Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Em bom momento o Supremo interrompeu a votação sobre delações premiadas, num debate que será retomado na quarta-feira.
Apesar do placar de 7 a 0, que indica uma maioria matemática já formada num plenário de onze ministros, a pausa pode inspirar uma reflexão necessária, que envolve uma questão essencial da democracia.
Por trás desse debate, não se discute uma forma mais eficaz de combater a corrupção - objetivo com o qual o país inteiro está de acordo, ainda que existam divergências naturais quanto aos métodos empregados.
Está em discussão a preservação do Supremo Tribunal Federal como um dos três poderes da República - aquele que não deve acusar nem defender, mas julgar, atividade que deve se caracterizar pelo equilíbrio e isenção.
O debate envolve o caráter das delações da Lava Jato, assunto que tem gerado desconforto e mal-estar em áreas crescentes do Judiciário e mesmo entre aliados de primeira hora do golpe. Depois de assistir de camarote às agruras de personalidades ligadas ao Partido dos Trabalhadores, temem que seus amigos do peito sejam levados para as "masmorras de Curitiba", como disse Teori Zavaski, certa vez.
A proposta em debate pretende dar garantias aos delatores. Uma vez aprovadas pelo ministro relator - no caso, Edson Fachin - as delações não poderão ser revistas, nem modificadas nem anuladas até o momento da sentença. Detalhe: o relator nem julga o mérito da delação. Verifica se não foram cometidos deslizes de forma, que são importantes - envolvem o caráter voluntário do depoimento por exemplo - mas não definem tudo, é claro.
Pela decisão de ontem, parece aceitável, para a maioria do Supremo, receber um pacote pronto, elaborado pelo Ministério Público Federal.
É uma mudança de fundo, quando se sabe que o MP não cumpre uma função neutra no Judiciário.
Comanda a Polícia Federal e é o responsável pela acusação. Por causa disso, a obrigação legal dos procuradores é explorar toda e qualquer possibilidade de descobrir um crime, mesmo a mais remota. Seus integrantes têm um grau de autonomia funcional com poucos paralelos no mundo -- nenhum paralelo, segundo determinados analistas. Do lado oposto, como se sabe, ficam os advogados que representam o direito de defesa.
A todo juiz, da primeira instância ao Supremo, cabe exibir uma postura equidistante, para ouvir as partes e julgar conforme a Constituição em vigor. É um cuidado ainda mais necessário num país onde o MP adquiriu uma musculatura especialmente poderosa.
Num país onde o Ministério Público segue a regra que gosta de definir como "em dúvida, pró-sociedade", cabe ao juiz assegurar o mandamento "em dúvida, pró-réu," que sintetiza a presunção da inocência.
Ao abrir mão do direito de reexaminar uma delação, a balança que o Supremo deveria regular fica inteiramente desequilibrada. Não é qualquer mudança.
Na saída da ditadura militar, o país aprovou, a partir do voto popular, uma Constituição garantista, na qual os direitos e garantias individuais são o pilar do sistema jurídico e, por essa vida, das liberdades públicas. Com a mudança projetada ontem, aponta-se para uma medida do universo punitivista, onde predomina a acusação e a vontade de punir.
Você até pode achar que é assim mesmo, que a roubalheira está demais e é preciso fazer alguma coisa de qualquer maneira. A experiência ensina que este é o caminho seguro para o desastre. Usar situações de excepcionais para justificar decisões excepcionais é o caminho óbvio para estados de exceção -- o nome científico para ditaduras e tiranias.
No período do Terror de Stalin, os tribunais se limitavam a referendar as decisões do procurador Andrey Vychinzky, especialista em confissões e delações que levaram 200 000 pessoas a morte.
A decisão de ontem ilustra um aspecto importante do momento atual. Desmoralizado por denúncias de corrupção devastadoras, combatido por manifestações cada vez mais amplas que pedem sua saída imediata, Michel Temer encontra-se em situação insustentável. Sua sobrevivência depende de um equilíbrio de forças cada vez mais precário.
Os aliados que articularam o golpe contra Dilma se encontram divididos entre duas opções. A possibilidade de garantir sua sobrevivência até o fim do mandato, cada vez mais difícil. E a organização de um golpe dentro do golpe, que seja capaz de impedir que a derrocada do governo abra caminho para a antecipação de eleições-diretas.
Essa situação explica o movimento da Globo e aliados para, no interior das instituições e em linha direta com uma fatia importante do Supremo, promover um golpe dentro do golpe. A receita é livrar-se de um presidente que se transformou num perigo público e, ao mesmo tempo, reforçar a artilharia contra eventuais forças que podem liderar a luta por diretas -- a começar por Lula. Uma operação de alta precisão, diga-se.
É curioso notar que o principal argumento usado no STF pela preservação das delações como um acordo imutável entre o Estado e delinquentes de grande fortuna é o da lealdade.
Diz-se que o Estado deve ser leal a seus compromissos. Se fez um acordo, deve cumprir o acertado.
Parece uma conversa entre cavalheiros. Confesso que quase fiquei emocionado.
O mesmo argumento pode ser lido nos jornais de hoje.
Vamos entender bem o que está em curso. Mesmo que uma maioria de ministros considere absurdo um acordo que garante imunidade absoluta para malfeitores que resolveram delatar - caso dos irmãos Joesley e sócios mais próximos - o STF não tem o direito de voltar atrás. Ainda que apareçam fatos novos - e sabemos como o nosso Brasil é rico em novidades - nada se poderá fazer até o momento da sentença. O Supremo assiste em silêncio, em posição subalterna.
Dita no meio de uma seção da tarde ilustrada por palavras incompreensíveis para 99,9% da plateia, a palavra "lealdade" é de fácil compreensão e envolve valores que todos respeitam. Ninguém quer viver num pais onde o Estado não cumpre o que combina, certo?
O problema é que a palavra "lealdade" envolve um valor essencial da condição humana e do convívio em sociedade. Seja nas relações entre marido e mulher, patrão e empregado, governantes e governados, só funciona num sistema onde envolve reciprocidade.
E aí nós chegamos a um dado crucial. O mesmo STF que está prestes a aprovar uma jurisprudência em nome da lealdade devida a grandes tubarões da corrupção, que falam de uma conta de 150 milhões de dólares na Suíça como se fosse uma caderneta de poupança no banco da esquina, não é capaz de assegurar o cumprimento de palavras que se encontram escritas na Constituição.
Se você está preocupado com liberdades individuais, pense num sistema carcerário que mantém 40% dos prisioneiros em regime de prisão provisória, contrariando a regra elementar de que uma pessoa só pode ser presa depois que a sentença transitou em julgado.
Se tem uma dívida a receber, já reconhecida pelo próprio Estado, não custa recordar os bilhões de reais acumulados na fila dos precatórios, para centenas de milhares de homens e mulheres - alguns cálculos falam em 3% do PIB, rolados ano após ano, numa deslealdade regular, instituída.
Na luta para conseguir um exame urgente no SUS, pergunte pelo artigo 6 da Constituição, que diz que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado." (Repita a pergunta quando, em segundo grau de deslealdade, seu plano de saúde for reajustado pelo dobro da inflação).
Nas caminhadas pelo Brasil, quando se deparar com aquela miséria de causar depressão, pense no parágrafo III do artigo terceiro da Constituição. Ali se combinou que um dos "objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil" é "reduzir a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades regionais."
Quando perceber que o número de crianças e famílias que pedem esmola na rua não para de aumentar, tenha uma certeza: essa tragédia vai aumentar.
Com a aprovação da Emenda que fixa o teto para os Gastos, que o STF assistiu em silêncio, esse quadro de deslealdade absoluta, total, irá agravar-se. Quando o debate sobre a reforma da Previdência avançar, recorde a deslealdade aos aposentados do mundo trabalho -- e a lealdade generosa a altos funcionários do Estado, inclusive do Judiciário.
Mas podemos ficar tranquilos.
Quando um delinquente arrependido fizer um acordo, será tratado com toda lealdade.
Vamos aguardar até quarta-feira para verificar se é isso mesmo.
Em bom momento o Supremo interrompeu a votação sobre delações premiadas, num debate que será retomado na quarta-feira.
Apesar do placar de 7 a 0, que indica uma maioria matemática já formada num plenário de onze ministros, a pausa pode inspirar uma reflexão necessária, que envolve uma questão essencial da democracia.
Por trás desse debate, não se discute uma forma mais eficaz de combater a corrupção - objetivo com o qual o país inteiro está de acordo, ainda que existam divergências naturais quanto aos métodos empregados.
Está em discussão a preservação do Supremo Tribunal Federal como um dos três poderes da República - aquele que não deve acusar nem defender, mas julgar, atividade que deve se caracterizar pelo equilíbrio e isenção.
O debate envolve o caráter das delações da Lava Jato, assunto que tem gerado desconforto e mal-estar em áreas crescentes do Judiciário e mesmo entre aliados de primeira hora do golpe. Depois de assistir de camarote às agruras de personalidades ligadas ao Partido dos Trabalhadores, temem que seus amigos do peito sejam levados para as "masmorras de Curitiba", como disse Teori Zavaski, certa vez.
A proposta em debate pretende dar garantias aos delatores. Uma vez aprovadas pelo ministro relator - no caso, Edson Fachin - as delações não poderão ser revistas, nem modificadas nem anuladas até o momento da sentença. Detalhe: o relator nem julga o mérito da delação. Verifica se não foram cometidos deslizes de forma, que são importantes - envolvem o caráter voluntário do depoimento por exemplo - mas não definem tudo, é claro.
Pela decisão de ontem, parece aceitável, para a maioria do Supremo, receber um pacote pronto, elaborado pelo Ministério Público Federal.
É uma mudança de fundo, quando se sabe que o MP não cumpre uma função neutra no Judiciário.
Comanda a Polícia Federal e é o responsável pela acusação. Por causa disso, a obrigação legal dos procuradores é explorar toda e qualquer possibilidade de descobrir um crime, mesmo a mais remota. Seus integrantes têm um grau de autonomia funcional com poucos paralelos no mundo -- nenhum paralelo, segundo determinados analistas. Do lado oposto, como se sabe, ficam os advogados que representam o direito de defesa.
A todo juiz, da primeira instância ao Supremo, cabe exibir uma postura equidistante, para ouvir as partes e julgar conforme a Constituição em vigor. É um cuidado ainda mais necessário num país onde o MP adquiriu uma musculatura especialmente poderosa.
Num país onde o Ministério Público segue a regra que gosta de definir como "em dúvida, pró-sociedade", cabe ao juiz assegurar o mandamento "em dúvida, pró-réu," que sintetiza a presunção da inocência.
Ao abrir mão do direito de reexaminar uma delação, a balança que o Supremo deveria regular fica inteiramente desequilibrada. Não é qualquer mudança.
Na saída da ditadura militar, o país aprovou, a partir do voto popular, uma Constituição garantista, na qual os direitos e garantias individuais são o pilar do sistema jurídico e, por essa vida, das liberdades públicas. Com a mudança projetada ontem, aponta-se para uma medida do universo punitivista, onde predomina a acusação e a vontade de punir.
Você até pode achar que é assim mesmo, que a roubalheira está demais e é preciso fazer alguma coisa de qualquer maneira. A experiência ensina que este é o caminho seguro para o desastre. Usar situações de excepcionais para justificar decisões excepcionais é o caminho óbvio para estados de exceção -- o nome científico para ditaduras e tiranias.
No período do Terror de Stalin, os tribunais se limitavam a referendar as decisões do procurador Andrey Vychinzky, especialista em confissões e delações que levaram 200 000 pessoas a morte.
A decisão de ontem ilustra um aspecto importante do momento atual. Desmoralizado por denúncias de corrupção devastadoras, combatido por manifestações cada vez mais amplas que pedem sua saída imediata, Michel Temer encontra-se em situação insustentável. Sua sobrevivência depende de um equilíbrio de forças cada vez mais precário.
Os aliados que articularam o golpe contra Dilma se encontram divididos entre duas opções. A possibilidade de garantir sua sobrevivência até o fim do mandato, cada vez mais difícil. E a organização de um golpe dentro do golpe, que seja capaz de impedir que a derrocada do governo abra caminho para a antecipação de eleições-diretas.
Essa situação explica o movimento da Globo e aliados para, no interior das instituições e em linha direta com uma fatia importante do Supremo, promover um golpe dentro do golpe. A receita é livrar-se de um presidente que se transformou num perigo público e, ao mesmo tempo, reforçar a artilharia contra eventuais forças que podem liderar a luta por diretas -- a começar por Lula. Uma operação de alta precisão, diga-se.
É curioso notar que o principal argumento usado no STF pela preservação das delações como um acordo imutável entre o Estado e delinquentes de grande fortuna é o da lealdade.
Diz-se que o Estado deve ser leal a seus compromissos. Se fez um acordo, deve cumprir o acertado.
Parece uma conversa entre cavalheiros. Confesso que quase fiquei emocionado.
O mesmo argumento pode ser lido nos jornais de hoje.
Vamos entender bem o que está em curso. Mesmo que uma maioria de ministros considere absurdo um acordo que garante imunidade absoluta para malfeitores que resolveram delatar - caso dos irmãos Joesley e sócios mais próximos - o STF não tem o direito de voltar atrás. Ainda que apareçam fatos novos - e sabemos como o nosso Brasil é rico em novidades - nada se poderá fazer até o momento da sentença. O Supremo assiste em silêncio, em posição subalterna.
Dita no meio de uma seção da tarde ilustrada por palavras incompreensíveis para 99,9% da plateia, a palavra "lealdade" é de fácil compreensão e envolve valores que todos respeitam. Ninguém quer viver num pais onde o Estado não cumpre o que combina, certo?
O problema é que a palavra "lealdade" envolve um valor essencial da condição humana e do convívio em sociedade. Seja nas relações entre marido e mulher, patrão e empregado, governantes e governados, só funciona num sistema onde envolve reciprocidade.
E aí nós chegamos a um dado crucial. O mesmo STF que está prestes a aprovar uma jurisprudência em nome da lealdade devida a grandes tubarões da corrupção, que falam de uma conta de 150 milhões de dólares na Suíça como se fosse uma caderneta de poupança no banco da esquina, não é capaz de assegurar o cumprimento de palavras que se encontram escritas na Constituição.
Se você está preocupado com liberdades individuais, pense num sistema carcerário que mantém 40% dos prisioneiros em regime de prisão provisória, contrariando a regra elementar de que uma pessoa só pode ser presa depois que a sentença transitou em julgado.
Se tem uma dívida a receber, já reconhecida pelo próprio Estado, não custa recordar os bilhões de reais acumulados na fila dos precatórios, para centenas de milhares de homens e mulheres - alguns cálculos falam em 3% do PIB, rolados ano após ano, numa deslealdade regular, instituída.
Na luta para conseguir um exame urgente no SUS, pergunte pelo artigo 6 da Constituição, que diz que a "saúde é um direito de todos e um dever do Estado." (Repita a pergunta quando, em segundo grau de deslealdade, seu plano de saúde for reajustado pelo dobro da inflação).
Nas caminhadas pelo Brasil, quando se deparar com aquela miséria de causar depressão, pense no parágrafo III do artigo terceiro da Constituição. Ali se combinou que um dos "objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil" é "reduzir a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades regionais."
Quando perceber que o número de crianças e famílias que pedem esmola na rua não para de aumentar, tenha uma certeza: essa tragédia vai aumentar.
Com a aprovação da Emenda que fixa o teto para os Gastos, que o STF assistiu em silêncio, esse quadro de deslealdade absoluta, total, irá agravar-se. Quando o debate sobre a reforma da Previdência avançar, recorde a deslealdade aos aposentados do mundo trabalho -- e a lealdade generosa a altos funcionários do Estado, inclusive do Judiciário.
Mas podemos ficar tranquilos.
Quando um delinquente arrependido fizer um acordo, será tratado com toda lealdade.
Vamos aguardar até quarta-feira para verificar se é isso mesmo.
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