Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A autocrítica de tantos jornalistas diante da notícia envolvendo um filho de Fernando Henrique Cardoso e da jornalista Mirian Dutra está fora de foco.
Editores e repórteres com influência nas grandes redações brasileiras na década de 1990 têm sido criticados por não ter dado curso a notícia de que o senador/ministro da Fazenda/presidente da República teve um filho fora do casamento.
É uma crítica menos fácil do que parece, pois desde 2012 é preciso responder a um fato novo: dois testes de DNA dizem que FHC não é o pai da criança.
De duas, uma. Ou se demonstra que os testes contém informações falsas ou erradas, como sugere Mirian Dutra, com a credibilidade que toda mãe merece.
Ou é preciso admitir que, após atravessar duas décadas em torno de uma história de paternidade fora do casamento envolvendo um presidente da República, os jornalistas brasileiros não foram capazes de encontrar um meio confiável para distinguir a pura fofoca de uma notícia real.
Pelos dados disponíveis hoje, é impossível negar que a decisão de não publicar uma linha sobre o caso pode ter evitado um erro lamentável, ainda que a motivação real não fosse defender os bons padrões do jornalismo. Apenas refletia um interesse político: proteger, de qualquer maneira, a reputação de Fernando Henrique, num período em que este se firmava como um quadro político importante da elite brasileira, condição que lhe permitiria, num prazo inferior a dez anos, chegar ao Itamaraty, ao Ministério da Fazenda e cumprir dois mandatos como Presidência da República.
Publicar notícias verdadeiras sobre a vida privada de qualquer pessoa -- um cidadão anônimo, um homem público -- é sempre um exercício discutível e complicado. Produz dores profundas, deixando feridas que nunca são inteiramente cicatrizadas. O mínimo que se pode exigir, em qualquer caso, é que elas tenham um grau máximo de segurança e confirmação, evitando vexames e constrangimentos particularmente vergonhosos caso um desmentido se faça necessário.
Qual o problema do caso, então?
Mais uma vez, a moral seletiva, o tratamento com dois pesos e duas medidas, que expressa a pesada desigualdade social brasileira. Estamos falando de um fenômeno que não se limita a este episódio específico, obviamente, mas se expressa através do jornalismo que persegue uns e protege outros, cujo exemplo mais atual é a Lava Jato e, antes dele, os dois mensalões.
Dois anos antes de surgirem os primeiros rumores sobre a gravidez de Mirian Dutra, espalhados em primeiro lugar por vários integrantes do círculo de amigos e auxiliares de FHC, o Brasil ficara estarrecido por um episódio que marcou a campanha presidencial de 1989: as reportagens sobre Lurian, a filha que Lula tivera como fruto de um namoro de curta duração, quando seu estado civil era de viúvo.
Na reta final de 1989, quando Lula subia nas pesquisas e exibia condições reais de vencer a eleição, a campanha de Fernando Collor comprou um depoimento da ex-namorada de Lula, que foi exibido no horário político e contribuiu para enfraquecer a ascensão do candidato do PT.
Lula era solteiro no momento em que a filha nasceu. Não podia, portanto, ser acusado de adultério. Registrou a menina com seu nome e vários membros da família, inclusive a avó materna, atestam que sempre prestou a assistência possível. Não podia ser acusado de mau pai, portanto. Ainda assim, sofreu um massacre. Lurian pagou o preço de quem estava interessado em questionar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva mas, à falta de argumentos políticos, queria apelar para o desapego a "valores familiares".
Num país traumatizado por uma covardia desse tipo, usar o argumento da direito a privacidade para evitar a publicação de uma história que envolvia as relações Fernando Henrique e Mirian Dutra podia até ser um ponto de vista correto como princípio geral. Mas era interesseiro demais para ser levado a sério depois que a paternidade se tornou uma moeda de troca política.
Até porque não foi o único caso. No mesmo período, descobriu-se que o governador de São Paulo Orestes Quércia tivera um filho numa relação antiga, que não terminou em casamento. Nada muito diferente daquilo que se sempre se viu em tantas famílias, em todas as épocas. Foi notícia grande, em primeira página de jornais e espaço generoso nas revistas.
Este conjunto de episódios confirma que nosso jornalismo tem mais conexões de classe do que fidelidade aos princípios profissionais. A célebre preocupação em atender a "curiosidade do leitor", mesmo quando se trata de oferecer mercadoria vulgar mas capaz de causar impacto, é sempre relativa.
Fernando Henrique não foi protegido porque os jornalistas desconfiassem de que a história fosse falsa. Possuíam aquilo que não têm mais hoje: 100% de certeza que era verdadeira. Até porque, em caso de dúvida, eram convencidos por insistentes depoimentos reservados de pessoas ligadas a família do presidente.
Mas todos fizeram a opção de não apurar, jogando nas costas de Mirian Dutra a responsabilidade de confirmar ou desmentir - em público, formalmente - aquilo que lhe era atribuído em conversas privadas. Se ela denunciasse, o caso seria publicado. Se fosse à Justiça cobrar direitos, melhor ainda. Apurar? Nunca.
Naquele mundo onde não surgira uma personalidade como o Papa Francisco, capaz de explicar a uma sociedade de tantos pais irresponsáveis que não existem mães solteiras, apareceu a guerra de uma mulher sozinha contra um presidente da República.
Isso aconteceu porque Fernando Henrique faz parte do clube fechado de homens e mulheres que controla os fios que conduzem as grandes decisões que envolvem a sociedade brasileira e controlam acessos ao poder de Estado. Essas pessoas impõem respeito e distância, até porque exibem um inegável poder de retaliação, econômica e política, extensivo a suas famílias. Não são desafiados facilmente.
Os mesmos jornais que 48 horas antes estavam exclusivamente ocupados com um apartamento que a família Lula da Silva não comprou, agora estão às voltas com um apartamento em Barcelona, que Fernando Henrique comprou em euros para o filho de Mirian Dutra. Também cabe apurar a utilização de uma concessiária de serviços de free-shop para realizar pagamentos mensais que não era conveniente realizar por meios oficiais. Ninguém deve ser acusado nem antecipado previamente sem provas -- no caso de FHC, não há risco disso acontecer -- mas é bom que tudo venha ser esclarecido. Ajuda a elevar a consciência e combater persistentes hipocrisias.
A grande lição do episódio, mais do que nunca, ensina que é preciso ter independência para apurar e investigar.
Também se confirma, mais uma vez, que é preciso respeitar o direito a privacidade, sem aceitar a moral relativa que cristaliza a existência de cidadãos de primeira e segunda classe. Isso começa por lembrar que a vida privada deve ser um direito de todos, sem distinção de classe, raça, gênero nem origem. Quando a paternidade de uma criança está no centro da notícia, esse cuidado deve ser reforçado por cautelas suplementares - até porque se trata da única pessoa que não tem responsabilidade alguma por desvios e abusos que possam ter sido cometidos.
A autocrítica de tantos jornalistas diante da notícia envolvendo um filho de Fernando Henrique Cardoso e da jornalista Mirian Dutra está fora de foco.
Editores e repórteres com influência nas grandes redações brasileiras na década de 1990 têm sido criticados por não ter dado curso a notícia de que o senador/ministro da Fazenda/presidente da República teve um filho fora do casamento.
É uma crítica menos fácil do que parece, pois desde 2012 é preciso responder a um fato novo: dois testes de DNA dizem que FHC não é o pai da criança.
De duas, uma. Ou se demonstra que os testes contém informações falsas ou erradas, como sugere Mirian Dutra, com a credibilidade que toda mãe merece.
Ou é preciso admitir que, após atravessar duas décadas em torno de uma história de paternidade fora do casamento envolvendo um presidente da República, os jornalistas brasileiros não foram capazes de encontrar um meio confiável para distinguir a pura fofoca de uma notícia real.
Pelos dados disponíveis hoje, é impossível negar que a decisão de não publicar uma linha sobre o caso pode ter evitado um erro lamentável, ainda que a motivação real não fosse defender os bons padrões do jornalismo. Apenas refletia um interesse político: proteger, de qualquer maneira, a reputação de Fernando Henrique, num período em que este se firmava como um quadro político importante da elite brasileira, condição que lhe permitiria, num prazo inferior a dez anos, chegar ao Itamaraty, ao Ministério da Fazenda e cumprir dois mandatos como Presidência da República.
Publicar notícias verdadeiras sobre a vida privada de qualquer pessoa -- um cidadão anônimo, um homem público -- é sempre um exercício discutível e complicado. Produz dores profundas, deixando feridas que nunca são inteiramente cicatrizadas. O mínimo que se pode exigir, em qualquer caso, é que elas tenham um grau máximo de segurança e confirmação, evitando vexames e constrangimentos particularmente vergonhosos caso um desmentido se faça necessário.
Qual o problema do caso, então?
Mais uma vez, a moral seletiva, o tratamento com dois pesos e duas medidas, que expressa a pesada desigualdade social brasileira. Estamos falando de um fenômeno que não se limita a este episódio específico, obviamente, mas se expressa através do jornalismo que persegue uns e protege outros, cujo exemplo mais atual é a Lava Jato e, antes dele, os dois mensalões.
Dois anos antes de surgirem os primeiros rumores sobre a gravidez de Mirian Dutra, espalhados em primeiro lugar por vários integrantes do círculo de amigos e auxiliares de FHC, o Brasil ficara estarrecido por um episódio que marcou a campanha presidencial de 1989: as reportagens sobre Lurian, a filha que Lula tivera como fruto de um namoro de curta duração, quando seu estado civil era de viúvo.
Na reta final de 1989, quando Lula subia nas pesquisas e exibia condições reais de vencer a eleição, a campanha de Fernando Collor comprou um depoimento da ex-namorada de Lula, que foi exibido no horário político e contribuiu para enfraquecer a ascensão do candidato do PT.
Lula era solteiro no momento em que a filha nasceu. Não podia, portanto, ser acusado de adultério. Registrou a menina com seu nome e vários membros da família, inclusive a avó materna, atestam que sempre prestou a assistência possível. Não podia ser acusado de mau pai, portanto. Ainda assim, sofreu um massacre. Lurian pagou o preço de quem estava interessado em questionar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva mas, à falta de argumentos políticos, queria apelar para o desapego a "valores familiares".
Num país traumatizado por uma covardia desse tipo, usar o argumento da direito a privacidade para evitar a publicação de uma história que envolvia as relações Fernando Henrique e Mirian Dutra podia até ser um ponto de vista correto como princípio geral. Mas era interesseiro demais para ser levado a sério depois que a paternidade se tornou uma moeda de troca política.
Até porque não foi o único caso. No mesmo período, descobriu-se que o governador de São Paulo Orestes Quércia tivera um filho numa relação antiga, que não terminou em casamento. Nada muito diferente daquilo que se sempre se viu em tantas famílias, em todas as épocas. Foi notícia grande, em primeira página de jornais e espaço generoso nas revistas.
Este conjunto de episódios confirma que nosso jornalismo tem mais conexões de classe do que fidelidade aos princípios profissionais. A célebre preocupação em atender a "curiosidade do leitor", mesmo quando se trata de oferecer mercadoria vulgar mas capaz de causar impacto, é sempre relativa.
Fernando Henrique não foi protegido porque os jornalistas desconfiassem de que a história fosse falsa. Possuíam aquilo que não têm mais hoje: 100% de certeza que era verdadeira. Até porque, em caso de dúvida, eram convencidos por insistentes depoimentos reservados de pessoas ligadas a família do presidente.
Mas todos fizeram a opção de não apurar, jogando nas costas de Mirian Dutra a responsabilidade de confirmar ou desmentir - em público, formalmente - aquilo que lhe era atribuído em conversas privadas. Se ela denunciasse, o caso seria publicado. Se fosse à Justiça cobrar direitos, melhor ainda. Apurar? Nunca.
Naquele mundo onde não surgira uma personalidade como o Papa Francisco, capaz de explicar a uma sociedade de tantos pais irresponsáveis que não existem mães solteiras, apareceu a guerra de uma mulher sozinha contra um presidente da República.
Isso aconteceu porque Fernando Henrique faz parte do clube fechado de homens e mulheres que controla os fios que conduzem as grandes decisões que envolvem a sociedade brasileira e controlam acessos ao poder de Estado. Essas pessoas impõem respeito e distância, até porque exibem um inegável poder de retaliação, econômica e política, extensivo a suas famílias. Não são desafiados facilmente.
Os mesmos jornais que 48 horas antes estavam exclusivamente ocupados com um apartamento que a família Lula da Silva não comprou, agora estão às voltas com um apartamento em Barcelona, que Fernando Henrique comprou em euros para o filho de Mirian Dutra. Também cabe apurar a utilização de uma concessiária de serviços de free-shop para realizar pagamentos mensais que não era conveniente realizar por meios oficiais. Ninguém deve ser acusado nem antecipado previamente sem provas -- no caso de FHC, não há risco disso acontecer -- mas é bom que tudo venha ser esclarecido. Ajuda a elevar a consciência e combater persistentes hipocrisias.
A grande lição do episódio, mais do que nunca, ensina que é preciso ter independência para apurar e investigar.
Também se confirma, mais uma vez, que é preciso respeitar o direito a privacidade, sem aceitar a moral relativa que cristaliza a existência de cidadãos de primeira e segunda classe. Isso começa por lembrar que a vida privada deve ser um direito de todos, sem distinção de classe, raça, gênero nem origem. Quando a paternidade de uma criança está no centro da notícia, esse cuidado deve ser reforçado por cautelas suplementares - até porque se trata da única pessoa que não tem responsabilidade alguma por desvios e abusos que possam ter sido cometidos.
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