Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:
A observação diária da imprensa impõe um desafio que costuma levar pesquisadores a um grande dilema da racionalidade: a necessidade de observar os detalhes dos elementos de informação sem abandonar a consciência do contexto em que são apresentados.
A profusão de estudos de semiótica disponíveis há quarenta anos ajuda a fazer a análise semântica do discurso jornalístico, permitindo que se avance numa conexão mais profunda da palavra e outros signos com a realidade. Ainda assim, há sutilezas difíceis de constatar.
Por exemplo, se vamos observar um jornal como a Folha de S.Paulo, que supostamente propõe uma relação mais transparente com o público, não apenas por abrigar opiniões aparentemente díspares, mas principalmente pela instituição do ombudsman, é preciso ir além dessa diversidade formal e descobrir o viés predominante por baixo da suposta liberdade de opinião. A conclusão pode surpreender o leitor que se satisfaz por encontrar, aqui e ali, um texto que parece andar na contramão da corrente predominante na imprensa nacional.
Ainda que o observador procure evitar citações ad nominem no exercício diário de analisar a imprensa, é preciso definir que, no caso da Folha, os dois nomes que cumprem esse papel são Janio de Freitas e Ricardo Melo, sendo que este protagoniza mais explicitamente o confronto com os autores do discurso conservador, que são maioria na rotina do jornal.
O que se está a propor, aqui, é que a presença desses dois articulistas não faz da Folhaum jornal mais diversificado e equilibrado do que os outros. Apenas mostra que a Folha é mais sutil, mas igualmente reacionária, e a instituição do ombudsman serve como um salvo-conduto para a manipulação.
O discurso da coluna que deveria funcionar como uma espécie de ouvidoria do leitor segue rigorosamente o mesmo padrão: começa reconhecendo um suposto erro do jornal, de preferência relacionando-o a um equívoco ou manipulação da fonte; depois, faz um pequeno histórico das dificuldades de apuração ou de certas intercorrências no trabalho jornalístico, e finaliza com a crítica propriamente dita. O final é quase sempre uma ambiguidade.
Efeito imediato
Em geral, o leitor fica com a sensação de que o jornal está praticando uma autocrítica que, no conteúdo, confirma aquilo que ele, leitor crítico, já havia constatado. O cidadão, digamos, intelectualmente mais exigente, se sente contemplado. Mas é quase sempre um exercício de autoflagelação: o cilício discursivo da Folha é apenas uma licença para voltar ao vício de sempre.
Veja-se, por exemplo, como a ombudsman aborda, na coluna de domingo (2/11), o factoide criado pela revista Veja na antevéspera da eleição presidencial e que foi reproduzido pela Folha no sábado (25/10), em manchete.
Segundo a ouvidora (ver aqui), a busca do furo e do protagonismo jornalístico fez os jornais esgarçarem seus critérios durante a campanha eleitoral, “dando enorme publicidade a acusações que só poderão ser comprovadas no futuro”. Daí vem uma série de ponderações sobre o caso da suposta denúncia do doleiro acusado no escândalo da Petrobras, e que foi usada pela imprensa para influenciar a decisão do eleitorado.
A justificativa oficial da Folha para publicar o factoide em manchete é de que “o jornal publica todas as informações que considera relevantes, independentemente do calendário eleitoral”. Mas, insiste a ombudsman, a ausência de fontes claramente identificadas facilita a manipulação da suposta declaração do denunciante.
O fato de que “as acusações só poderão ser comprovadas no futuro” tira qualquer legitimidade à manchete da Folha, pois seu efeito seria imediato e irremediável, mesmo porque, depois da eleição, veio a ser comprovado que, se o doleiro disse o que dizem que teria dito, estava apenas manifestando uma opinião, não apresentando uma acusação formal.
Os editores de Veja sabiam disso, ou melhor, produziram a declaração para usá-la como material de campanha política. O resto da imprensa aderiu porque segue o mesmo padrão do jornalismo partidário. Os editores da Folha não podem alegar inocência ou ignorância, ou não poderiam ser editores de um grande jornal.
A ombudsman cumpre seu papel. E os colunistas que, em minoria constrangedora, vociferam sua oposição ao viés predominante no jornal e na imprensa hegemônica, devem se sentir muito bem.
A profusão de estudos de semiótica disponíveis há quarenta anos ajuda a fazer a análise semântica do discurso jornalístico, permitindo que se avance numa conexão mais profunda da palavra e outros signos com a realidade. Ainda assim, há sutilezas difíceis de constatar.
Por exemplo, se vamos observar um jornal como a Folha de S.Paulo, que supostamente propõe uma relação mais transparente com o público, não apenas por abrigar opiniões aparentemente díspares, mas principalmente pela instituição do ombudsman, é preciso ir além dessa diversidade formal e descobrir o viés predominante por baixo da suposta liberdade de opinião. A conclusão pode surpreender o leitor que se satisfaz por encontrar, aqui e ali, um texto que parece andar na contramão da corrente predominante na imprensa nacional.
Ainda que o observador procure evitar citações ad nominem no exercício diário de analisar a imprensa, é preciso definir que, no caso da Folha, os dois nomes que cumprem esse papel são Janio de Freitas e Ricardo Melo, sendo que este protagoniza mais explicitamente o confronto com os autores do discurso conservador, que são maioria na rotina do jornal.
O que se está a propor, aqui, é que a presença desses dois articulistas não faz da Folhaum jornal mais diversificado e equilibrado do que os outros. Apenas mostra que a Folha é mais sutil, mas igualmente reacionária, e a instituição do ombudsman serve como um salvo-conduto para a manipulação.
O discurso da coluna que deveria funcionar como uma espécie de ouvidoria do leitor segue rigorosamente o mesmo padrão: começa reconhecendo um suposto erro do jornal, de preferência relacionando-o a um equívoco ou manipulação da fonte; depois, faz um pequeno histórico das dificuldades de apuração ou de certas intercorrências no trabalho jornalístico, e finaliza com a crítica propriamente dita. O final é quase sempre uma ambiguidade.
Efeito imediato
Em geral, o leitor fica com a sensação de que o jornal está praticando uma autocrítica que, no conteúdo, confirma aquilo que ele, leitor crítico, já havia constatado. O cidadão, digamos, intelectualmente mais exigente, se sente contemplado. Mas é quase sempre um exercício de autoflagelação: o cilício discursivo da Folha é apenas uma licença para voltar ao vício de sempre.
Veja-se, por exemplo, como a ombudsman aborda, na coluna de domingo (2/11), o factoide criado pela revista Veja na antevéspera da eleição presidencial e que foi reproduzido pela Folha no sábado (25/10), em manchete.
Segundo a ouvidora (ver aqui), a busca do furo e do protagonismo jornalístico fez os jornais esgarçarem seus critérios durante a campanha eleitoral, “dando enorme publicidade a acusações que só poderão ser comprovadas no futuro”. Daí vem uma série de ponderações sobre o caso da suposta denúncia do doleiro acusado no escândalo da Petrobras, e que foi usada pela imprensa para influenciar a decisão do eleitorado.
A justificativa oficial da Folha para publicar o factoide em manchete é de que “o jornal publica todas as informações que considera relevantes, independentemente do calendário eleitoral”. Mas, insiste a ombudsman, a ausência de fontes claramente identificadas facilita a manipulação da suposta declaração do denunciante.
O fato de que “as acusações só poderão ser comprovadas no futuro” tira qualquer legitimidade à manchete da Folha, pois seu efeito seria imediato e irremediável, mesmo porque, depois da eleição, veio a ser comprovado que, se o doleiro disse o que dizem que teria dito, estava apenas manifestando uma opinião, não apresentando uma acusação formal.
Os editores de Veja sabiam disso, ou melhor, produziram a declaração para usá-la como material de campanha política. O resto da imprensa aderiu porque segue o mesmo padrão do jornalismo partidário. Os editores da Folha não podem alegar inocência ou ignorância, ou não poderiam ser editores de um grande jornal.
A ombudsman cumpre seu papel. E os colunistas que, em minoria constrangedora, vociferam sua oposição ao viés predominante no jornal e na imprensa hegemônica, devem se sentir muito bem.
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