Por Renan Truffi, na revista CartaCapital:
Sob pressão de entidades do setor, Michel Temer começa a deixar clara a pouca disposição em manter e expandir um dos principais programas do governo federal na área da Saúde, o Mais Médicos. Em público, o governo tenta vender à sociedade a ideia de um suposto aumento dos investimentos na iniciativa, bem avaliada por usuários e prefeitos. Enquanto isso, nos bastidores, atende aos anseios corporativos, a começar por aqueles do Conselho Federal de Medicina, que nunca escondeu sua rejeição ao programa. O maior risco reside, aliás, em uma medida pensada para atender a esses lobbies.
O Ministério da Saúde anunciou neste mês a substituição de médicos cubanos, maioria no programa. Foram abertas mil vagas exclusivas para profissionais nativos em 462 cidades. De acordo com a pasta, o objetivo é substituir 4 mil médicos cooperados por brasileiros no prazo de três anos. O número de cubanos cairia de 11,4 mil para 7,4 mil. No total, o Mais Médicos reúne atualmente 18.240 profissionais, 5.274 formados no Brasil (29%) e 1.537 com diplomas do exterior (8,4%).
O segredo do desmonte está em um ponto. O ministro Ricardo Barros decidiu extinguir a bonificação de 10% oferecida aos brasileiros na nota das provas para residência médica. Desde 2015, os selecionados podiam escolher entre o benefício ou a oferta de auxílio-moradia e alimentação na região para a qual fossem enviados. O benefício atraía a inscrição daqueles que pretendiam ingressar, após o programa, no estudo de uma especialidade, como pediatria ou ortopedia.
Além do fim da bonificação, os inscritos não poderão mais optar por trabalhar apenas durante 12 meses como profissional do programa. O candidato terá de permanecer obrigatoriamente pelo período de três anos. O ministro ainda estuda algum tipo de punição para quem deixar o Mais Médicos antes do prazo.
“A razão reside efetivamente em um pedido das entidades médicas. Como ele não conseguiu outro caminho a não ser a renovação com a Opas ou a saída dos estrangeiros do programa, teve de entregar alguma coisa. Surgiu então a proposta de retirar os 10% de bonificação”, explica Hêider Aurélio Pinto, ex-secretário de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde e responsável pelo Mais Médicos antes do impeachment de Dilma Rousseff.
Foi a bonificação de 10% que permitiu ao governo federal preencher apenas com brasileiros todas os postos de trabalho abertos desde 2015. Na convocação do ano passado, médicos com registro no País ou brasileiros graduados no exterior preencheram as 4.139 oportunidades disponíveis. O mesmo aconteceu com as vagas de reposição.
Para se ter uma ideia, a cada 100 médicos brasileiros que entravam no Mais Médicos até então, 70 optavam pela bonificação e ficavam um ano no programa, em vez de receberem perto de 2,5 mil reais em auxílio-moradia e alimentação. Motivo? A dificuldade de alguns profissionais para acessar a residência médica. “As entidades do setor têm muita facilidade para aprovar quem eles querem. Tratam de maneira muito privada. Então, qualquer medida que altere essa lógica, eles interpretam como interferência indevida”, critica Aurélio Pinto.
Os conselhos e entidades, não é de hoje, tentam interferir ou acabar com o programa. Quando o Mais Médicos foi lançado, o Conselho Federal de Medicina elaborou em conjunto com outras associações um manifesto entregue aos presidenciáveis dias antes do primeiro turno da eleição de 2014. Dentre as 44 exigências, a extinção da iniciativa.
O atual ministro nunca escondeu suas restrições ao programa. Quando o governo Temer ainda era interino, Barros declarou publicamente que o Mais Médicos era “provisório”, pois caberia “aos municípios e não ao governo federal a responsabilidade de contratar” os profissionais.
Ao contrário de Barros e dos sindicatos da categoria, a população avalia bem o programa. Um levantamento realizado no fim de 2014 pelo Grupo de Opinião Pública da Universidade Federal de Minas Gerais indicou que o Mais Médico recebe nota média de 9 pontos, em uma escala de 0 a 10. De acordo com a pesquisa, 94% dos entrevistados estavam satisfeitos ou muito satisfeitos com o atendimento. As entrevistas foram feitas com 14 mil pacientes em unidades básicas de 700 municípios de todas as regiões do País.
A alta aprovação tem levado prefeituras administradas por diferentes partidos a defender e apoiar o programa. A renovação do contrato com médicos estrangeiros por mais três anos, divulgada pelo governo Temer há alguns meses, nasceu de um pedido por entidades como a Frente Nacional de Prefeitos e a Associação Brasileira de Municípios.
“Viajo para o interior do Acre, interior da Amazônia... São os prefeitos que sustentam o Mais Médicos. Principalmente nessas regiões isoladas, o que é algo inacreditável”, conta um profissional do programa, supervisor de áreas isoladas, que pede anonimato para não sofrer represálias.
“Visitei uma cidade do Amazonas, quando três médicos se despediam após o fim da missão, e o município deu o título de cidadão honorário para os três. E não era um partido de esquerda que comandava a cidade. Os usuários criam esse vínculo forte. O secretário de Saúde queria saber como renovar com esses médicos: ‘A gente quer muito que eles fiquem, a população gosta muito deles’.”
O ataque mais grave ao programa tem sido preparado no Congresso. Tramita na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados um projeto de lei para alterar um ponto estruturante do Mais Médicos: a obrigatoriedade, como pré-requisito de acesso à residência médica, da formação na medicina geral de família e comunidade após a graduação.
Pelas regras atuais, os médicos interessados em se especializar precisariam, a partir de 2018, cumprir de um a dois anos no Programa de Residência em Medicina Geral de Família e Comunidade. A formação complementaria obrigatoriamente a atuação nas áreas do Sistema Único de Saúde.
O trecho do projeto de lei expande as opções, e no fim das contas restringiria a escolha pela medicina de família. Ou seja, os profissionais prestariam serviços no SUS para se especializar em pediatria, ginecologia, cirurgia geral e psiquiatria, entre outros. Estima-se que, sem alterar as regras, a rede pública passaria a contar com cerca de 18 mil médicos a mais.
O dispositivo elevaria o atendimento em atenção básica para cerca de 90% de cobertura nacional. O Mais Médicos prevê alterar a lógica da medicina, ao priorizar a medicina de família, assim como acontece em países como o Canadá e a Inglaterra. É essa regra que o projeto 5778 tenta alterar, com apoio de deputados do DEM e do PMDB e o lobby de associações médicas.
“Com um médico de família, o paciente frequenta um único profissional. Do ponto de vista do mercado, essa medicina gera menos procedimentos, menos custo”, argumenta Aurélio Pinto. “As entidades médicas são totalmente contrárias. Eles acusam o modelo de soviético, mas essas medidas funcionam no Reino Unido. A médio e longo prazo, seria a mudança mais profunda na formação médica.”
Sob pressão de entidades do setor, Michel Temer começa a deixar clara a pouca disposição em manter e expandir um dos principais programas do governo federal na área da Saúde, o Mais Médicos. Em público, o governo tenta vender à sociedade a ideia de um suposto aumento dos investimentos na iniciativa, bem avaliada por usuários e prefeitos. Enquanto isso, nos bastidores, atende aos anseios corporativos, a começar por aqueles do Conselho Federal de Medicina, que nunca escondeu sua rejeição ao programa. O maior risco reside, aliás, em uma medida pensada para atender a esses lobbies.
O Ministério da Saúde anunciou neste mês a substituição de médicos cubanos, maioria no programa. Foram abertas mil vagas exclusivas para profissionais nativos em 462 cidades. De acordo com a pasta, o objetivo é substituir 4 mil médicos cooperados por brasileiros no prazo de três anos. O número de cubanos cairia de 11,4 mil para 7,4 mil. No total, o Mais Médicos reúne atualmente 18.240 profissionais, 5.274 formados no Brasil (29%) e 1.537 com diplomas do exterior (8,4%).
O segredo do desmonte está em um ponto. O ministro Ricardo Barros decidiu extinguir a bonificação de 10% oferecida aos brasileiros na nota das provas para residência médica. Desde 2015, os selecionados podiam escolher entre o benefício ou a oferta de auxílio-moradia e alimentação na região para a qual fossem enviados. O benefício atraía a inscrição daqueles que pretendiam ingressar, após o programa, no estudo de uma especialidade, como pediatria ou ortopedia.
Além do fim da bonificação, os inscritos não poderão mais optar por trabalhar apenas durante 12 meses como profissional do programa. O candidato terá de permanecer obrigatoriamente pelo período de três anos. O ministro ainda estuda algum tipo de punição para quem deixar o Mais Médicos antes do prazo.
“A razão reside efetivamente em um pedido das entidades médicas. Como ele não conseguiu outro caminho a não ser a renovação com a Opas ou a saída dos estrangeiros do programa, teve de entregar alguma coisa. Surgiu então a proposta de retirar os 10% de bonificação”, explica Hêider Aurélio Pinto, ex-secretário de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde e responsável pelo Mais Médicos antes do impeachment de Dilma Rousseff.
Foi a bonificação de 10% que permitiu ao governo federal preencher apenas com brasileiros todas os postos de trabalho abertos desde 2015. Na convocação do ano passado, médicos com registro no País ou brasileiros graduados no exterior preencheram as 4.139 oportunidades disponíveis. O mesmo aconteceu com as vagas de reposição.
Para se ter uma ideia, a cada 100 médicos brasileiros que entravam no Mais Médicos até então, 70 optavam pela bonificação e ficavam um ano no programa, em vez de receberem perto de 2,5 mil reais em auxílio-moradia e alimentação. Motivo? A dificuldade de alguns profissionais para acessar a residência médica. “As entidades do setor têm muita facilidade para aprovar quem eles querem. Tratam de maneira muito privada. Então, qualquer medida que altere essa lógica, eles interpretam como interferência indevida”, critica Aurélio Pinto.
Os conselhos e entidades, não é de hoje, tentam interferir ou acabar com o programa. Quando o Mais Médicos foi lançado, o Conselho Federal de Medicina elaborou em conjunto com outras associações um manifesto entregue aos presidenciáveis dias antes do primeiro turno da eleição de 2014. Dentre as 44 exigências, a extinção da iniciativa.
O atual ministro nunca escondeu suas restrições ao programa. Quando o governo Temer ainda era interino, Barros declarou publicamente que o Mais Médicos era “provisório”, pois caberia “aos municípios e não ao governo federal a responsabilidade de contratar” os profissionais.
Ao contrário de Barros e dos sindicatos da categoria, a população avalia bem o programa. Um levantamento realizado no fim de 2014 pelo Grupo de Opinião Pública da Universidade Federal de Minas Gerais indicou que o Mais Médico recebe nota média de 9 pontos, em uma escala de 0 a 10. De acordo com a pesquisa, 94% dos entrevistados estavam satisfeitos ou muito satisfeitos com o atendimento. As entrevistas foram feitas com 14 mil pacientes em unidades básicas de 700 municípios de todas as regiões do País.
A alta aprovação tem levado prefeituras administradas por diferentes partidos a defender e apoiar o programa. A renovação do contrato com médicos estrangeiros por mais três anos, divulgada pelo governo Temer há alguns meses, nasceu de um pedido por entidades como a Frente Nacional de Prefeitos e a Associação Brasileira de Municípios.
“Viajo para o interior do Acre, interior da Amazônia... São os prefeitos que sustentam o Mais Médicos. Principalmente nessas regiões isoladas, o que é algo inacreditável”, conta um profissional do programa, supervisor de áreas isoladas, que pede anonimato para não sofrer represálias.
“Visitei uma cidade do Amazonas, quando três médicos se despediam após o fim da missão, e o município deu o título de cidadão honorário para os três. E não era um partido de esquerda que comandava a cidade. Os usuários criam esse vínculo forte. O secretário de Saúde queria saber como renovar com esses médicos: ‘A gente quer muito que eles fiquem, a população gosta muito deles’.”
O ataque mais grave ao programa tem sido preparado no Congresso. Tramita na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados um projeto de lei para alterar um ponto estruturante do Mais Médicos: a obrigatoriedade, como pré-requisito de acesso à residência médica, da formação na medicina geral de família e comunidade após a graduação.
Pelas regras atuais, os médicos interessados em se especializar precisariam, a partir de 2018, cumprir de um a dois anos no Programa de Residência em Medicina Geral de Família e Comunidade. A formação complementaria obrigatoriamente a atuação nas áreas do Sistema Único de Saúde.
O trecho do projeto de lei expande as opções, e no fim das contas restringiria a escolha pela medicina de família. Ou seja, os profissionais prestariam serviços no SUS para se especializar em pediatria, ginecologia, cirurgia geral e psiquiatria, entre outros. Estima-se que, sem alterar as regras, a rede pública passaria a contar com cerca de 18 mil médicos a mais.
O dispositivo elevaria o atendimento em atenção básica para cerca de 90% de cobertura nacional. O Mais Médicos prevê alterar a lógica da medicina, ao priorizar a medicina de família, assim como acontece em países como o Canadá e a Inglaterra. É essa regra que o projeto 5778 tenta alterar, com apoio de deputados do DEM e do PMDB e o lobby de associações médicas.
“Com um médico de família, o paciente frequenta um único profissional. Do ponto de vista do mercado, essa medicina gera menos procedimentos, menos custo”, argumenta Aurélio Pinto. “As entidades médicas são totalmente contrárias. Eles acusam o modelo de soviético, mas essas medidas funcionam no Reino Unido. A médio e longo prazo, seria a mudança mais profunda na formação médica.”
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