido um sucesso. Discursando em Meschede, na Renânia do Norte-Vestfália, em 2011, ela afirmou claramente: “Não podemos ser solidários e aceitar que países endividados continuem como estão. A Alemanha vai ajudar, mas apenas se os outros se esforçarem e demostrarem esforços. É importante que em países como Grécia, Espanha e Portugal as pessoas não possam aposentar-se antes que na Alemanha – que todos se esforcem mais ou menos igualmente. Isso é importante… Não podemos ter uma moeda comum se alguns têm muito tempo de férias e outros, pouco. Isso não vai funcionar no longo prazo.” E em 2012, quando a ideia de emitir eurobônus (títulos garantidos por todos os países da zona do euro para sustentar as finanças dos países europeus mais fracos) foi posta de lado, ela declarou enfaticamente: “Enquanto eu viver, não haverá eurobônus.” Disse ainda: “Programas de assistência devem estar sempre sujeitos a condições bem estritas”.
Assim sendo, o modelo social da Alemanha deve tornar-se o modelo social europeu. Parece fácil do ponto de vista de Berlim, mas, para países em recessão, manter os cortes de serviços públicos causa sérios custos sociais, como já admitiu até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esses custos são vistos como desperdício e esbanjamento na Alemanha, onde o valor protestante da punição dos pecados desempenha forte, embora não declarada justificativa psicológica diante de notícias sobre o sofrimento dos cidadãos na Grécia e outros países no sul da Europa.
Merkel tem posição bem definida sobre a Europa, sempre sugerida, ainda que não expressa claramente. Ela favorece fortemente maior integração. Mas não procura fazê-lo delegando poderes às instituições européias, e sim por meio de mais e mais acordos entre a Alemanha e outros Estados. Tem resistido a ampliar os poderes do Banco Central Europeu (ECB) e diluído seu programa de controle do sistema bancário. Mas não tem nenhum problema em, por exemplo, fechar um acordo bilateral com a Espanha para aceitar profissionais qualificados como imigrantes (no ano passado a Alemanha bateu o recorde de um milhão de imigrantes), como forma de ajudar no emprego dos jovens. E tem feito várias declarações sugerindo que “é hora de retomar algumas funções de Bruxelas de volta aos Estados nacionais”.
Na verdade, isso torna Angela Merkel muito mais próxima do primeiro-ministro britânico David Cameron do que a maioria das pessoas imagina. Quando eles se conheceram, em junho de 2012, ambos assumiram exatamente as mesmas posições em relação ao orçamento europeu, deixando o presidente francês François Hollande completamente isolado. E foi Hollande quem teve de ir à luta junto a Cameron pela visão europeia, com Merkel basicamente assistindo. Cameron vê a Europa apenas como um mercado comum. A visão de Merkel não está distante disso. Ela olha para um conjunto de relações entre Estados europeus, com Bruxelas coordenado políticas comuns, mas com a condição de que os países se alinhem ao modelo social alemão.
Assim, nos próximos quatro anos não haverá grandes mudanças, ainda que um Partido Social Democrata (SPD) muito enfraquecido faça uma coalizão com Merkel. A propósito, o SPD debilitou-se precisamente por causa das reformas austeras de Schröder, e desde então não conseguiu se recompor. Fora alguns sinais progressistas emitidos durante a recente campanha eleitoral, as diferenças nas questões sociais entre o SPD e a União Democrática Cristã (CDU), de Merkel, foram mínimas. Em Dortmund (580 mil habitantes), um em cada quatro cidadãos está próximo da linha de pobreza e vive de subsídios. Nacionalmente, 6 milhões de alemães recebem alguma forma de ajuda estatal e 2,5 milhões com menos de 18 anos vivem na pobreza, de acordo com Massimo Nava, do Il Corriere della Sera. Enquanto isso, as frustrações na antiga Alemanha Oriental, que permanece mais deprimida que o resto do país, não se refletem em comparecimento às urnas, mas em abstenção. Os alemães olham para além de suas fronteiras e, temendo o pior, preferem manter o status quo.
Examinemos mais de perto uma era de Europa pós-Merkel. A partir do sul, a política de austeridade irá se propagar por toda a Europa. É possível que os cortes na seguridade social produzam alguns resultados, em termos macroeconômicos e orçamentários. A Grã-Bretanha é um bom exemplo. Cameron vem desmontando o famoso Sistema Nacional de Saúde do país, exemplo para toda a Europa depois da II Guerra Mundial. Ele vem cortando o orçamento da educação e o que mais seja possível, e também está privatizando cada vez mais. O setor financeiro corresponde hoje a 10% do PIB britânico e 2.436 banqueiros receberam mais de 1 milhão de euros em 2011, de acordo com as autoridades do Banco Europeu. O Partido Conservador obtém mais de 59% de seu financiamento na City, o centro financeiro de Londres. Em nível orçamentário parece haver uma melhoria à vista, mas, ao mesmo tempo, segundo previsões da London School of Economics para 2025, o país irá voltar aos tempos da Rainha Vitória, em termos de desigualdade social.
Essa tendência vai espalhar-se por toda a Europa – em diferentes velocidades, mas na mesma direção. Isso está derrubando a esquerda tradicional, que entrou na onda do liberalismo e globalização – ao invés de se colocar lado a lado com as vítimas. Estas, ou deixaram a política de lado ou se juntaram a partidos de protesto (geralmente xenófobos e de extrema direita), que estão surgindo em todos os lugares – desde o Partido Alternativo na Alemanha, que vem avançando, até seus semelhantes na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega, Dinamarca, Hungria etc.
De certa forma, Merkel vem atacando e erodindo constantemente o SPD. Ele é agora um partido debilitado, que vai perder ainda mais força e credibilidade se aderir à premiê no governo. Em toda a Europa, os partidos tradicionais de esquerda estão em crise: as últimas eleições da Noruega, onde até mesmo o partido mais radical de extrema direita foi proporcionalmente melhor que os sociais-democratas, deveriam abrir os olhos de todo mundo.
O caso agora é muito sério: ao destruir os valores de justiça social e solidariedade, que eram o espírito de unidade real da Europa, Angela Merkel está, na verdade, também destruindo os valores em que o Cristianismo se baseia (ouça-se o Papa Francisco!). Quando ela deixar o cargo, muito provavelmente vai existir uma Europa bem diferente – muito radicalizada, onde possivelmente as pessoas excluídas vão retornar à política. A longo prazo, será que isso realmente corresponde aos interesses do CDU?
A Finlândia, outra forte aliada no dogma de “austeridade” da Alemanha e sua firme imposição no sul da Europa, admitiu que terá de violar outro princípio: aquele segundo o qual o endividamento não pode ultrapassar 60% do PIB. Também a Áustria parece caminhar em direção à desaceleração, sem falar da situação difícil dos países da Europa Oriental e da Polônia. A Eslovênia figura na lista como o próximo país a ser “resgatado”, depois do Chipre.
Em seu discurso no Dia do Príncipe, para as duas casas do parlamento holandês, o rei William praticamente liquidou o conceito de Estado de bem-estar social, ao dizer claramente que o sistema clássico da segunda metade do século XX seria “insustentável”, e clamar por sua substituição pela chamada “participação da sociedade”, em que as pessoas são responsáveis por seu próprio futuro. O rei lia um discurso preparado pelo premiê liberal Mark Rutte, que comanda o país com apoio dos sociais-democratas. […]
É exatamente a mesma posição do candidato republicano Mitt Romney durante sua campanha contra Barack Obama, nas últimas eleições dos EUA. Trata-se de um excelente exemplo de como o modelo social europeu vem progressivamente minguando e se tornando cada vez mais parecido com o norte-americano. E para ficar ainda mais semelhante, logo depois do discurso do rei o governo holandês comprou, por 6 bilhões de dólares, 37 caças F-35. A manutenção destes caças irá custar 300 milhões ao ano – um custo que certamente deixará mais seguros os cidadãos holandeses ameaçados de cortes em aposentadorias e benefícios sociais…
Ao vencer as eleições, Angela Merkel já anunciou que irá manter a “austeridade” como base dos relacionamentos da Alemanha na Europa. Em outras palavras, os países devem continuar cortando custos sociais para equilibrar o orçamento. Merkel acredita que a unidade europeia é importante: sabe bem que uma das razões para o sucesso da Alemanha é que uma Europa fraca torna mais forte a economia alemã, via exportações e taxas de juros. Mas Merkel não é uma líder da Europa, ela é líder da Alemanha. Nunca tentou explicar aos seus cidadãos as razões fundamentais da vantagem alemã.
O fato é que os empréstimos às nações do sul da Europa destinaram-se, primeiramente, a pagar as dívidas dos bancos daqueles países, sendo que alto percentual foi parar nos bancos alemães, detentores de títulos da Grécia, Irlanda, Portugal e por aí vai (além de a Alemanha injetar, em seus próprios bancos, 300 bilhões de dólares).
Merkel é uma líder que, ao contrário de seus antecessores, não se sente responsável, por razões pessoais e históricas, pelos pecados passados da Alemanha. Ela não tem problema algum em projetar uma imagem controversa de seu país. Não vê problemas em manter relações difíceis com outros líderes europeus. Tem sido acusada usar como modelo a Suíça (mais Zurique que Genebra): um país que só quer saber de comercial e, basicamente, evita envolver-se na solução dos problemas internacionais, a não ser que afetem estabilidade nacional. Merkel não definiu posição alguma da Alemanha sobre assuntos globais, além do reconhecimento genérico de que os Estados Unidos são o país responsável pela ordem mundial. Ela aceitou a posição de Obama nas questões da Líbia, do Egito e da Síria, mas não comprometeu a Alemanha a tomar nenhuma medida concreta. Na prática, a Alemanha está completamente ausente de qualquer debate global, de meio ambiente a desarmamento; de governança e governabilidade ao papel das Nações Unidas.
Na Europa, ela considera que os alemães – que teriam pago seus impostos e trabalhado duro, enquanto Grécia, Irlanda e Portugal gastavam dinheiro alegremente – estavam comprometidos, sob o comando do antigo chanceler Gerhard Schröder, com um processo doloroso e não solicitado de redução do bem-estar social. O modelo social alemão, acredita, tem sido um sucesso. Discursando em Meschede, na Renânia do Norte-Vestfália, em 2011, ela afirmou claramente: “Não podemos ser solidários e aceitar que países endividados continuem como estão. A Alemanha vai ajudar, mas apenas se os outros se esforçarem e demostrarem esforços. É importante que em países como Grécia, Espanha e Portugal as pessoas não possam aposentar-se antes que na Alemanha – que todos se esforcem mais ou menos igualmente. Isso é importante… Não podemos ter uma moeda comum se alguns têm muito tempo de férias e outros, pouco. Isso não vai funcionar no longo prazo.” E em 2012, quando a ideia de emitir eurobônus (títulos garantidos por todos os países da zona do euro para sustentar as finanças dos países europeus mais fracos) foi posta de lado, ela declarou enfaticamente: “Enquanto eu viver, não haverá eurobônus.” Disse ainda: “Programas de assistência devem estar sempre sujeitos a condições bem estritas”.
Assim sendo, o modelo social da Alemanha deve tornar-se o modelo social europeu. Parece fácil do ponto de vista de Berlim, mas, para países em recessão, manter os cortes de serviços públicos causa sérios custos sociais, como já admitiu até mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI). Esses custos são vistos como desperdício e esbanjamento na Alemanha, onde o valor protestante da punição dos pecados desempenha forte, embora não declarada justificativa psicológica diante de notícias sobre o sofrimento dos cidadãos na Grécia e outros países no sul da Europa.
Merkel tem posição bem definida sobre a Europa, sempre sugerida, ainda que não expressa claramente. Ela favorece fortemente maior integração. Mas não procura fazê-lo delegando poderes às instituições européias, e sim por meio de mais e mais acordos entre a Alemanha e outros Estados. Tem resistido a ampliar os poderes do Banco Central Europeu (ECB) e diluído seu programa de controle do sistema bancário. Mas não tem nenhum problema em, por exemplo, fechar um acordo bilateral com a Espanha para aceitar profissionais qualificados como imigrantes (no ano passado a Alemanha bateu o recorde de um milhão de imigrantes), como forma de ajudar no emprego dos jovens. E tem feito várias declarações sugerindo que “é hora de retomar algumas funções de Bruxelas de volta aos Estados nacionais”.
Na verdade, isso torna Angela Merkel muito mais próxima do primeiro-ministro britânico David Cameron do que a maioria das pessoas imagina. Quando eles se conheceram, em junho de 2012, ambos assumiram exatamente as mesmas posições em relação ao orçamento europeu, deixando o presidente francês François Hollande completamente isolado. E foi Hollande quem teve de ir à luta junto a Cameron pela visão europeia, com Merkel basicamente assistindo. Cameron vê a Europa apenas como um mercado comum. A visão de Merkel não está distante disso. Ela olha para um conjunto de relações entre Estados europeus, com Bruxelas coordenado políticas comuns, mas com a condição de que os países se alinhem ao modelo social alemão.
Assim, nos próximos quatro anos não haverá grandes mudanças, ainda que um Partido Social Democrata (SPD) muito enfraquecido faça uma coalizão com Merkel. A propósito, o SPD debilitou-se precisamente por causa das reformas austeras de Schröder, e desde então não conseguiu se recompor. Fora alguns sinais progressistas emitidos durante a recente campanha eleitoral, as diferenças nas questões sociais entre o SPD e a União Democrática Cristã (CDU), de Merkel, foram mínimas. Em Dortmund (580 mil habitantes), um em cada quatro cidadãos está próximo da linha de pobreza e vive de subsídios. Nacionalmente, 6 milhões de alemães recebem alguma forma de ajuda estatal e 2,5 milhões com menos de 18 anos vivem na pobreza, de acordo com Massimo Nava, do Il Corriere della Sera. Enquanto isso, as frustrações na antiga Alemanha Oriental, que permanece mais deprimida que o resto do país, não se refletem em comparecimento às urnas, mas em abstenção. Os alemães olham para além de suas fronteiras e, temendo o pior, preferem manter o status quo.
Examinemos mais de perto uma era de Europa pós-Merkel. A partir do sul, a política de austeridade irá se propagar por toda a Europa. É possível que os cortes na seguridade social produzam alguns resultados, em termos macroeconômicos e orçamentários. A Grã-Bretanha é um bom exemplo. Cameron vem desmontando o famoso Sistema Nacional de Saúde do país, exemplo para toda a Europa depois da II Guerra Mundial. Ele vem cortando o orçamento da educação e o que mais seja possível, e também está privatizando cada vez mais. O setor financeiro corresponde hoje a 10% do PIB britânico e 2.436 banqueiros receberam mais de 1 milhão de euros em 2011, de acordo com as autoridades do Banco Europeu. O Partido Conservador obtém mais de 59% de seu financiamento na City, o centro financeiro de Londres. Em nível orçamentário parece haver uma melhoria à vista, mas, ao mesmo tempo, segundo previsões da London School of Economics para 2025, o país irá voltar aos tempos da Rainha Vitória, em termos de desigualdade social.
Essa tendência vai espalhar-se por toda a Europa – em diferentes velocidades, mas na mesma direção. Isso está derrubando a esquerda tradicional, que entrou na onda do liberalismo e globalização – ao invés de se colocar lado a lado com as vítimas. Estas, ou deixaram a política de lado ou se juntaram a partidos de protesto (geralmente xenófobos e de extrema direita), que estão surgindo em todos os lugares – desde o Partido Alternativo na Alemanha, que vem avançando, até seus semelhantes na Grã-Bretanha, Holanda, Noruega, Dinamarca, Hungria etc.
De certa forma, Merkel vem atacando e erodindo constantemente o SPD. Ele é agora um partido debilitado, que vai perder ainda mais força e credibilidade se aderir à premiê no governo. Em toda a Europa, os partidos tradicionais de esquerda estão em crise: as últimas eleições da Noruega, onde até mesmo o partido mais radical de extrema direita foi proporcionalmente melhor que os sociais-democratas, deveriam abrir os olhos de todo mundo.
O caso agora é muito sério: ao destruir os valores de justiça social e solidariedade, que eram o espírito de unidade real da Europa, Angela Merkel está, na verdade, também destruindo os valores em que o Cristianismo se baseia (ouça-se o Papa Francisco!). Quando ela deixar o cargo, muito provavelmente vai existir uma Europa bem diferente – muito radicalizada, onde possivelmente as pessoas excluídas vão retornar à política. A longo prazo, será que isso realmente corresponde aos interesses do CDU?
5 comentários:
Em junho estive em Bratislava. Perguntei ao guia o que o povo achava do euro e se queriam permanecer na CE. Arrependeram-se e queriam sair sim da CE, inclusive da zona do euro. A média salarial na Eslovênia era de 700 euros sendo que em Bratislava era de 1000 euros. Portanto todos querem trabalhar onde?
Na mesma ocasião visitei a Alemanha (Berlim, Dresden e Munique). Não tive a impressão que seja tudo isso. Berlim é uma cidade ainda ocupada. Curiosamente tudo de interessante e cultural está no antigo lado oriental boa parte reconstruída. O lado ocidental é uma cidade cosmopolita. Nada de histórico. O que se vê? Nos hotéis e restaurantes em geral, a mão de obra barata praticada por portugueses, búlgaros, turcos, gregos e outros. Os salários dos alemães tb. não é a oitava maravilha. São razoavelmente baixos. 60% da exportação alemã era para a própria Europa. Se a Europa não tem/tiver mais condições quem vai comprar esses 60%? Não precisa ser economista para entender. Ela vai para o buraco tb. E para mim, mortal e comum cidadã, a Alemanha já perdeu, se é que um dia recuperou, sua soberania. Um país que aceita 227 bases militares estadunidenses é uma extensão dos EUA.
Merkel é algo próximo a um Gabeira, ideologicamente falando (não me ocorreu ninguém melhor)
Excelente artigo que mostra a verdade sobre a Alemanha.
A Alemanha engana-se e engana a Europa por Juan Torres López [*]
Nos últimos meses foi atribuída grande importância às eleições alemãs de domingo 22, sendo consideradas precursoras de uma mudança de políticas na Europa mas creio que não as vão ter, pois parece-me que a situação política e económica não se alterará muito ali nem na Europa, seja qual for o resultado.
Uma nova vitória dos conservadores não só não modificará a política de Merkel como inclusive é possível que leve a enfraquecer o impulso que o seu governo havia dado à economia nos últimos meses a fim de melhorar sua imagem diante do eleitorado e reforçar o seu fundamentalismo. E não é possível esperar nem sequer alguma tímida reformulação do discurso europeu se não for endurecida com firmeza a posição de outros sócios da eurozona.
Tão pouco mudariam muito as coisas com uma vitória social-democrata, pouco previsível, ou inclusive de Os Verdes. Ainda que nos seus programas tentem sempre diferenciar-se dos democrata-cristãos e agora proponham o arranque de uma espécie de novos planos Marshall para reactivar as economias, se chegassem de novo a governar não se afastariam do que fez e tornará a fazer Angela Merkel.
Será assim porque os partidos políticos governantes na Alemanha são materialmente escravos desde há muito da classe empresarial e financeira que é quem na verdade marca o passo da política naquele país. Não se esqueça que foram os sociais-democratas que puseram em andamento as reformas reaccionárias que provocaram o grande incremento da desigualdade e a actual deterioração das classes trabalhadoras alemãs, e é bem sabido que suas posições sobre a Europa, o Euro ou a estratégia do Banco Central Europeu não diferem praticamente em nada das que são mantidas pela direita mais recalcitrante.
Não haverá mudanças porque o que os grandes poderes económicos puseram na mesa aproveitando a crise económica e o que agora se ilustra na Alemanha e em toda a União Europeia não é outra coisa senão a mudança radical do modelo social, ou seja, uma alteração profunda do equilíbrio de forças sociais e, portanto, uma redefinição dos direitos económicos e inclusive políticos dos cidadãos.
É um objectivo muito diferente das preferências maioritárias dos cidadãos, tal como demonstram todo tipo de inquéritos, e isso faz com que as instituições representativas onde possam reflectir-se tornam-se cada dia mais incómodas para os grandes poderes económicos. É por isso que estes últimos vêm impulsionando por todos os meios ao seu alcance o desmantelamento da democracia em toda a Europa, como denunciou entre outros o grande filósofo alemão Jürgen Habermas, pois só assim podem ser impostas as políticas que levam a essa mudança de modelo e que são tão contrárias às que desejam que se apliquem a imensa maioria da população.
Não cabem, pois, grandes mudanças após a competição eleitoral na Alemanha
Os grupos de pressão tiveram muito cuidado em impedi-las, sobretudo generalizando um discurso político carregado de mentiras que pouco a pouco penetra toda a Europa, e particularmente na Alemanha, para ir conformando uma cidadania submissa e convencida de que o que os grandes grupos financeiros propõem em seu benefício é justamente o que mais interessa aos de baixo.
As eleições gerais celebradas na Alemanha têm muito a ver com tudo isso porque são precisamente as grandes corporações e grupos financeiros desse país os que mais combativamente impulsionam essa mudança de modelo social e porque a população alemã foi especialmente bombardeada e convencida pelas mentiras e enganos em que foram envolvidas pela sua colocação em andamento.
contin:
TEIA DE ENGANOS
Se há europeus que estão a ser especialmente enganados são os alemães e se alguém engana os demais europeus são os dirigentes políticos e económicos alemães.
Engana-se aos alemães ao fazer-lhes crer que é a Alemanha a que financia o resto da Europa, quando se verifica que suas grandes empresas e bancos foram desde há anos os grandes beneficiários de uma construção europeia e do Euro mal concebidos por ter sido feito à sua medida. A Alemanha não é generosa, aproveita-se sim do seu imenso poder para tratar de submeter os demais, outra vez, num espaço económico que seus grandes grupos económicos consideram seu em toda a Europa.
São enganados quando se lhes faz acreditar que o desperdício e a irresponsabilidade dos cidadãos de outros países foram o que produziu a crise e os males que se sofrem, quando a verdade é que foram os bancos alemães aqueles que financiaram espontaneamente e sem medida as bolhas e os excessos que destroçaram as economias para engordar, durante anos, suas contas de resultados.
São enganados quando se lhes faz acreditar que são outros países que se aproveitam do esforço e dos rendimentos dos trabalhadores alemães quando na realidade são seus próprios grupos de poder económico e financeiro os que impuseram em seu favor políticas que criam desigualdade crescente e mais pobreza e o que colocaram fora da Alemanha o colossal excedente que obtiveram seus trabalhadores nos últimos anos.
Engana-se os alemães quando se lhes diz que seu modelo social é insustentável por culpa da Europa e do custo da solidariedade com outras nações, quando na realidade se há problemas de financiamento é pela cada vez menor contribuição dos proprietários de capitais alemães ao financiamento dos interesses colectivos e pela colocação dos excedentes que obtêm fora da Alemanha.
São enganados quando se lhes diz que hão de trabalhar mais que os trabalhadores de qualquer outro país, quando as estatísticas mostram que apesar de serem mais produtivos nos sectores de vanguarda, pelo maior avanço das suas economias, trabalham menos, felizmente para ele, ainda que certamente com condições de trabalho e de rendimento cada vez piores.
Engana-se os alemães e os dirigentes alemães estão a enganar os cidadãos europeus quando se lhes diz que as políticas de austeridade são a melhor forma de avançar e que além disso são necessárias pela dívida de outros países, quando a Alemanha a teve sempre mais elevada que muitos deles e quando é uma evidência clamorosa que estas políticas empobrecem toda a Europa e, por fim, os próprios trabalhadores alemães e quando só estão a servir para justificar a privatização e o desaparecimento de serviços públicos e direitos sociais.
Engana-se os alemães e os dirigentes alemães enganam toda a Europa quando se lhes diz que a dívida que há que reduzir deriva do excessivo gasto público destinado ao bem estar social, quando na realidade decorre dos juros gigantescos que se pagam aos bancos privados ao impor um banco central na Europa que não o é e que só serve para apoiar e salvar os bancos privados.
cont.
Engana-se os alemães e os dirigentes alemães enganam os europeus normais e comuns quando se lhes diz que países como Grécia, Portugal ou Espanha exigem ajudas ou resgates multimilionários para levá-los em frente, quando na realidade esses resgates só servem para salvar os bancos alemães ou as grandes empresas que vivem de fazer investimentos imperiais no resto da Europa, em muitos casos promovendo e financiando todo tipo de práticas corruptas.
Engana-se os alemães e os dirigentes alemães enganam os europeus quando se lhes diz que há que rebaixar salários para criar emprego e dessa forma só se consegue que aumente o lucro empresarial e a pobreza; ou que há que flexibilizar os mercados laborais, quando isso só se traduz em maior poder de negociação dos grandes empresários mas não em mais e sim em pior emprego; ou que há que reduzir a despesa pública quando são cada vez maiores suas aventuras e despesas militares ou as despesas financeiras que graciosamente se pagam aos bancos privados.
Engana-se os alemães e os dirigentes alemães enganam todos os cidadãos quando se apresentam como justos e eficientes reclamando estritas condições de pagamento aos agora devedores. Ocultando que países como a Grécia foram generosos com a Alemanha quando era esta quem tinha que pagar sua dívida.
Não cabe esperar grandes mudanças destas eleições alemãs porque são celebradas em meio a um cinismo institucional gigantesco, no âmbito de um colossal roubo intelectual e político que não se pode combater no seio de instituições que deixaram de ser democráticas ou por governos que são marionetas dos grupos financeiros e grandes empresários.
A estratégia da mentira triunfa, e desgraçadamente de forma muito particular na Alemanha, graças ao poder imenso que acumularam as classes mais ricas. A riqueza dos 10% mais ricos da Alemanha, por exemplo, passou dos 45% do total em 1998 para 53% em 2008; as dos 40% seguintes dos 46% para 40% e a dos 50% mais pobres dos 4% para 1%.
Isso é o que explica que apesar de 70% dos alemães afirmarem estarem conscientes e reprovarem a injustiça que implicam as actuais políticas económicas e laborais voltem a votar, na sua grande maioria, nos partidos que as executam.
Na Alemanha, como nos demais países europeus, conseguiram converter cidadãos e cidadãs titulares de direitos nos "súbditos dóceis" dos quais dizia o grande Thomas Mann, em A montanha mágica, "que demonstram em todo escritório e em todos local de trabalho o respeito devido à autoridade".
Quando os eleitores tiverem deixado de ser dóceis e ingénuos, como vêem sendo a maioria dos alemães e europeus em geral, e quando enfrentarem com decisão as autoridades corruptas e totalitárias que nos governam, as eleições começarão a ter outro significado e então sim abrirão caminho para verdadeiras mudanças políticas.
[*] Catedrático no Departamento de Teoria Económica e Economia Política da Universidade de Sevilha.
O original encontra-se no Público.es de 22/Setembro/2013 e em juantorreslopez.com/...
Nosso exemplo de evolução humana, parece ter sido falso.
Postar um comentário