Por Antonio Martins, no site Outras Palavras:
3) No entanto – e aqui começam a surgir a hipocrisia e também as brechas – este objetivo não pode ser declarado. Os líderes do MBL foram sistematicamente escrachados, em suas próprias redes sociais, quando defenderam, há alguns meses, propostas como a contrarreforma da Previdência. Ficaram sem discurso. Perderam as ruas. Daí surgiu uma espécie de fuga para a frente, um giro até agora bem sucedido. O grupo “esqueceu” o apoio que deu a Temer, o presidente mais odiado da história do país. Enfiou a viola do ultraliberalismo no saco. E tenta recuperar sua capacidade de influência apropriando-se das pautas do fundamentalismo evangélico. As ações que desencadeia para isso são claramente provocativas, concebidas como operações de marketing. O MBL não volta-se, por exemplo, contra as novelas da Globo, que estão repletas de nudez, relações homoafetivas, sexo. Prefere atacar exposições artísticas, refinadas porém não populares. Sabe que este falso moralismo funciona. Gera respostas iradas e manchetes – sem a necessidade de enfrentar a multidão, que se deleita, na TV, com as cenas que provocam a libido. É um clássico de dupla moral.
4) O falso moralismo serve, principalmente, como uma densa cortina de fumaça. As revelações extraídas por Piauí do grupo de Whatsapp são chocantes. O MBL continua apoiando Temer. Quer privatizar a Petrobras, acabar na prática com o BNDES. É tão radicalmente a favor do ultraliberalismo e da aristocracia financeira que vê em José Serra um “esquerdista” e em Luciano Huck um “intervencionista”. Mas não precisa defender estas posições, totalmente impopulares. Basta reunir meia dúzia de gatos pingados para atacar o MAM, em São Paulo, ou para convencer o Banco Santander a acabar com uma excelente exposição de arte, em Porto Alegre. É o velho estratagema do pastor Feliciano. De deputado obscuro, ele foi alçado a personalidade nacional, graças a uma esquerda reativa e incapaz de perceber que faz o jogo do adversário.
E chegamos aqui, talvez, a uma quinta observação. A narrativa do MBL, sua tentativa de construir uma interpretação plausível para os tempos caóticos que vivemos, é uma colcha de retalhos incoerente, cheia de buracos. Por exemplo: o que a base dos evangélicos diria, ao saber que o grupo finge defender uma moral puritana, mas está na verdade aliado ao mundo amoral da aristocracia financeira? E, muito mais: que deseja destroçar a Saúde e a Educação públicas, para que os mais ricos continuem sugando o Estado?
No fundo, tanto o MBL quanto Bolsonaro – os dois grandes riscos contemporâneos com que nos deparamos – surfam num vazio: o de uma esquerda ausente, que perdeu a capacidade de imaginar o futuro. Numa época de caos, as pessoas agarram-se a qualquer esperança nova – inclusive as mais frágeis, as mais precárias, as mais contraditórias e cheia de brechas.
É preciso propor algo, para ocupar este vazio. Que projeto para as periferias? Que reforma política, que estabeleça mecanismos de democracia direta e reduza os poderes da casta parlamentar? Que novo sistema tributário, que distribua as riquezas? Que medidas para reverter as contrarreformas aprovadas por Temer e por um Congresso de ladrões, que atacam os direitos do povo?
Tudo parece difícil, em estado de depressão. Mas os arquivos secretos do MBL, expostos por Bruno Abbud e por Piauí, revelam, para quem quiser enxergar: não há nenhuma hegemonia conservadora consolidada; no caos em que o país está mergulhado abre também espaço para uma nova esquerda. Quem estará disposto a constituí-la?
Há uma importantíssima aula de política contemporânea na reportagem O Grupo da Mão Invisível, produzida pelo jornalista Bruno Abbud e publicada há dias, no site da revista Piauí. Bruno infiltrou-se num grupo de Whatspp que reúne líderes do MBL e mais de 150 executivos do mercado financeiro. Acompanhou as discussões por dois meses (entre 25 de julho e 27 de setembro). Ao fim, produziu um relato essencial, que ajuda a compreender – e, portanto, desmistificar – as razões para a força surpreendente dos novos grupos de direita. Não, ela não provém de um suposto endireitamento geral da sociedade brasileira, em que muitos parecem agora acreditar. Está muito mais relacionada a um cenário político caótico, em que as antigas formas de construção de consenso tornaram-se ineficazes; e em que pequenos grupos, articulados e com vasta rede de relações, podem tornar-se muito influentes e poderosos.
Das 685 páginas de diálogos que Bruno Abbud examinou sobressaem quatro grandes conclusões:
1) Também à direita, os partidos políticos perdem a centralidade, cada vez mais. A reportagem mostra como o MBL tenta parasitar e puncionar o PSDB. Velhos líderes como Aécio, Serra e Alckmin são tratados com desprezo. “A ideia é deixar este povo podre afundando e trazer a galera mais jovem e liberal”, diz Kim Kataguiri. Hoje, o candidato do grupo é João Dória, não importa por que partido. Mas o mais importante não é isso. Os diálogos mostram principalmente que, enquanto a máquina paquidérmica dos tucanos está paralisada em disputas internas e tem foco obsessivo nas instituições, um grupo militante, livre do peso da relação com o Estado, é capaz de formular projetos políticos, estratégias, táticas, alianças de curto e longo prazo, captação de recursos.
2) A construção política do MBL é bastante sofisticada – ainda que totalmente escorada em cinismo, como se verá a seguir. O grupo busca articular, com vistas às eleições do ano que vem, uma aliança entre quatro grandes atores: a) a aristocracia financeira, apelidada eufemisticamente de “economia moderna”; b) o agronegócio e sua enorme bancada parlamentar; c) o fundamentalismo religioso, igualmente poderoso no Congresso; e os grupos estridentes de militância da “nova direita”, à frente dos quais… o próprio MBL. Seu projeto essencial é o neoliberalismo extremo, a distopia globalpropagada pela Rede Atlas e financiada por bilionários como os Irmãos Koch. Significa devastar as instituições públicas, privatizar quase tudo – porém (atenção!) preservando as duas faces mais cruéis do Estado: o aparato repressivo e o pagamento de juros à aristocracia financeira. É sintomático, aliás, que o grupo de Whatsapp vazado por Piauí tenha sido constituído com objetivo de estabelecer uma aliança entre o MBL e os nababos do mercado financeiro.
Das 685 páginas de diálogos que Bruno Abbud examinou sobressaem quatro grandes conclusões:
1) Também à direita, os partidos políticos perdem a centralidade, cada vez mais. A reportagem mostra como o MBL tenta parasitar e puncionar o PSDB. Velhos líderes como Aécio, Serra e Alckmin são tratados com desprezo. “A ideia é deixar este povo podre afundando e trazer a galera mais jovem e liberal”, diz Kim Kataguiri. Hoje, o candidato do grupo é João Dória, não importa por que partido. Mas o mais importante não é isso. Os diálogos mostram principalmente que, enquanto a máquina paquidérmica dos tucanos está paralisada em disputas internas e tem foco obsessivo nas instituições, um grupo militante, livre do peso da relação com o Estado, é capaz de formular projetos políticos, estratégias, táticas, alianças de curto e longo prazo, captação de recursos.
2) A construção política do MBL é bastante sofisticada – ainda que totalmente escorada em cinismo, como se verá a seguir. O grupo busca articular, com vistas às eleições do ano que vem, uma aliança entre quatro grandes atores: a) a aristocracia financeira, apelidada eufemisticamente de “economia moderna”; b) o agronegócio e sua enorme bancada parlamentar; c) o fundamentalismo religioso, igualmente poderoso no Congresso; e os grupos estridentes de militância da “nova direita”, à frente dos quais… o próprio MBL. Seu projeto essencial é o neoliberalismo extremo, a distopia globalpropagada pela Rede Atlas e financiada por bilionários como os Irmãos Koch. Significa devastar as instituições públicas, privatizar quase tudo – porém (atenção!) preservando as duas faces mais cruéis do Estado: o aparato repressivo e o pagamento de juros à aristocracia financeira. É sintomático, aliás, que o grupo de Whatsapp vazado por Piauí tenha sido constituído com objetivo de estabelecer uma aliança entre o MBL e os nababos do mercado financeiro.
3) No entanto – e aqui começam a surgir a hipocrisia e também as brechas – este objetivo não pode ser declarado. Os líderes do MBL foram sistematicamente escrachados, em suas próprias redes sociais, quando defenderam, há alguns meses, propostas como a contrarreforma da Previdência. Ficaram sem discurso. Perderam as ruas. Daí surgiu uma espécie de fuga para a frente, um giro até agora bem sucedido. O grupo “esqueceu” o apoio que deu a Temer, o presidente mais odiado da história do país. Enfiou a viola do ultraliberalismo no saco. E tenta recuperar sua capacidade de influência apropriando-se das pautas do fundamentalismo evangélico. As ações que desencadeia para isso são claramente provocativas, concebidas como operações de marketing. O MBL não volta-se, por exemplo, contra as novelas da Globo, que estão repletas de nudez, relações homoafetivas, sexo. Prefere atacar exposições artísticas, refinadas porém não populares. Sabe que este falso moralismo funciona. Gera respostas iradas e manchetes – sem a necessidade de enfrentar a multidão, que se deleita, na TV, com as cenas que provocam a libido. É um clássico de dupla moral.
4) O falso moralismo serve, principalmente, como uma densa cortina de fumaça. As revelações extraídas por Piauí do grupo de Whatsapp são chocantes. O MBL continua apoiando Temer. Quer privatizar a Petrobras, acabar na prática com o BNDES. É tão radicalmente a favor do ultraliberalismo e da aristocracia financeira que vê em José Serra um “esquerdista” e em Luciano Huck um “intervencionista”. Mas não precisa defender estas posições, totalmente impopulares. Basta reunir meia dúzia de gatos pingados para atacar o MAM, em São Paulo, ou para convencer o Banco Santander a acabar com uma excelente exposição de arte, em Porto Alegre. É o velho estratagema do pastor Feliciano. De deputado obscuro, ele foi alçado a personalidade nacional, graças a uma esquerda reativa e incapaz de perceber que faz o jogo do adversário.
E chegamos aqui, talvez, a uma quinta observação. A narrativa do MBL, sua tentativa de construir uma interpretação plausível para os tempos caóticos que vivemos, é uma colcha de retalhos incoerente, cheia de buracos. Por exemplo: o que a base dos evangélicos diria, ao saber que o grupo finge defender uma moral puritana, mas está na verdade aliado ao mundo amoral da aristocracia financeira? E, muito mais: que deseja destroçar a Saúde e a Educação públicas, para que os mais ricos continuem sugando o Estado?
No fundo, tanto o MBL quanto Bolsonaro – os dois grandes riscos contemporâneos com que nos deparamos – surfam num vazio: o de uma esquerda ausente, que perdeu a capacidade de imaginar o futuro. Numa época de caos, as pessoas agarram-se a qualquer esperança nova – inclusive as mais frágeis, as mais precárias, as mais contraditórias e cheia de brechas.
É preciso propor algo, para ocupar este vazio. Que projeto para as periferias? Que reforma política, que estabeleça mecanismos de democracia direta e reduza os poderes da casta parlamentar? Que novo sistema tributário, que distribua as riquezas? Que medidas para reverter as contrarreformas aprovadas por Temer e por um Congresso de ladrões, que atacam os direitos do povo?
Tudo parece difícil, em estado de depressão. Mas os arquivos secretos do MBL, expostos por Bruno Abbud e por Piauí, revelam, para quem quiser enxergar: não há nenhuma hegemonia conservadora consolidada; no caos em que o país está mergulhado abre também espaço para uma nova esquerda. Quem estará disposto a constituí-la?
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