Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
“Agora escancarou”, reage Antonio Claudio Mariz de Oliveira, que defende Eduardo Leite, executivo de uma empreiteira.
“É repulsivo,” afirma Nelio Machado, advogado do acusado Fernando Santana.
Para Claudio José Lagroiva Pereira, professor de Direito Processual Penal na PUC paulista, instituição da qual foi vice-reitor, a decisão envolve uma medida absurda: “como é que o Estado brasileiro vai tirar uma porcentagem de um dinheiro que deve ser devolvido ao povo brasileiro, pois é fruto da corrupção, para entregar a um bandido?”
Num país onde esse tipo de recompensa não é previsto pela legislação - não consta sequer das regras que definem a delação premiada -, o acordo reforça a visão de que o juiz Sérgio Moro está empenhado em obter condenações fortes a qualquer preço - literalmente. A tradição jurídica brasileira admite várias concessões a um acusado capaz de auxiliar no andamento de um processo. Mas são acordos que envolvem redução de pena, suspensão de acusações consideradas pouco consistentes e assim por diante. Nem advogados nem autoridades ligadas ao mundo da Justiça já tinham ouvido falar de um caso semelhante. Para um delegado ouvido pelo 247, e que já participou de várias investigações semelhantes, “pode ser aceitável permitir que um condenando fique de posse de bens que ele pode demonstrar que adquiriu honestamente. E só.”
O curioso é que há uma década o mesmo Sergio Moro acertou com o mesmo Yousseff um acordo de delação premiada, que permitiu ao doleiro safar-se das principais acusações, entregando pouco mais de 60 concorrentes no comercio ilegal divisas - inclusive Toninho da Barcelona, o maior doleiro paulista na época - e cumprir uma pena relativamente leve. Uma das cláusulas dos acordos de delação é óbvio: os beneficiados assumem o compromisso de não retornar às atividades ilegais. Embora não tenha cumprido sua parte do pacto, o que deveria ser um agravante em seu caso, dificultando até um novo acordo acordo de delação, em 2014 Yousseff conseguiu um segundo pacto, tão generoso que lhe permite até cobrar comissão por serviços prestados.
“Estamos no mundo dos caçadores de recompensa,” afirma o professor Claudio Lagroiva, apontando para um crescimento da influência da escola utilitária da Justiça norte-americana no interior do Judiciário brasileiro. Não é uma novidade que caiu do céu, já que, através de acordos bilaterais de cooperação, mantidos pelo Departamento de Estado, muitas ideias jurídicas dos EUA ganharam curso no país em anos recentes, competindo com as escolas europeias que formaram boa parte de nossos juristas.
No debate jurídico, o termo “utilitarismo” ajuda a designar práticas destinadas a obter provas condenatórias de qualquer maneira, ainda que seja possível ferir princípios maiores do Direito. Depois dos escândalos financeiros dos anos 1990, os EUA se tornaram a pátria da delação premiada, que permitiu ao chefe de uma quadrilha, que manipulava informações privilegiadas acumular fortunas na Bolsa, salvar o pescoço em troca da delação de sócios e parceiros.
Para falar num caso extremo: durante o governo George W. Bush, a Casa Branca assinou um decreto que autorizava os interrogatórios por afogamento de prisioneiros de guerra - o utilitarismo era dizer que essa forma de violência não constituía tortura. O decreto foi revogado por Barack Obama mas ainda hoje, em determinados estados, policiais acusados de torturar prisioneiros podem até ser processados e cumprir penas - mas as provas obtidas pela tortura não são anuladas, o que implica numa forma de respaldo.
O emprego das prolongadas prisões preventivas por parte de Sérgio Moro não é definida como tortura - é uma medida prevista em lei e os prisioneiros têm sua integridade física preservada. Mas o regime é de uma dureza peculiar, como descreve o advogado Nelio Machado, num habeas corpus em que pede a soltura de seu cliente, detido, como a maioria, sem provas. O acesso de familiares de cidadãos encarcerados nas celas da Polícia Federal no Paraná, que são simples acusados, é mais restrito até do que nas penitenciárias que guardam condenados com pena transitada em julgado. O contato com advogados é mais restrito. O que se busca é uma prova que guarda uma semelhança essencial com a tortura, mesmo que não seja obtida com choques elétricos - uma confissão involuntária.
O utilitarismo é político, também. Como as investigações da Lava Jato interessam aos adversários do governo Lula-Dilma, fecha-se os olhos a um abuso. Imagine se o mesmo regime fosse empregado para se obter confissões dos envolvidos no esquema do metrô do PSDB paulista. Recorde-se a pronta resposta do Supremo Tribunal Federal quando ocorreram as prisões dos acusados na Operação Satiagraha.
Para além do necessário debate jurídico, há uma questão política. Quem lê um texto de Sérgio Moro escrito em 2004, “Considerações sobre a Operação Manni Puliti,” constata que a Operação Lava Jato estava pronta antes mesmo de aparecer a primeira denúncia sobre a Petrobras. Moro já falava na necessidade de “deslegitimar” o sistema político - processo em curso quando parlamentares e ministros são colocados contra a parede por vazamentos cuja origem ninguém assume, cujo conteúdo integral ninguém conhece. Durante uma década a Lava Jato foi uma ideia em busca de uma oportunidade, escrevi neste espaço, em 16 de janeiro. Num país onde os principais meios de comunicação são adversários assumidos do governo federal, não foi difícil obter adesão a suas ações, indispensável para dar sustentação a uma operação dirigida contra o núcleo do sistema representativo e da soberania popular.
No pedido de habeas corpus, Nélio Machado afirma: “Impoe-se que o magistrado do Paraná, o quanto antes, se dê por impedido ou se declare suspeito, pelo inesconvível apaixonamento que revela pela causa, que parece ser, em boa verdade, a sua causa, que talvez possa chamá-la de ‘minha, ‘, ‘minha causa,’ou quem sabe ‘minha luta,’tarefa incompatível com a judicatura, que há de ser impessoal.”
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