Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
É preciso tirar as consequências da entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Ricardo Balthazar, na Folha de hoje: "Os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma narrativa convincente."
Num país que não pode perder inteiramente a capacidade de separar verdade de mentira, nem a justiça da fraude, uma afirmação como esta não pode ser vista como um comentário passageiro. Não é um exercício de diletantismo intelectual. Nem uma alegoria acadêmica. É um alarme que anuncia uma tentativa de ataque a democracia.
Ex-presidente da Republica, principal referência do maior partido de oposição, que patrocina as principais iniciativas contra o mandato de Dilma Rousseff no Superior Tribunal Eleitoral e no Congresso, nem Fernando Henrique Cardoso está convencido de que há elementos para se propor o impeachment.
Essa avaliação comprova o caráter absurdo da cena ocorrida ontem na Câmara de Deputados, quando, num passo de extrema gravidade, o presidente Eduardo Cunha anunciou abertura das discussões sobre o ritual que pode abrir os debates em torno do impeachment da presidente Dilma. É preciso repetir as perguntas que cabem nessa hora: ritual? Por que? Qual foi o crime? Qual é a "narrativa"?
O artigo 85 da Constituição enumera os crimes de responsabilidade que podem dar base a uma ação contra a presidente. Dilma não pode ser enquadrada em nenhum caso, admite FHC.
Para reforçar a dificuldade de quem quer afastar a presidente de qualquer maneira, o parágrafo 4o. do artigo 86 diz que "o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções."
Essa ressalva exclui, de saída, qualquer tentativa de empregar as operações contábeis conhecidas como pedaladas -- e que eram previstas em contrato considerado regular pelo TCU -- como elemento para acusar a presidente.
Esta é a questão. Em 1992, quando Fernando Collor foi afastado, descobriu-se que o esquema clandestino do tesoureiro PC Farias ajudava a pagar as contas da casa do Presidente. Essa foi a revelação trazida pelo motorista Eriberto França, que prestava serviços a uma secretária de Collor.
Eriberto não fez delação premiada. Nem prestou depoimento depois de apodrecer na cadeia. Em declarações espontâneas e voluntárias, como quer o bom Direito, o motorista contou à CPI o que fez e viu. Graças àquilo que se chamava de "prova material", o processo contra Collor pode seguir em frente, pois os indícios recolhidos a partir do motorista demonstravam de forma irretorquível que o presidente recebia benefícios pessoais de um esquema corrupto, articulado por seu tesoureiro. E isso ocorria durante seu mandato presidencial.
O enriquecimento de PC era público e notório e fora demonstrado até pela quebra do sigilo fiscal. O mesmo se pode dizer de integrantes daquilo que se chamava República de Alagoas, que desfrutavam da intimidade do governo e gabavam-se de sua influência na troca de favores. O próprio irmão do presidente denunciou o que se passava. Não adiantou.
Até ali, havia um problema real: provar que Collor, diretamente, recebia benefícios enquanto era o presidente da República. Mesmo admitindo que muitas pessoas que foram à rua queriam afastar o presidente de qualquer maneira, com ou sem provas jurídicas, as instituições apenas se moveram nessa direção quando não havia dúvidas do envolvimento direto do presidente. Por isso o afastamento de Collor contribuiu para fortalecer a democracia.
Antes da aparição de Eriberto, a grande pergunta dos democratas de um país que enfrentava os descalabros do primeiro presidente escolhido em urna após o golpe de 64 era saber como preservar as instituições - quando as ruas se mexiam em outra direção.
Temia-se uma ação irresponsável, uma aventura sem uma "narrativa convincente." Foi só depois da denúncia de Eriberto França que o processo andou de verdade.
O próprio Fernando Henrique foi pedir ao jornalista Barbosa Lima Sobrinho e ao advogado Marcelo Lavenére que preparassem a denúncia contra Collor.
Ao contrário do que se poderia imaginar, os artigos 85 e 86 não se destinam a proteger a presidente. Sua finalidade é defender a soberania popular. Num país onde a Constituição, em seu artigo primeiro, diz que "todos os poderes emanam do povo, que o exerce através de seus representantes ou diretamente, na forma da lei".
E então: cadê a prova? E a narrativa?
É preciso tirar as consequências da entrevista de Fernando Henrique Cardoso a Ricardo Balthazar, na Folha de hoje: "Os que desejam o impeachment não construíram até hoje uma narrativa convincente."
Num país que não pode perder inteiramente a capacidade de separar verdade de mentira, nem a justiça da fraude, uma afirmação como esta não pode ser vista como um comentário passageiro. Não é um exercício de diletantismo intelectual. Nem uma alegoria acadêmica. É um alarme que anuncia uma tentativa de ataque a democracia.
Ex-presidente da Republica, principal referência do maior partido de oposição, que patrocina as principais iniciativas contra o mandato de Dilma Rousseff no Superior Tribunal Eleitoral e no Congresso, nem Fernando Henrique Cardoso está convencido de que há elementos para se propor o impeachment.
Essa avaliação comprova o caráter absurdo da cena ocorrida ontem na Câmara de Deputados, quando, num passo de extrema gravidade, o presidente Eduardo Cunha anunciou abertura das discussões sobre o ritual que pode abrir os debates em torno do impeachment da presidente Dilma. É preciso repetir as perguntas que cabem nessa hora: ritual? Por que? Qual foi o crime? Qual é a "narrativa"?
O artigo 85 da Constituição enumera os crimes de responsabilidade que podem dar base a uma ação contra a presidente. Dilma não pode ser enquadrada em nenhum caso, admite FHC.
Para reforçar a dificuldade de quem quer afastar a presidente de qualquer maneira, o parágrafo 4o. do artigo 86 diz que "o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções."
Essa ressalva exclui, de saída, qualquer tentativa de empregar as operações contábeis conhecidas como pedaladas -- e que eram previstas em contrato considerado regular pelo TCU -- como elemento para acusar a presidente.
Esta é a questão. Em 1992, quando Fernando Collor foi afastado, descobriu-se que o esquema clandestino do tesoureiro PC Farias ajudava a pagar as contas da casa do Presidente. Essa foi a revelação trazida pelo motorista Eriberto França, que prestava serviços a uma secretária de Collor.
Eriberto não fez delação premiada. Nem prestou depoimento depois de apodrecer na cadeia. Em declarações espontâneas e voluntárias, como quer o bom Direito, o motorista contou à CPI o que fez e viu. Graças àquilo que se chamava de "prova material", o processo contra Collor pode seguir em frente, pois os indícios recolhidos a partir do motorista demonstravam de forma irretorquível que o presidente recebia benefícios pessoais de um esquema corrupto, articulado por seu tesoureiro. E isso ocorria durante seu mandato presidencial.
O enriquecimento de PC era público e notório e fora demonstrado até pela quebra do sigilo fiscal. O mesmo se pode dizer de integrantes daquilo que se chamava República de Alagoas, que desfrutavam da intimidade do governo e gabavam-se de sua influência na troca de favores. O próprio irmão do presidente denunciou o que se passava. Não adiantou.
Até ali, havia um problema real: provar que Collor, diretamente, recebia benefícios enquanto era o presidente da República. Mesmo admitindo que muitas pessoas que foram à rua queriam afastar o presidente de qualquer maneira, com ou sem provas jurídicas, as instituições apenas se moveram nessa direção quando não havia dúvidas do envolvimento direto do presidente. Por isso o afastamento de Collor contribuiu para fortalecer a democracia.
Antes da aparição de Eriberto, a grande pergunta dos democratas de um país que enfrentava os descalabros do primeiro presidente escolhido em urna após o golpe de 64 era saber como preservar as instituições - quando as ruas se mexiam em outra direção.
Temia-se uma ação irresponsável, uma aventura sem uma "narrativa convincente." Foi só depois da denúncia de Eriberto França que o processo andou de verdade.
O próprio Fernando Henrique foi pedir ao jornalista Barbosa Lima Sobrinho e ao advogado Marcelo Lavenére que preparassem a denúncia contra Collor.
Ao contrário do que se poderia imaginar, os artigos 85 e 86 não se destinam a proteger a presidente. Sua finalidade é defender a soberania popular. Num país onde a Constituição, em seu artigo primeiro, diz que "todos os poderes emanam do povo, que o exerce através de seus representantes ou diretamente, na forma da lei".
E então: cadê a prova? E a narrativa?
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