sexta-feira, 29 de setembro de 2017

O debate estratégico sobre o papel da mídia

Por Joana Tavares, no jornal Brasil de Fato:

A mídia esteve e está no centro do golpe em curso no Brasil e também aparece com prioridade em planos de emergência e formulações sobre um novo projeto para o país. Altamiro Borges, do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, participou da formulação do Plano Popular de Emergência, da Frente Brasil Popular, e também integra o grupo de comunicação do Projeto Brasil, outra iniciativa que busca refletir sobre que tipo de mudanças o país precisa para sair das diversas crises que enfrenta.

Confira sua análise sobre o que está sendo debatido por esses movimentos e também quais os desafios para uma imprensa contra hegemônica no quadro atual.


O que é o Projeto Brasil e por que discutir comunicação nessa ideia de projeto de país?

O Projeto Brasil é uma articulação que já vem de algum tempo e reúne vários movimentos populares e intelectuais, preocupados com a situação do país. Pessoas que estão preocupadas não no sentido eleitoral, mas em construir um projeto de nação, que garanta soberania do país, que garanta um desenvolvimento econômico que valorize o trabalho, tenha justiça social e garanta democracia, entre outros pontos.

O Projeto Brasil se dividiu em vários grupos, por temas, em várias áreas, para a elaboração de um programa, em uma visão mais estratégica. Os temas vão desde a questão da energia, petróleo, agricultura familiar, Estado de direito até chegar na comunicação. Sem construir uma comunicação democrática, que fale para a sociedade, não se constrói um projeto de nação, não se superam as mazelas estruturais. Os meios de comunicação que estão aí, essas sete famílias que dominam a mídia brasileira, são totalmente vinculados aos interesses dos Estados Unidos e com a oligarquia brasileira. Não têm nenhum compromisso com o povo e com a libertação do nosso país.

No plano popular de emergência, elaborado pela Frente Brasil Popular, democratizar a mídia entra como uma das tarefas na democratização do Estado. Por que é tão importante acabar com o monopólio dos meios de comunicação?

Também participei da elaboração desse plano da Frente, e é importante dizer que é uma proposta emergencial mesmo. Tem questões estratégicas, de fundo, mas ele visa principalmente superar os estragos que o governo – governo não, que isso não é um governo – que o covil de Michel Temer está aprontando no Brasil. Ele só se aplica se essa porcaria de governo for derrubado. E por que a mídia aparece em destaque, logo no primeiro ponto? Porque a gente sabe que esse covil, essa quadrilha, só chegou aonde chegou porque foi bancada pela mídia. 

Foi um golpe acima de tudo midiático. Ele se expressou no Parlamento, se expressou no Judiciário, mas a força protagonista foi a mídia. Ela criou um clima para o golpe. Ela mobilizou os “midiotas” para lutar pela “democracia”. Ela criou o estigma da corrupção, como se na própria mídia não tivesse um monte de sonegadores e ladrões. Por isso a compreensão do papel destacado da mídia no golpe e na manutenção desse governo de bandidos faz com que o programa emergencial da Frente Brasil Popular coloque entre os primeiros itens exatamente a democratização da comunicação. Sem democratizar a comunicação não há democracia no Brasil.

Como você avalia as declarações recentes de Lula e Dilma de que deveriam ter investido na democratização da mídia e que o fariam se fossem eleitos de novo?

Finalmente Lula e Dilma percebem o papel destrutivo que a mídia teve. Em certo sentido, os governos Lula e Dilma alimentaram essa cobra. Seja ao não fazer o debate na sociedade sobre esse tema estratégico; seja ao não tomar nenhuma iniciativa para fortalecer veículos alternativos, para estimular a diversidade e pluralidade das informações; seja ao alimentar esses monstros com muita grana de publicidade.

Fico contente que o presidente Lula tenha feito declarações nesse sentido na caravana ao Nordeste e que a presidenta Dilma tenha abandonado aquela ideia que a única forma de regular a mídia é através do controle remoto. Acho que a ausência de compreensão do papel estratégico da mídia foi uma das responsáveis pelo golpe.

A democratização da comunicação tem dois grandes movimentos que podem ser feitos. O primeiro é regular o que está escrito na Constituição Brasileira. Nossa Constituição foi escrita num momento de lutas pela democracia, fruto de um ascenso democrático dos anos 80. A Constituição é muito avançada quando se trata de mídia, o problema é que ela nunca foi regulada. Ela é explícita: são proibidos o monopólio e o oligopólio dos meios de comunicação. Coloca que tem que existir complementaridade de sistemas, tem que ter o privado mas tem que ter o público e o estatal. Diz que a comunicação tem que servir a fins educativos, não essa coisa horrível que é a televisão brasileira, com programas policiais que estimulam ódio, programas de fofocas que emburrecem as pessoas e de um jornalismo mentiroso. Tudo isso está escrito na Constituição, mas é preciso regular esses artigos.

A outra forma é, ao mesmo tempo, estimular mecanismos que deem voz para a sociedade. Não confundir “liberdade de expressão” com monopólio. Liberdade de expressão é quando o povo tem direito a falar. Liberdade de monopólio é o que temos no Brasil hoje com essas sete famílias.

É possível adotar várias políticas públicas que estimulem a diversidade. Políticas que vão na contramão do que foi feito até hoje. Não dá para reprimir as rádios comunitárias, pelo contrário. Elas não podem ser penalizadas, elas precisam ser incentivadas, estimuladas, ter alcance maior. Elas falam pela comunidade. É preciso estimular TVs comunitárias. É preciso estimular outras formas de comunicação, como sites e blogs. Hoje a internet desponta como grande meio de comunicação. Mas, infelizmente, o que ela tem de plural nunca foi incentivado.

Essa autocrítica que Dilma e Lula fazem é muito produtiva para começarmos a discutir quais são as formas reais de se enfrentar o monopólio da comunicação através da regulação do que está na Constituição e incentivar a pluralidade e a diversidade na comunicação brasileira.

Antes do golpe, os movimentos pediam um novo marco regulatório para a comunicação, agora o foco é uma campanha chamada “Calar Jamais”. Como você avalia os retrocessos na área?

Antes do golpe, tínhamos chance de pressionar o governo para regular a Constituição e fazer mudanças. Por isso o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) tinha formulado um Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP), com poucos artigos, visando justamente enfrentar o monopólio e regular o que está na Constituição. Isso era no governo Dilma, quando dava para fazer debate e pressionar. Com o golpe, fica muito difícil discutir um PLIP, ainda mais sobre mídia.

Das primeiras ações do golpe foi a tentativa de calar as divergências, calar as vozes. Que o diga a área da cultura, que foi das mais afetadas. E que o diga a comunicação. Uma das primeiras ações do governo golpista foi desrespeitar o que está escrito na lei sobre a Empresa Brasil de Comunicação, quebrar a autonomia da EBC, exonerar o presidente e acabar com o conselho curador, que era o que garantia o caráter público da empresa, para calar qualquer voz. Além disso, cortaram toda a publicidade de qualquer veículo que se manifestasse de forma contra-hegemômica, mesmo sendo uma merreca que recebiam antes, 0,6% de publicidade oficial. Mas mesmo esse menos de 1% foi cortado.

O que há no Brasil hoje é um processo de censura. Mudou o caráter. Daí a importância dessa campanha do FNDC, “Calar Jamais”. Hoje a questão é a resistência. Resistir a um governo de caráter ditatorial que tenta calar as vozes.

Parece crescer o interesse nas mídias alternativas e populares por parte da população, mas o cenário não é fácil para esses veículos. Qual saída você enxerga para essa situação?

A mídia golpista - segundo o termo que o Paulo Henrique Amorim popularizou a partir da expressão de um deputado nordestino, o PIG – Partido da Imprensa Golpista - está enfrentando uma crise, que tem variadas causas. Uma delas são as próprias transformações da área, com a explosão da internet. Vários jornais estão tendo quedas drásticas de tiragem, mas o problema não é só com a imprensa impressa. A juventude está abondando a televisão também. Se cai a tiragem, se cai a audiência, cai publicidade. Essa mídia tradicional está enfrentando uma crise no seu modelo de negócio. Isso não quer dizer que os patrões estão ficando pobres. Pelo contrário, são os mais ricos do Brasil. É só pegar o exemplo da família Marinho, que está entre as três maiores fortunas do Brasil, de acordo com a revista Forbes. Quem sofre são os jornalistas, que estão levando um pé no traseiro.

Além da crise do modelo de negócios, existe também uma crise moral. Uma crise de credibilidade. A população está vendo que é uma mídia manipuladora. É um velho que está morrendo, mas não morreu ainda. Por outro lado, existem novas formas de comunicação, que a internet ajudou a fomentar. Essa brecha tecnológica - que eles também vão querer fechar – ajudou, com uma explosão de milhares de pessoas que estão escrevendo, estão registrando fatos, em forma de rede. É o novo que está surgindo, mas ainda não nasceu de fato, segundo a expressão do Gramsci. Esse novo é forte, mas precisa encontrar mecanismos de sustentação. É o problema do financiamento. 

Desse covil que está aí não se pode esperar nada. Ao contrário, se depender desse governo ele asfixia todas as vozes discordantes. Como fortalecer essa mídia alternativa então? Acho que isso vai depender do próprio povo, dos movimentos populares, do público. Vamos ter que cada vez mais divulgar esses veículos, promover mais atividades que levantem finanças para esses veículos. Isso se a gente quiser respirar. Se a gente não quiser respirar, esses veículos vão ter muita dificuldade de manutenção e vamos ficar com a Globo. Vai ser uma tristeza.

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