segunda-feira, 8 de junho de 2015

Congresso do PT e o futuro empoçado

Por Saul Leblon, no site Carta Maior:

A sensação de que o debate progressista gira em círculos e que desse cativeiro não sairá exceto pelo impulso de um novo ciclo de lutas e mobilizações da sociedade brasileira, não deve causar desconforto.

O peso material das ideias não pode ser subestimado, elas são fundamentais para construir o discernimento de uma época, mas a compreensão efetiva da realidade só se completa na prática transformadora, quando as ideias são levadas a provar que pertencem ao mundo através da ação.

Na semana do V Congresso Nacional do PT (que começa na 5º feira e segue até o dia 17 de junho, na Bahia) não por acaso, Carta Maior dedica seu Especial a um filósofo peculiar, Karl Marx, cujo labor teórico, como ele mesmo disse, não pretendia apenas explicar a sociedade capitalista, mas transformá-la.

A fusão entre as ideias e a prática, a práxis, vive uma quadra de dificuldades na trincheira progressista do Brasil mas sobretudo na do maior partido desse campo aqui e na AL: o PT.

A perplexidade que acomete suas fileiras diante da transição de ciclo econômico em curso decorre do lento e sofrido reencontro de suas ideias com as ruas e vice-versa.

Ao selecionar textos marxistas sobre a natureza da crise mundial iniciada em 2008, Carta Maior busca contribuir para o efetivo entendimento das raízes da encruzilhada brasileira, que paradoxalmente subordina um governo e um programa eleitos com 54 milhões de votos a uma oposição da qualidade ética e política sabida, chancelada pela mídia que a ela se ombreia.

Originária do ambiente acadêmico, Carta Maior inclui entre os seus compromissos o de contribuir para erguer pontes entre a inteligência brasileira progressista e a luta política concreta para a construção de um Brasil ordenado pela democracia social.

O propósito reafirma a pertinência deste especial de textos marxistas nessa quadra difícil da vida nacional.

É frequente a subestimação da crise global que cerca e condiciona a encruzilhada brasileira, agravando-a.

A omissão avaliza soluções que na verdade não estão credenciadas a liderar o passo seguinte da nossa história.

A compreensão fragmentada ora se rende à panaceia neoliberal que atribui um poder ubíquo aos mercados, ora enxerga na ‘vontade política’ um deus ex-machina, dotado de inexcedível capacidade de respostas, sejam quais forem os impasses contidos na caixa de Pandora da economia e da correlação de forças, que ungiu um quadro de segunda linha da direita, Eduardo Cunha, ao posto de general de campo da guerra conservadora.

Promover o realinhamento dos preços da economia nesse ambiente e alardear que assim será retomado o desenvolvimento faz parte da ofensiva da qual Cunha é o campanário insistente.

O alinhamento dos preços é um dos alicerces da macroeconomia do desenvolvimento. Trata-se de um dos requisitos de qualquer retomada consistente do crescimento. Soterrada pelo câmbio, a indústria brasileira que o diga. Daí a se proclamar, porém –como insiste o ministro Levy, que dado esse passo, os mercados farão o resto envolve o atropelo de três perguntas incômodas aos centuriões do dinheiro grosso: desenvolvimento para quem; desenvolvimento como; e desenvolvimento para quê?

Hoje essas respostas estão sendo ditadas pelo projeto derrotado no escrutínio de outubro passado.

Fetichismo semelhante com sinal trocado comete, todavia, a fé na vontade política que, não raro, colide sua crença com a rigidez das circunstancias desconsideradas.

Vontade política, câmbio ajustado, mas também taxa de juro - não a pontificada pelo rentismo, nem às expensas dos assalariados - incluem-se entre os ingredientes da difícil calibragem do desenvolvimento de uma nação.

Mas a verdade, dura verdade, é que não bastam.

A crise brasileira não se explica nem se resolve nela mesma.

Insistir nesse reducionismo, seja pela fé cega nos mercados, ou a confiança irrestrita no ativismo, adia soluções e induz a equívocos.

Entre eles, atribuir a pasmaceira do país exclusivamente a Dilma – ilusão ruminada por segmentos à esquerda; ou o cacoete daqueles que, transpirando ódio de classe, acusam o ‘voluntarismo lulopopulista’ de responsável pelos gargalos estruturais de um dos sistemas econômicos mais injustos da face da terra.

Os riscos daí decorrentes se equivalem: num extremo, propugnar saídas tão simples quanto falsas; noutro, descartar qualquer opção alternativa ao ajuste draconiano exigido pelos mercados.

Em um dos textos selecionados para o Especial deste fim de semana, o filósofo húngaro István Mészàros chama a atenção para as consequências desastrosas dessa obtusa angulação da crise vivida pelo sistema capitalista mundial.

O discípulo de Lukács sublinha aqui as consequências dramáticas de projetos que ignorem ou minimizem o efeito estruturante da supremacia financeira na economia, no ambiente social e psíquico e, claro, na luta política em nosso tempo.

Como Lukács, Mészàros adverte para a opacidade das relações mercantis, que induz à coisificação das pessoas e a atribuir o papel de sujeito às coisas –o dinheiro e o mercado entre elas.

A financeirização avassaladora de nossa época agrava os efeito dessa lente desfocada sobre a realidade.

O fetichismo de uma lógica financeira sem rosto e sem endereço, mas ubíqua, instaura a hegemonia de um ectoplasma capitalista no imaginário sociedade, a contrapelo dos requisitos econômicos e ambientais de sua sobrevivência.

A colonização dos partidos de esquerda por essa película embaçante é uma das tragédias do nosso tempo.

'O ponto importante’, diz Mészàros, ‘é que eles vêm praticando orgias financeiras como resultado de uma crise estrutural do sistema produtivo. Não é um acidente que a moeda tenha inundado de modo tão adventista o setor financeiro’, alerta o pensador, para disparar em seguida sua síntese iluminadora: ‘A acumulação de capital não pode mais funcionar adequadamente no âmbito da economia produtiva’. Ou seja, a nova hegemonia rentista passa a ser a negação de sua condição inseparável e dependente da verdadeira fonte do valor que é a exploração do trabalho assalariado. A cobra está devorando o próprio rabo.

Essa determinação crucial da luta política hoje é a base de outro texto importante deste Especial , (‘Sistema de Crédito, Capital Fictício e Crise’) de autoria do economista Luiz Gonzaga Belluzzo.

Aqui, trata-se de uma aula marxista para desvelar a mecânica estrutural da concentração de capitais que permite, de um lado, ‘antecipar’ o futuro através do crédito e do investimento; de outro, gerar massas de capital fictício, cujo supremacia sancionada desde Reagan/Tatcher/Clinton resultou em consequências sabidas e conceituadas por Mészàros.

É nesse percurso avesso à convergências que as crises regurgitam uma desordem constitutiva e assumem invariavelmente a forma de superprodução - “de capital e não de mercadorias”, pontua Belluzzo em sintonia com o filósofo húngaro.

Em um escrito sintético, ‘Marx, as crises e a "desregulação financeira’, a também economista Leda Paulani, arremata o escopo dessa nova contradição sistêmica.

Um trecho de sua síntese:

‘Há quase três décadas o capitalismo vem sendo comandado pelo lado financeiro, e isso introduziu mudanças significativas na forma de operar do sistema’, diz ela. ‘A riqueza financeira, constituída em boa parte por aquilo que Marx denominou capital fictício, cresce exponencialmente, enquanto o crescimento da renda real (PIB) e, por conseguinte, da riqueza real, dá-se de modo muito mais lento. Com isso, o sistema fica estruturalmente frágil, dado que o caráter rentista da propriedade do capital se choca com o desenvolvimento vagaroso da produção de valor excedente. As pressões que se exercem sobre o setor produtivo são por isso enormes, justificando toda sorte de barbarismos e retrocessos na relação capital-trabalho. Ademais, o sistema fica muito mais exposto às crises provocadas pelos movimentos dos estoques de riqueza (ativos), que caracterizam o lado financeiro do sistema. Dos anos 1980 para cá, o capitalismo já experimentou pelo menos cinco grandes crises, contando a maior delas, esta que ora presenciamos. Todas essas conturbações foram provocadas pela intensa mobilidade do capital financeiro planeta afora, com a recorrente formação e estouro de bolhas de ativos. A forma de “resolver” essas crises tem jogado para frente, de forma magnificada, o mesmo problema, pois busca salvar a riqueza financeira da fogueira que ela mesma provoca’, conclui Leda.

Não são tertúlias de um salão de chá marxista.

É da realidade bruta que se está falando. Essa que desafia o governo, o campo progressista e o PT , no seu V Congresso, como uma esfinge da História a cobrar a sua decifração, para não morrer.

Como formular e implantar uma política de desenvolvimento focada na construção de uma democracia social nesse ambiente de volatilidade?

Como fazê-lo contra um adversário globalizado e intangível, mas capacitado a exercer, como de fato exerce com virulência, seu poder de veto sobre governos e nações?

Há números eloquentes a rechear esse ambiente em que o próprio movimento de expansão do capital espreme e estreita o alicerce social do emprego e do trabalho qual, paradoxalmente, depende a sua efetiva valorização.

O resultado desse desencontro é a crise.

Essa na qual sobra capital especulativo, de um lado, enquanto a sociedade carece de investimento e de empregos, de outro, ao mesmo tempo em que a retração da atividade reduz a margem de ação fiscal do governo e a demanda patina.

A equação assusta até a insuspeita OCDE, que reúne 35 principais economias do planeta.

Em manifestação recente, transcrita pelo jornal Valor, seu secretário-geral, Ángel Gurría, fez um desabafo: as grandes empresas mundiais estão sentadas em trilhões de dólares de liquidez, mas não investem em produção.

Sem consertar o motor quebrado da economia mundial, Gurría vê com ceticismo a superação da crise.

‘Em um cenário de desemprego ainda elevado e de desigualdade em níveis recordes’, diz o correspondente do Valor em Geneba, Assis Moreira, ‘Gurría não escondeu o desconforto e a inquietação ao constatar que, sete anos após o início da crise, os investimentos globais continuam fracos.’

O paradoxo que desalenta um quadro qualificado da OCDE ilustra a gravidade dos desafios enfrentados por um país em luta pelo desenvolvimento nos dias que correm.

Fatos:

a) o investimento fixo (em bens de produção) nos países ricos está em média 17% abaixo do patamar de 2008;

b) o fluxo global de investimentos estrangeiros produtivos voltou a declinar em 2014;
c) mais de 200 milhões de pessoas continuam desempregadas – número 30 milhões superior ao período anterior à crise;
d) nos países desenvolvidos, a renda média dos 10% mais ricos equivale agora a quase dez vezes a renda média dos 10% mais pobres --contra a sete ou oito vezes há uma geração.
e) enquanto governos carecem de capitais para obras de infraestrutura , a OCDE informa que investidores institucionais tinham US$ 57 trilhões sob sua gestão no fim de 2013, o equivalente a 120% do PIB somado de todo os países ricos.

O empoçamento de capitais na roleta financeira corresponde, nua e cruamente a um empoçamento do futuro na vida de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo.

A aberração vai mais longe.

Ao contrário de investir em projetos produtivos, companhias com os cofres abarrotados estão destinando fatias crescentes de seus lucros aos acionistas e grandes investidores especulativos.

É mais uma dimensão da circularidade esterilizante da financeirização descrita por Mészàros, Belluzzo e Leda.

Não se trata de uma mecânica desprovida de protagonismo político.

Organizados em lobbies de pressão, grupos de grandes acionistas, fundos e megaspeculadores interferem na gestão das companhias para impor essa redistribuição dos resultados do balanço.

Uma análise encomendada pelo insuspeito The Wall Street Journal mostra que as empresas do S&P 500 ampliaram substancialmente - dobrando - seus gastos com dividendos e recompras de ações para 36% do seu fluxo de caixa, em 2013, contra 18% em 2003.

Nesse mesmo período, elas cortariam seus investimentos em fábricas e equipamentos de 33% para 29% do fluxo de caixa operacional.

Reafirma-se aqui a lição da qual o V Congresso do PT deve extrair suas consequências políticas: sem freios e contrapesos políticos, entre eles a ação coordenadora do Estado e dos interesses populares, o capitalismo jamais se disporá - hoje mais que nunca - a atender prioridades e projetos de relevância do desenvolvimento de uma nação.

Não cabe ilusões.

Políticas de desenvolvimento não lograrão êxito no século XXI - ainda que os preços estejam alinhados, como quer Levy - se não forem providenciados instrumentos de proteção contra a supremacia da lógica rentista.

O PT, seu V Congresso, dará voltas em círculos se não considerar que o partido subestimou a extensão desse descolamento do capital em relação ao seu projeto de desenvolvimento para o Brasil.

Não se trata de uma autocrítica acadêmica.

A subestimação explica, em parte, que se tenha apostado em uma regeneração das condições de mercado anteriores à crise de 2008.

Mais que isso.

Que esse erro de cálculo histórico tenha levado a outro: insistir apenas na prorrogação de estímulos ao consumo quando medidas estruturais de autoproteção do desenvolvimento deveriam ter sido tomadas diante da desordem financeira que veio para ficar - e da qual a crise de 2008 era um regurgito metabólico, não um soluço passageiro.

Quais medidas?

Por exemplo, a desassombra implantação de controles de capitais para coibir ingressos especulativos, fugas, remessas e sonegação.

Mais: uma reforma tributária indutora, que penalizasse o rentista - mas também os acionistas, hoje isentos no Brasil - de modo a tanger a sua volta aos trilhos da produção.

São medidas difíceis?

Sim.

Não serão impunes?

Não.

Ilusão propugná-las hoje?

Mais ilusório é supor que a roda do desenvolvimento poderá ser destravada sem elas.

A desregulação dos mercados financeiros que delegou ao sistema bancário o poder supranacional de mobilizar e transferir riquezas, manipular e sabotar moedas é incompatível com um projeto de futuro que tenha como meta a construção de uma democracia social no país.

Se o V Congresso do PT convergir nesse diagnóstico não poderá declinar de suas consequências.

De uma vez por todas: elas não implicam em declarar guerra ao governo Dilma.

Ao contrário.

Trata-se de repartir o ônus do diagnóstico errado assumindo a cota do partido nesse equívoco. E isso deveria ser dito pedagogicamente à população e à militância.

Abre-se a partir daí o espaço político para assentar as linhas de passagem que o novo quadro de referências exige - sem elidir o imperativo da correlação de forças atual.

A travessia requer a força e o consentimento de uma ampla frente de forças democráticas e populares para vencer os gargalos e resistências do caminho.

Os textos desse Especial pretendem modestamente contribuir para a consistência dessa reconciliação entre as ideias e a prática da luta pela construção da democracia social brasileira.

Sua leitura não promete amenidades. É uma tarefa da práxis: não se trata de explicar apenas, mas de romper o ‘empoçamento’ do futuro brasileiro.

A ver.

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