Por Márcio Sotelo Felippe, no site Justificando:
Concluído em primeira instância o “processo do tríplex”, de fato constata-se que crimes foram cometidos. Os do juiz. Sobre os imputados ao réu nada se pode dizer.
Trata-se de lawfare. A aniquilação de um personagem político pela via de mecanismos judiciais. A série de episódios grotescos que caracterizou a jurisdição nesse caso não deixa qualquer dúvida a respeito. Só o fato de o processo entrar para o imaginário social como um combate “Moro vs. Lula” evidencia o caráter teratológico da atuação do magistrado. Moro cometeu crimes, violou deveres funcionais triviais, atingiu direitos e garantias constitucionais do réu, feriu o sigilo de suas comunicações, quis expô-lo e humilhá-lo publicamente, manteve-o detido sem causa por horas, revelou conversas íntimas de seus familiares.
Vejamos, nessa perspectiva, algumas das arbitrariedades cometidas pelo juiz e aspectos da decisão. O reconhecimento da validade dessa sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente evidência de que vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil pedaço de papel.
Violação do sigilo telefônico
A Constituição de 1988 estabelece o sigilo das comunicações como direito e garantia fundamental no artigo 5º., inciso XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. ”
Há duas condições para que se possa violar uma comunicação telefônica: (i) ordem judicial; (ii) para investigação criminal ou instrução criminal penal. A ressalva está regulamentada na Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que, em seu artigo 10, dispõe que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.
Moro havia determinado escutas telefônicas de linhas utilizadas pelo ex-presidente Lula. No dia 16 de março de 2016, às 11h13, suspendeu a medida e comunicou à Polícia Federal. O diálogo entre Lula e Dilma foi captado às 13:32hs, quando já não estava em vigor a medida. Moro recebeu a gravação e às 16:21hs é registrado o despacho em que levantou o sigilo e tornou pública a conversa entre a presidenta e o ex-presidente, em seguida divulgada pela Rede Globo.
A conduta enquadra-se rigorosamente no que prevê como crime a Lei 9.296/96. A gravação já não estava mais coberta pela autorização judicial e não havia objetivo autorizado por lei. O dolo foi específico e completamente impregnado de interesse político. Lula havia sido nomeado ministro e tomaria posse no dia seguinte. A divulgação do áudio, naquele dia, por intermédio da Rede Globo, visou criar clima político para inviabilizar a investidura do ex-presidente. Moro utilizou-se criminosa e indignamente da toga para impor a Lula um revés político, tumultuar o país e criar clima para o impeachment da presidenta.
O ministro Teori Zavaski considerou patente a ilegalidade da divulgação da escuta. Neste caso a ilegalidade era evidentemente crime. O ministro, no entanto, absteve-se da conclusão, não só nesse momento, mas também, como seus pares, quando o assunto foi ao plenário do STF.
Abuso de autoridade
As hipóteses de condução coercitiva são taxativas no Código de Processo Penal. Pode ser determinada em dois casos, previstos nos artigos 218 e 260. Neste, quando o acusado não atender à intimação para o interrogatório. Naquele, quando a testemunha não atender à intimação.
Lula foi arrancado de sua casa ao alvorecer e levado ao aeroporto de Congonhas. O ex-presidente não era naquele momento (4 de março de 2016) réu e não havia sido intimado. Nunca houve uma explicação aceitável para ser conduzido ao aeroporto, dada a existência de múltiplas instalações da União na cidade de São Paulo em que poderia ser tomado o seu depoimento “sem tumulto” (explicação dada por Moro).
Pesa a suspeita de que a ideia era conduzi-lo a Curitiba. Pretendia-se um espetáculo midiático (a imprensa fora avisada) com o perverso conteúdo de uma humilhação pública do ex-presidente. Lula foi privado por seis horas de sua liberdade. Tanto se tratou de violação à garantia constitucional da liberdade individual quanto de abuso de autoridade, como previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965: ‘constitui também abuso de autoridade (…) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. ”
Grampo no escritório dos advogados de Lula
Todos os telefones do escritório de Advocacia Teixeira Martins foram grampeados. Roberto Teixeira, notório advogado de Lula, é o titular do escritório. A operadora Telefônica comunicou a Moro que se tratava de escritório de advocacia. A prerrogativa de sigilo na comunicação advogado – cliente é inerente ao direito de defesa. Moro escusou-se de forma que beirou a zombaria: não havia atentado para os ofícios da operadora em face do volume de serviços de sua Vara, dos inúmeros processos que lá correm. Ocorre que Moro tem designação exclusiva e cuida apenas dos processos da Lava Jato. Desse modo, ou confessou grave negligência ou mentiu. Negligência que nunca se viu quando se tratava de matéria da acusação.
A corrupção passiva
O fato pelo qual Lula foi condenado pode ser assim sintetizado. Segundo a acusação, a OAS, responsável por obras em duas refinarias da Petrobrás, distribuía propinas a diretores da estatal e agentes políticos. Teria cabido a Lula vantagem auferida basicamente por meio da diferença de preço entre um apartamento simples e um tríplex em um edifício situado no Guarujá, diferença que somaria R$ 2.429.921,00. Por isso Lula teria incorrido no crime de corrupção passiva, que consiste, de acordo com o artigo 317 do Código Penal, em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
A condenação somente se justificaria se demonstrado que Lula tinha o domínio do que ocorria na Petrobrás. Que consentiu, aderiu, participou e que houve prática de ato de ofício recompensado pelo apartamento do Guarujá. Recorde-se que Collor foi absolvido exatamente porque não demonstrada a prática do ato de ofício no crime de corrupção passiva.
Nada foi provado. Não há o mais remoto indício de prática de ato de ofício ou do domínio do que acontecia no âmbito da estatal. Essa fragilidade Moro tentou, em vão, compensar com confissões informais (não houve o acordo formal de delação premiada) dos corréus da OAS, particularmente Leo Pinheiro. Após negar, em uma primeira delação, a participação de Lula no esquema das propinas, Pinheiro mudou seu depoimento quando foi preso por Moro. Viu a oportunidade de conseguir benefícios dizendo para Moro o que todo mundo sabia que Moro queria ouvir. Embora condenado a mais de trinta anos também em outro processo, teve suas penas unificadas para dois anos e seis meses de reclusão.
Lavagem de dinheiro
Está tipificada no artigo 1º. da Lei 9.613/98: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. O fato de o apartamento constar em nome da OAS, sendo supostamente Lula o “proprietário de fato” – a alegada vantagem pelo ato de ofício jamais praticado – ensejou a condenação por lavagem de dinheiro.
O entendimento de que o próprio autor do crime antecedente pode ser sujeito ativo da lavagem de dinheiro, embora tenha adeptos, é insustentável. É parte da sanha punitivista que nos assola. Destaca-se parte do “iter criminis” para torná-lo outro crime.
Os verbos que são o núcleo do tipo, ocultar ou dissimular, são inerentes ao crime antecedente. Ninguém comete algum crime sem cuidar de não expor o seu produto para que possa obter a vantagem que o moveu. Ninguém furta, por exemplo, um automóvel para desfilar ostensivamente com ele pelas ruas da cidade. A ocultação ou dissimulação é meio para o exaurimento do crime, apropriação final da vantagem. Portanto, punir o próprio autor do crime por meramente ocultar ou dissimular é punir duas vezes pelo mesmo fato, o chamado “bis in idem”.
Mesmo que se admita que o próprio sujeito ativo do crime antecedente possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro, seria necessária uma segunda conduta para tornar aproveitável o fruto do crime. No julgamento da AP 470, o mensalão, vários ministros se pronunciaram nesse sentido. Pela síntese e clareza tomo uma passagem do ministro Barroso:
“O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida”.
Indeterminação da data dos fatos e prescrição
Moro em nenhum momento estabelece em que data exata teriam se dado os fatos. Isso é indispensável para verificar a consumação e a consumação é o marco inicial da prescrição. Lula tem hoje mais de 70 anos, o que reduz à metade os prazos prescricionais. Como aferir a prescrição?
Tudo isto é típico lawfare. A destruição do inimigo político por meio de um processo aparentemente legal.
Moro não é um juiz solitário e temerário perseguindo um personagem político. O lawfare somente chegou a esse ponto porque ele tem endosso, cobertura e cumplicidade por parte dos Tribunais superiores, inclusive do STF, que, entre outras coisas, se omitiu diante do crime de violação do sigilo da comunicação telefônica (Teori não se deteve sobre o assunto quando o tema foi a plenário, assim como seus pares). Com isso recebeu “licença para matar”.
No TRF-4, o relator da representação contra Moro pela violação do sigilo telefônico socorreu-se de Carl Schmitt, o príncipe dos juristas nazistas, para abrigar o fundamento de que se tratava de uma situação excepcional, negando assim eficácia aos direitos e garantias constitucionais do ex-presidente.
Moro tem a cobertura favorável da grande mídia, que fez dele no imaginário popular o santo guerreiro combatendo o dragão da maldade.
Moro participou, consciente, deliberadamente, do golpe do impeachment. A divulgação do áudio da conversa entre Lula e Dilma ilegalmente, entregue para a Rede Globo no dia imediatamente anterior à posse de Lula como ministro, não podia ter outro objetivo.
Importa, sobretudo, concluir que não estamos mais em uma democracia. O que temos, com os preparativos e a consumação do impeachment, é uma ditadura de novo tipo, que preserva enganosamente as instituições políticas e jurídicas clássicas do Estado liberal e democrático, mas esvazia-as do real conteúdo democrático (o que o jurista e magistrado Rubens Casara vem denominando pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o que antes se fazia pela força das armas e pela violência para destruir o adversário político agora se faz pelo lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas antigas ditaduras tinha um papel acessório, de coadjuvante, torna-se o protagonista da violência estatal ilegítima. Antes era um soldado ou policial que na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.
* Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Concluído em primeira instância o “processo do tríplex”, de fato constata-se que crimes foram cometidos. Os do juiz. Sobre os imputados ao réu nada se pode dizer.
Trata-se de lawfare. A aniquilação de um personagem político pela via de mecanismos judiciais. A série de episódios grotescos que caracterizou a jurisdição nesse caso não deixa qualquer dúvida a respeito. Só o fato de o processo entrar para o imaginário social como um combate “Moro vs. Lula” evidencia o caráter teratológico da atuação do magistrado. Moro cometeu crimes, violou deveres funcionais triviais, atingiu direitos e garantias constitucionais do réu, feriu o sigilo de suas comunicações, quis expô-lo e humilhá-lo publicamente, manteve-o detido sem causa por horas, revelou conversas íntimas de seus familiares.
Vejamos, nessa perspectiva, algumas das arbitrariedades cometidas pelo juiz e aspectos da decisão. O reconhecimento da validade dessa sentença pelos Tribunais superiores será a mais contundente evidência de que vivemos um estado de exceção e a Constituição é hoje um inútil pedaço de papel.
Violação do sigilo telefônico
A Constituição de 1988 estabelece o sigilo das comunicações como direito e garantia fundamental no artigo 5º., inciso XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. ”
Há duas condições para que se possa violar uma comunicação telefônica: (i) ordem judicial; (ii) para investigação criminal ou instrução criminal penal. A ressalva está regulamentada na Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, que, em seu artigo 10, dispõe que “constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A pena prevista é de dois a quatro anos de reclusão e multa.
Moro havia determinado escutas telefônicas de linhas utilizadas pelo ex-presidente Lula. No dia 16 de março de 2016, às 11h13, suspendeu a medida e comunicou à Polícia Federal. O diálogo entre Lula e Dilma foi captado às 13:32hs, quando já não estava em vigor a medida. Moro recebeu a gravação e às 16:21hs é registrado o despacho em que levantou o sigilo e tornou pública a conversa entre a presidenta e o ex-presidente, em seguida divulgada pela Rede Globo.
A conduta enquadra-se rigorosamente no que prevê como crime a Lei 9.296/96. A gravação já não estava mais coberta pela autorização judicial e não havia objetivo autorizado por lei. O dolo foi específico e completamente impregnado de interesse político. Lula havia sido nomeado ministro e tomaria posse no dia seguinte. A divulgação do áudio, naquele dia, por intermédio da Rede Globo, visou criar clima político para inviabilizar a investidura do ex-presidente. Moro utilizou-se criminosa e indignamente da toga para impor a Lula um revés político, tumultuar o país e criar clima para o impeachment da presidenta.
O ministro Teori Zavaski considerou patente a ilegalidade da divulgação da escuta. Neste caso a ilegalidade era evidentemente crime. O ministro, no entanto, absteve-se da conclusão, não só nesse momento, mas também, como seus pares, quando o assunto foi ao plenário do STF.
Abuso de autoridade
As hipóteses de condução coercitiva são taxativas no Código de Processo Penal. Pode ser determinada em dois casos, previstos nos artigos 218 e 260. Neste, quando o acusado não atender à intimação para o interrogatório. Naquele, quando a testemunha não atender à intimação.
Lula foi arrancado de sua casa ao alvorecer e levado ao aeroporto de Congonhas. O ex-presidente não era naquele momento (4 de março de 2016) réu e não havia sido intimado. Nunca houve uma explicação aceitável para ser conduzido ao aeroporto, dada a existência de múltiplas instalações da União na cidade de São Paulo em que poderia ser tomado o seu depoimento “sem tumulto” (explicação dada por Moro).
Pesa a suspeita de que a ideia era conduzi-lo a Curitiba. Pretendia-se um espetáculo midiático (a imprensa fora avisada) com o perverso conteúdo de uma humilhação pública do ex-presidente. Lula foi privado por seis horas de sua liberdade. Tanto se tratou de violação à garantia constitucional da liberdade individual quanto de abuso de autoridade, como previsto no art. 4º, letra “a”, da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965: ‘constitui também abuso de autoridade (…) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder. ”
Grampo no escritório dos advogados de Lula
Todos os telefones do escritório de Advocacia Teixeira Martins foram grampeados. Roberto Teixeira, notório advogado de Lula, é o titular do escritório. A operadora Telefônica comunicou a Moro que se tratava de escritório de advocacia. A prerrogativa de sigilo na comunicação advogado – cliente é inerente ao direito de defesa. Moro escusou-se de forma que beirou a zombaria: não havia atentado para os ofícios da operadora em face do volume de serviços de sua Vara, dos inúmeros processos que lá correm. Ocorre que Moro tem designação exclusiva e cuida apenas dos processos da Lava Jato. Desse modo, ou confessou grave negligência ou mentiu. Negligência que nunca se viu quando se tratava de matéria da acusação.
A corrupção passiva
O fato pelo qual Lula foi condenado pode ser assim sintetizado. Segundo a acusação, a OAS, responsável por obras em duas refinarias da Petrobrás, distribuía propinas a diretores da estatal e agentes políticos. Teria cabido a Lula vantagem auferida basicamente por meio da diferença de preço entre um apartamento simples e um tríplex em um edifício situado no Guarujá, diferença que somaria R$ 2.429.921,00. Por isso Lula teria incorrido no crime de corrupção passiva, que consiste, de acordo com o artigo 317 do Código Penal, em “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
A condenação somente se justificaria se demonstrado que Lula tinha o domínio do que ocorria na Petrobrás. Que consentiu, aderiu, participou e que houve prática de ato de ofício recompensado pelo apartamento do Guarujá. Recorde-se que Collor foi absolvido exatamente porque não demonstrada a prática do ato de ofício no crime de corrupção passiva.
Nada foi provado. Não há o mais remoto indício de prática de ato de ofício ou do domínio do que acontecia no âmbito da estatal. Essa fragilidade Moro tentou, em vão, compensar com confissões informais (não houve o acordo formal de delação premiada) dos corréus da OAS, particularmente Leo Pinheiro. Após negar, em uma primeira delação, a participação de Lula no esquema das propinas, Pinheiro mudou seu depoimento quando foi preso por Moro. Viu a oportunidade de conseguir benefícios dizendo para Moro o que todo mundo sabia que Moro queria ouvir. Embora condenado a mais de trinta anos também em outro processo, teve suas penas unificadas para dois anos e seis meses de reclusão.
Lavagem de dinheiro
Está tipificada no artigo 1º. da Lei 9.613/98: “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. O fato de o apartamento constar em nome da OAS, sendo supostamente Lula o “proprietário de fato” – a alegada vantagem pelo ato de ofício jamais praticado – ensejou a condenação por lavagem de dinheiro.
O entendimento de que o próprio autor do crime antecedente pode ser sujeito ativo da lavagem de dinheiro, embora tenha adeptos, é insustentável. É parte da sanha punitivista que nos assola. Destaca-se parte do “iter criminis” para torná-lo outro crime.
Os verbos que são o núcleo do tipo, ocultar ou dissimular, são inerentes ao crime antecedente. Ninguém comete algum crime sem cuidar de não expor o seu produto para que possa obter a vantagem que o moveu. Ninguém furta, por exemplo, um automóvel para desfilar ostensivamente com ele pelas ruas da cidade. A ocultação ou dissimulação é meio para o exaurimento do crime, apropriação final da vantagem. Portanto, punir o próprio autor do crime por meramente ocultar ou dissimular é punir duas vezes pelo mesmo fato, o chamado “bis in idem”.
Mesmo que se admita que o próprio sujeito ativo do crime antecedente possa ser sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro, seria necessária uma segunda conduta para tornar aproveitável o fruto do crime. No julgamento da AP 470, o mensalão, vários ministros se pronunciaram nesse sentido. Pela síntese e clareza tomo uma passagem do ministro Barroso:
“O recebimento por modo clandestino e capaz de ocultar o destinatário da propina, além de esperado, integra a própria materialidade da corrupção passiva, não constituindo, portanto, ação distinta e autônoma da lavagem de dinheiro. Para caracterizar esse crime autônomo seria necessário identificar atos posteriores, destinados a recolocar na economia formal a vantagem indevidamente recebida”.
Indeterminação da data dos fatos e prescrição
Moro em nenhum momento estabelece em que data exata teriam se dado os fatos. Isso é indispensável para verificar a consumação e a consumação é o marco inicial da prescrição. Lula tem hoje mais de 70 anos, o que reduz à metade os prazos prescricionais. Como aferir a prescrição?
Tudo isto é típico lawfare. A destruição do inimigo político por meio de um processo aparentemente legal.
Moro não é um juiz solitário e temerário perseguindo um personagem político. O lawfare somente chegou a esse ponto porque ele tem endosso, cobertura e cumplicidade por parte dos Tribunais superiores, inclusive do STF, que, entre outras coisas, se omitiu diante do crime de violação do sigilo da comunicação telefônica (Teori não se deteve sobre o assunto quando o tema foi a plenário, assim como seus pares). Com isso recebeu “licença para matar”.
No TRF-4, o relator da representação contra Moro pela violação do sigilo telefônico socorreu-se de Carl Schmitt, o príncipe dos juristas nazistas, para abrigar o fundamento de que se tratava de uma situação excepcional, negando assim eficácia aos direitos e garantias constitucionais do ex-presidente.
Moro tem a cobertura favorável da grande mídia, que fez dele no imaginário popular o santo guerreiro combatendo o dragão da maldade.
Moro participou, consciente, deliberadamente, do golpe do impeachment. A divulgação do áudio da conversa entre Lula e Dilma ilegalmente, entregue para a Rede Globo no dia imediatamente anterior à posse de Lula como ministro, não podia ter outro objetivo.
Importa, sobretudo, concluir que não estamos mais em uma democracia. O que temos, com os preparativos e a consumação do impeachment, é uma ditadura de novo tipo, que preserva enganosamente as instituições políticas e jurídicas clássicas do Estado liberal e democrático, mas esvazia-as do real conteúdo democrático (o que o jurista e magistrado Rubens Casara vem denominando pós-democracia). Nesta ditadura de novo tipo, o que antes se fazia pela força das armas e pela violência para destruir o adversário político agora se faz pelo lawfare. Nisto, o Judiciário, que nas antigas ditaduras tinha um papel acessório, de coadjuvante, torna-se o protagonista da violência estatal ilegítima. Antes era um soldado ou policial que na calada da noite destruía o cidadão. Agora é uma sentença à luz do dia.
* Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
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