Por Noam Chomsky, no site Carta Maior:
Mark Twain disse que "é pela bondade de Deus que, em nosso país, temos essas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas".
Em sua introdução inédita à Revolução dos Bichos, dedicada à "censura literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta prudência: há, escreveu, um "acordo tácito de que ‘não cairia bem’ mencionar esse fato particular". O acordo tácito impõe uma "censura velada" baseada em "uma ortodoxia, um conjunto de ideias supostamente aceitas sem questionamento por todas as pessoas razoáveis", e "quem desafiar a ortodoxia predominante será silenciado de forma surpreendentemente eficaz" mesmo sem "qualquer veto oficial".
Assistimos constantemente ao exercício desta prudência nas sociedades livres. Pegue a invasão anglo-americana do Iraque, um caso didático de agressão sem pretexto cabível, o "supremo crime internacional” definido no julgamento de Nuremberg. É legítimo dizer que foi uma "guerra burra", um "erro estratégico", até "o maior erro estratégico na história recente da política externa americana" nas palavras do presidente Obama, imensamente admirado pela opinião pública liberal. Mas "não cairia bem" dizer o que foi, o crime do século, embora tal hesitação não existisse se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime bem menor.
A ortodoxia predominante não acomoda facilmente figuras como o general e presidente Ulysses S. Grant, que achava nunca ter havido "guerra mais perversa do que a travada pelos Estados Unidos contra o México", apropriando-se do que é hoje o sudoeste dos EUA e a Califórnia , e expressou sua vergonha por não ter "a coragem moral de renunciar" em vez de participar do crime.
A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A mensagem nem-tão-tácita é que só devemos lutar guerras inteligentes, que não forrem erros, guerras que alcancem seus objetivos – justos e corretos por definição, de acordo com a ortodoxia predominante, mesmo sendo na realidade "guerras perversas", crimes graves. Há mais exemplos do que é possível enumerar aqui. Em alguns casos, como no crime do século, a prática é quase unânime nos círculos respeitáveis.
Outro aspecto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a apropriação casual da demonização ortodoxa de inimigos oficiais. Para tomar um exemplo quase aleatório, extraído do exemplar do New York Times que, por acaso, está na minha frente agora, um jornalista econômico muito competente adverte sobre o populismo do demônio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no fim da década de 1990, “combatia qualquer instituição democrática que aparecesse no seu caminho".
Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio entusiasmado do New York Times, que (no mínimo) apoiou amplamente o golpe militar que derrubou o governo de Chávez – brevemente, até ser revertido por uma revolta popular . Quanto a Chávez, independentemente do que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições atestadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que "das 92 eleições que monitoramos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". E a Venezuela sob Chávez frequentemente obteve boas colocações em pesquisas internacionais sobre o apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro, com sede no Chile).
Houve, sem dúvida, déficits democráticos durante os anos Chávez, como a repressão ao canal RCTV, que provocou enorme condenação – da qual participei, concordando que isso não poderia acontecer em uma sociedade livre. Se um canal de TV proeminente dos EUA tivesse apoiado um golpe militar, como fez o RCTV, não seria reprimido alguns anos depois, porque simplesmente não existiria: seus executivos, se ainda estivessem vivos, estariam presos.
Mas a ortodoxia ganha dos fatos com facilidade.
A incapacidade de fornecer informações pertinentes também tem consequências. Talvez os americanos devam saber que pesquisas realizadas pela principal agência de opinião dos EUA revelaram que, uma década após o crime do século, a opinião pública mundial considerava os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, muito à frente dos outros competidores; e não o Irã, que carrega esse título apenas entre os analistas americanos. Talvez, em vez de esconder esse fato, a imprensa pudesse ter cumprido o seu dever de divulgá-lo, além de provocar algum debate sobre seus significados e que lições o resultado pode trazer para a política externa do país. Negligência que tem consequências.
Sobram exemplos suficientemente graves como esses, mas existem outros ainda mais importantes. Tomemos a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura era gigantesca e instrutiva. Os grandes problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos e praticamente ignorados pelos comentaristas políticos, de acordo com o princípio jornalístico em que "objetividade" significa relatar com precisão o que os poderosos fazem e dizem, não o que eles ignoram. O princípio vale mesmo quando o destino da espécie está em jogo – tanto pelo perigo crescente de uma guerra nuclear quanto pela iminência de uma catástrofe ambiental.
A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro, um dia realmente histórico. Naquele dia, Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante delas recebeu cobertura extraordinária da mídia: sua vitória eleitoral, com quase três milhões de votos a menos do que sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos EUA. A vitória muito mais importante passou em silêncio quase total: a vitória de Trump em Marraquexe, no Marrocos, onde cerca de 200 nações se reuniram para colocar um conteúdo sério no acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do ano anterior. No dia 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi dedicado em grande parte a tentar manter viva alguma esperança, com os EUA não apenas se retirando do acordo, mas decidido a sabotá-lo aumentando brutalmente o uso de combustíveis fósseis, desmantelando a regulação existente e rejeitando o compromisso de investir em energia renovável nos países em desenvolvimento.
Na vitória mais importante de Trump, estavam em jogo as perspectivas para a vida humana organizada da forma como conhecemos. A cobertura foi praticamente zero, seguindo o mesmo conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.
Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que "as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar", rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.
* Tradução de Clarisse Meireles.
Mark Twain disse que "é pela bondade de Deus que, em nosso país, temos essas três coisas indescritíveis e preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e a prudência de nunca pôr em prática nenhuma delas".
Em sua introdução inédita à Revolução dos Bichos, dedicada à "censura literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta prudência: há, escreveu, um "acordo tácito de que ‘não cairia bem’ mencionar esse fato particular". O acordo tácito impõe uma "censura velada" baseada em "uma ortodoxia, um conjunto de ideias supostamente aceitas sem questionamento por todas as pessoas razoáveis", e "quem desafiar a ortodoxia predominante será silenciado de forma surpreendentemente eficaz" mesmo sem "qualquer veto oficial".
Assistimos constantemente ao exercício desta prudência nas sociedades livres. Pegue a invasão anglo-americana do Iraque, um caso didático de agressão sem pretexto cabível, o "supremo crime internacional” definido no julgamento de Nuremberg. É legítimo dizer que foi uma "guerra burra", um "erro estratégico", até "o maior erro estratégico na história recente da política externa americana" nas palavras do presidente Obama, imensamente admirado pela opinião pública liberal. Mas "não cairia bem" dizer o que foi, o crime do século, embora tal hesitação não existisse se algum inimigo oficial tivesse cometido até mesmo um crime bem menor.
A ortodoxia predominante não acomoda facilmente figuras como o general e presidente Ulysses S. Grant, que achava nunca ter havido "guerra mais perversa do que a travada pelos Estados Unidos contra o México", apropriando-se do que é hoje o sudoeste dos EUA e a Califórnia , e expressou sua vergonha por não ter "a coragem moral de renunciar" em vez de participar do crime.
A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A mensagem nem-tão-tácita é que só devemos lutar guerras inteligentes, que não forrem erros, guerras que alcancem seus objetivos – justos e corretos por definição, de acordo com a ortodoxia predominante, mesmo sendo na realidade "guerras perversas", crimes graves. Há mais exemplos do que é possível enumerar aqui. Em alguns casos, como no crime do século, a prática é quase unânime nos círculos respeitáveis.
Outro aspecto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a apropriação casual da demonização ortodoxa de inimigos oficiais. Para tomar um exemplo quase aleatório, extraído do exemplar do New York Times que, por acaso, está na minha frente agora, um jornalista econômico muito competente adverte sobre o populismo do demônio oficial Hugo Chávez, que, uma vez eleito no fim da década de 1990, “combatia qualquer instituição democrática que aparecesse no seu caminho".
Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio entusiasmado do New York Times, que (no mínimo) apoiou amplamente o golpe militar que derrubou o governo de Chávez – brevemente, até ser revertido por uma revolta popular . Quanto a Chávez, independentemente do que se pense dele, ele ganhou repetidas eleições atestadas como livres e justas por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador, o ex-presidente Jimmy Carter, disse que "das 92 eleições que monitoramos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do mundo". E a Venezuela sob Chávez frequentemente obteve boas colocações em pesquisas internacionais sobre o apoio popular ao governo e à democracia (Latinobarómetro, com sede no Chile).
Houve, sem dúvida, déficits democráticos durante os anos Chávez, como a repressão ao canal RCTV, que provocou enorme condenação – da qual participei, concordando que isso não poderia acontecer em uma sociedade livre. Se um canal de TV proeminente dos EUA tivesse apoiado um golpe militar, como fez o RCTV, não seria reprimido alguns anos depois, porque simplesmente não existiria: seus executivos, se ainda estivessem vivos, estariam presos.
Mas a ortodoxia ganha dos fatos com facilidade.
A incapacidade de fornecer informações pertinentes também tem consequências. Talvez os americanos devam saber que pesquisas realizadas pela principal agência de opinião dos EUA revelaram que, uma década após o crime do século, a opinião pública mundial considerava os Estados Unidos como a maior ameaça à paz mundial, muito à frente dos outros competidores; e não o Irã, que carrega esse título apenas entre os analistas americanos. Talvez, em vez de esconder esse fato, a imprensa pudesse ter cumprido o seu dever de divulgá-lo, além de provocar algum debate sobre seus significados e que lições o resultado pode trazer para a política externa do país. Negligência que tem consequências.
Sobram exemplos suficientemente graves como esses, mas existem outros ainda mais importantes. Tomemos a campanha eleitoral de 2016 no país mais poderoso da história mundial. A cobertura era gigantesca e instrutiva. Os grandes problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos e praticamente ignorados pelos comentaristas políticos, de acordo com o princípio jornalístico em que "objetividade" significa relatar com precisão o que os poderosos fazem e dizem, não o que eles ignoram. O princípio vale mesmo quando o destino da espécie está em jogo – tanto pelo perigo crescente de uma guerra nuclear quanto pela iminência de uma catástrofe ambiental.
A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro, um dia realmente histórico. Naquele dia, Donald Trump obteve duas vitórias. A menos importante delas recebeu cobertura extraordinária da mídia: sua vitória eleitoral, com quase três milhões de votos a menos do que sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos EUA. A vitória muito mais importante passou em silêncio quase total: a vitória de Trump em Marraquexe, no Marrocos, onde cerca de 200 nações se reuniram para colocar um conteúdo sério no acordo de Paris sobre mudanças climáticas, do ano anterior. No dia 8 de novembro, o processo parou. O restante da conferência foi dedicado em grande parte a tentar manter viva alguma esperança, com os EUA não apenas se retirando do acordo, mas decidido a sabotá-lo aumentando brutalmente o uso de combustíveis fósseis, desmantelando a regulação existente e rejeitando o compromisso de investir em energia renovável nos países em desenvolvimento.
Na vitória mais importante de Trump, estavam em jogo as perspectivas para a vida humana organizada da forma como conhecemos. A cobertura foi praticamente zero, seguindo o mesmo conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.
Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de subordinação ao poder e à autoridade. Manda a ortodoxia às favas, questiona o que "as pessoas bem pensantes aceitam sem questionar", rasga o véu da censura tácita, disponibiliza ao público a informação e um leque de opiniões e ideias que são o pré-requisito para uma participação significativa na vida social e política, e além disso, oferece aos cidadãos uma plataforma para o debate e a discussão das questões que lhes dizem respeito. Serve, assim, de base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.
* Tradução de Clarisse Meireles.
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