Por Mauro Lopes, em seu blog:
A normalização das relações entre a Igreja Católica e a China, esperada para as próximas semanas é resultado de um dos mais notáveis feitos de Francisco: a mudança radical operada na geopolítica do Vaticano. Este giro talvez possa explicar a oposição crescente ao Papa de forças poderosas, pois na esfera da geografia política está a balança do poder global.
É uma virada espetacular. Foram 70 anos de conflito que estão para ser deixados para trás. O sinal definitivo de que as negociações estão maduras para um desenlace veio em 30 de janeiro, quando o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, declarou numa entrevista ao Vatican Insider: “A esperança é poder chegar um dia, quando seja a vontade do Senhor, em que não se fale mais de bispos ‘legítimos’ e ‘ilegítimos’, ‘clandestinos’ e ‘oficiais’ na Igreja chinesa, mas num encontro como irmãos”.
Durante décadas, a Igreja esteve dividida entre uma “patriótica”, admitida pelo governo chinês, e uma “clandestina” (na verdade, mais discreta que clandestina), alinhada ao Vaticano. Em dezembro, uma delegação vaticana esteve em Pequim e costurou um acordo para que todos os bispos, seja os da Igreja “patriótica” como os da “clandestina” passem a compor uma estrutura única.
João XXIII, João Paulo II e Bento XVI
Foram quase 40 anos, sob João Paulo II e Bento XVI, especialmente sob Karol Wojtyla, de uma geopolítica vaticana orientada pelo anticomunismo. O auge desta política foi sob João Paulo II, nos marcos da Guerra Fria. O papa polonês era um anticomunista ferrenho que ideologizou por completo as relações geopolíticas do Vaticano. Rompeu-se a lógica eurocêntrica de séculos e soterrou-se igualmente a tentativa de abertura ensaiada por João XXIII.
O “Papa bom” opôs-se vigorosamente à excomunhão de Fidel Castro, depois da vitória socialista em Cuba, mas acabou dobrando-se à exigência da Cúria em janeiro de 1963. Pouco depois, recebeu no Vaticano a filha e o genro de Kruschev, num encontro marcado por afeto e delicadezas mútuas, num gesto de grande impacto. Pouco antes, em 24 de outubro de 1962, João XXIII havia feito um histórico pronunciamento pela Rádio Vaticano, no auge da “crise dos mísseis” entre os Estados Unidos e Cuba, com frases que foram manchete em todos os jornais do mundo: “Nós suplicamos a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade. Que façam tudo aquilo que está em seu poder para salvar a paz. Evitarão assim ao mundo os horrores de uma guerra, da qual não se pode prever quais serão as terríveis consequências”.
O cume da visão geopolítica de João XXIII –e de seu sentido de humanidade e cristianismo- foi a publicação, em 11 de abril de 1963, da encíclica Pacem in Terris, que propugnava a superação completa da confrontação entre os blocos capitalista e socialista e uma paz fundamentada nos princípios da igualdade e da liberdade.
Depois da morte de João XXIII, a ação geopolítica do Vaticano ficou imersa em idas e vindas, características do papado de Paulo VI, até que João Paulo II, a partir de sua eleição, em outubro de 1978, tornou o Vaticano em força auxiliar do capitalismo, especialmente do neoliberalismo, com uma aliança inédita com os Estados Unidos (Ronald Reagan e George Bush) e Inglaterra (Margaret Thatcher) e anatemizando a esquerda.
Para que se tenha uma ideia da relevância da ação geopolítica de Wojtyla, o general Vernon Walters, ex-vice-diretor da CIA e nomeado em 1981 como embaixador itinerante do governo Ronald Reagan, manteve encontros secretos semestrais com o Papa entre 1981 e 1988, nos quais repassava informações secretas da inteligência dos EUA sobre os países do Leste europeu e a América Latina –inclusive sobre os leigos e padres da Teologia da Libertação. Foram cerca de 20 encontros. O próprio diretor da CIA, William Casey, participou de algumas das reuniões. O Vaticano passa a receber informes específicos da CIA sobre padres e bispos vinculados à Teologia da Libertação especialmente na Nicarágua e em El Salvador, e a guiar sua ação na região por estes informes[1].
Os anos de Bento XVI, que do cardeal ativíssimo à frente da Inquisição nos anos de João Paulo II, como um Torquemada do século XX, tornou-se um Papa alquebrado e impotente, foram de ensimesmamento nas relações globais do Vaticano e uma tentativa tímida e sem sucesso de recuperar a visão eurocêntrica anterior a João XXIII.
Francisco muda tudo
Desde sua posse, em 2013, Francisco iniciou uma aproximação sigilosa com a China, a partir de iniciativas tímidas ocorridas em 2007 durante o papado de Ratzinger. O Papa encontrou um governo chinês desejoso de uma nova relação com a Igreja e o Ocidente, por conta de seu projeto de hegemonia global que pretende contrapor-se ao big stickamericano com uma proposta baseada em comércio e diálogo.
As relações entre cristãos e comunistas foram muito frutíferas na Europa nos anos 1950/60, a partir de experiências como a Ação Católica ou os padres operários franceses, e na América Latina, a partir do desabrochar da Teologia da Libertação nos anos 1970 –até a interdição estabelecida por João Paulo II.
Há muita possibilidade de convergência, segundo o bispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo, atual chanceler da Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano. Ele voltou a Roma, depois de uma viagem a Pequim, há dez dias, entusiasmado com o que viu e anotou: “há muitos pontos de encontro entre a China e o Vaticano”. Ele fez afirmações surpreendentes: “Neste momento, os que atendem melhor a doutrina social da Igreja são os chineses.” Ainda mais, num momento em que o Comum é tema cada vez mais relevante nas formulações de caráter pós-capitalista, o bispo indicou que a China dever ser olhada com atenção: “Eles se preocupam com o bem comum, subordinam as coisas ao bem comum”. Uma declaração ainda mais ousada causou a fúria dos conservadores católicos saudoso de Wojtyla: “Pequim está defendendo a dignidade da pessoa, seguindo mais do que os outros países, a encíclica Laudato Si” [encíclica do Papa sobre o planeta Terra e o meio ambiente].
Do lado chinês, elogios e gestos na direção do Vaticano. No início de fevereiro, o Global Times, vinculado ao Partido Comunista, escreveu que “o povo chinês respeita o Papa”, que “tem um imagem positiva entre os chineses”, que o restabelecimento das relações diplomáticas é questão de tempo, e que os problemas estão sendo superados com base na “sabedoria” de Francisco.
Um dos obstáculos ao acordo, o cardeal emérito de Hong Kong Zen Ze-kiun, anticomunista ferrenho e que tinha voz decisiva no Vaticano com Wojtyla e Bento XVI, foi colocado de lado por Parolin e Francisco. Em 30 de janeiro, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, criticou abertamente o cardeal –o que é raríssimo, em e tratando de Igreja Católica- acusando-o de “alimentar a confusão”.
EUA
O governo americano, especialmente sob Trump, está de cabelo em pé com o movimento Vaticano-Pequim, que pôs a pique a estratégia de Guerra Fria renovada da Casa Branca. Houve pressão da diplomacia americana –imediatamente rechaçada pelo Vaticano.
As relações entre o Vaticano e os EUA são como água e óleo, e isso vem desde a campanha eleitoral, quando o Papa acusou o então candidato Trump de “não ser cristão” por suas posições contra os imigrantes e refugiados. Foram seguidos confrontos públicos e nos bastidores. Trump chegou a afirmar que iria à Itália e não visitaria o Papa, mas recuou e foi ao Vaticano em maio de 2017; a foto do encontro é antológica e tornou-se simbólica do status da relação entre a Igreja e a Casa Branca.
Francisco ataca sistematicamente todos os valores defendidos pela visão capitalista de Trump. Chegou a afirmar que o capitalismo é “insuportável”, uma “ditadura sutil” e que o dinheiro, idolatrado pelo empresário-presidente americano, é o “esterco do diabo”.
Por isso, se você quiser saber onde está o Papa em qualquer questão mundial relevante, saiba onde está Trump –Francisco estará no polo oposto (e vice-versa). Outra situação notável: enquanto Trump que destruir Coreia do Norte e ameaça o país com bombas nucleares, Francisco é um dos maiores incentivadores públicos da aproximação entre as duas Coreias, qualificando os movimentos recentes entre Pyongyang e Seul de um exemplo “de um mundo no qual os conflitos se resolvem pacificamente com o diálogo e em respeito recíproco”.
Rússia
Não é só a China que está na agenda de Francisco. Ele pretende ser o primeiro Papa a visitar a Rússia. O cardeal Parolin esteve no país entre 20 a 24 de agosto, numa viagem –desde 1888 um secretário de Estado do Vaticano não pisava em solo russo; esteve com Putin e com Kirill, patriarca de Moscou e de toda a Rússia e primaz da Igreja Ortodoxa Russa.
Parolin foi chave na costura do histórico encontro entre Francisco e Kirill em Havana, em fevereiro de 2016, depois de quase mil anos sem que os chefes da Igreja Católica e Ortodoxa Russa tivessem contato, num clima de intensa afetividade. Também com a Rússia as coisa andam rapidamente –ainda mais pensando na complexidade de relações tão marcadas por separações e traumas.
“O resultado é substantivamente positivo” –assim resumiu Parolin o resultado de sua viagem. De fato. O governo russo comprometeu-se a usar sua força (inclusive militar) no Oriente Médio para defender as minorias religiosas. Além disso, reafirmou-se a identidade entre Moscou e o Vaticano na visão sobre a Síria, de apoio ao governo de Bashar al-Assad e longe dos jihadistas –financiados pelos EUA.
América Latina, Europa, as periferias e o fim dos blocos
O Papa do “fim do mundo”, como ele se definiu na noite em que foi apresentado ao povo na Praça São Pedro e em quase todo o planeta tem uma visão geopolítica que não se limita à relação com as potências como China, Rússia e Estados Unidos.
Francisco mantém distância de governos de direita na América Latina –é notório que ele evita visitar seu país, a Argentina, sob a presidência do neoliberal Mauricio Macri, condenou o golpe de 2016 no Brasil e recusou-se a pisar novamente no país em 2017, mesmo com as celebrações dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem devoto. Ao mesmo tempo, cultiva relações fraternas com o presidente boliviano Evo Morales, assim como com líderes dos movimentos sociais da região, como João Pedro Stedile –foi expressiva a presença de latino-americanos nas três edições do Encontro Mundial dos Movimentos Populares.
Com o Papa do “fim do mundo”, que enterrou o eurocentrismo da Igreja Católica (ao menos simbolicamente) ficou também decretada a superação da contraposição ideológica entre católicos e socialista; a contraposição agora é entre os que estão ao lado dos pobres e aqueles que defendem os ricos e os sistemas de exploração e opressão das pessoas. Para Francisco “não existem mais os blocos contrapostos” do passado –afirmou em seu discurso ao Parlamento europeu de Estrasburgo de 25 de novembro de 2014.
Há protagonismo de Francisco no Velho Continente, em especial no tema dos migrantes e refugiados. E um de seus interlocutores mais assíduos é exatamente o primeiro-ministro socialista da Grécia, Aléxis Tsípras, com quem “costurou” uma sequência de reuniões entre o Vaticano e grupos marxistas europeus.
Uma imagem possível para mudança da geopolítica da Igreja Católica: o Vaticano deixou o G-8 e agora está nos BRICS.
Nota:
[1] BERNSTEIN, Carl; POLITI, Marco. Sua Santidade: João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, p. 274 a 276.
A normalização das relações entre a Igreja Católica e a China, esperada para as próximas semanas é resultado de um dos mais notáveis feitos de Francisco: a mudança radical operada na geopolítica do Vaticano. Este giro talvez possa explicar a oposição crescente ao Papa de forças poderosas, pois na esfera da geografia política está a balança do poder global.
É uma virada espetacular. Foram 70 anos de conflito que estão para ser deixados para trás. O sinal definitivo de que as negociações estão maduras para um desenlace veio em 30 de janeiro, quando o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Pietro Parolin, declarou numa entrevista ao Vatican Insider: “A esperança é poder chegar um dia, quando seja a vontade do Senhor, em que não se fale mais de bispos ‘legítimos’ e ‘ilegítimos’, ‘clandestinos’ e ‘oficiais’ na Igreja chinesa, mas num encontro como irmãos”.
Durante décadas, a Igreja esteve dividida entre uma “patriótica”, admitida pelo governo chinês, e uma “clandestina” (na verdade, mais discreta que clandestina), alinhada ao Vaticano. Em dezembro, uma delegação vaticana esteve em Pequim e costurou um acordo para que todos os bispos, seja os da Igreja “patriótica” como os da “clandestina” passem a compor uma estrutura única.
João XXIII, João Paulo II e Bento XVI
Foram quase 40 anos, sob João Paulo II e Bento XVI, especialmente sob Karol Wojtyla, de uma geopolítica vaticana orientada pelo anticomunismo. O auge desta política foi sob João Paulo II, nos marcos da Guerra Fria. O papa polonês era um anticomunista ferrenho que ideologizou por completo as relações geopolíticas do Vaticano. Rompeu-se a lógica eurocêntrica de séculos e soterrou-se igualmente a tentativa de abertura ensaiada por João XXIII.
O “Papa bom” opôs-se vigorosamente à excomunhão de Fidel Castro, depois da vitória socialista em Cuba, mas acabou dobrando-se à exigência da Cúria em janeiro de 1963. Pouco depois, recebeu no Vaticano a filha e o genro de Kruschev, num encontro marcado por afeto e delicadezas mútuas, num gesto de grande impacto. Pouco antes, em 24 de outubro de 1962, João XXIII havia feito um histórico pronunciamento pela Rádio Vaticano, no auge da “crise dos mísseis” entre os Estados Unidos e Cuba, com frases que foram manchete em todos os jornais do mundo: “Nós suplicamos a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade. Que façam tudo aquilo que está em seu poder para salvar a paz. Evitarão assim ao mundo os horrores de uma guerra, da qual não se pode prever quais serão as terríveis consequências”.
O cume da visão geopolítica de João XXIII –e de seu sentido de humanidade e cristianismo- foi a publicação, em 11 de abril de 1963, da encíclica Pacem in Terris, que propugnava a superação completa da confrontação entre os blocos capitalista e socialista e uma paz fundamentada nos princípios da igualdade e da liberdade.
Depois da morte de João XXIII, a ação geopolítica do Vaticano ficou imersa em idas e vindas, características do papado de Paulo VI, até que João Paulo II, a partir de sua eleição, em outubro de 1978, tornou o Vaticano em força auxiliar do capitalismo, especialmente do neoliberalismo, com uma aliança inédita com os Estados Unidos (Ronald Reagan e George Bush) e Inglaterra (Margaret Thatcher) e anatemizando a esquerda.
Para que se tenha uma ideia da relevância da ação geopolítica de Wojtyla, o general Vernon Walters, ex-vice-diretor da CIA e nomeado em 1981 como embaixador itinerante do governo Ronald Reagan, manteve encontros secretos semestrais com o Papa entre 1981 e 1988, nos quais repassava informações secretas da inteligência dos EUA sobre os países do Leste europeu e a América Latina –inclusive sobre os leigos e padres da Teologia da Libertação. Foram cerca de 20 encontros. O próprio diretor da CIA, William Casey, participou de algumas das reuniões. O Vaticano passa a receber informes específicos da CIA sobre padres e bispos vinculados à Teologia da Libertação especialmente na Nicarágua e em El Salvador, e a guiar sua ação na região por estes informes[1].
Os anos de Bento XVI, que do cardeal ativíssimo à frente da Inquisição nos anos de João Paulo II, como um Torquemada do século XX, tornou-se um Papa alquebrado e impotente, foram de ensimesmamento nas relações globais do Vaticano e uma tentativa tímida e sem sucesso de recuperar a visão eurocêntrica anterior a João XXIII.
Francisco muda tudo
Desde sua posse, em 2013, Francisco iniciou uma aproximação sigilosa com a China, a partir de iniciativas tímidas ocorridas em 2007 durante o papado de Ratzinger. O Papa encontrou um governo chinês desejoso de uma nova relação com a Igreja e o Ocidente, por conta de seu projeto de hegemonia global que pretende contrapor-se ao big stickamericano com uma proposta baseada em comércio e diálogo.
As relações entre cristãos e comunistas foram muito frutíferas na Europa nos anos 1950/60, a partir de experiências como a Ação Católica ou os padres operários franceses, e na América Latina, a partir do desabrochar da Teologia da Libertação nos anos 1970 –até a interdição estabelecida por João Paulo II.
Há muita possibilidade de convergência, segundo o bispo argentino Marcelo Sánchez Sorondo, atual chanceler da Pontifícia Academia das Ciências do Vaticano. Ele voltou a Roma, depois de uma viagem a Pequim, há dez dias, entusiasmado com o que viu e anotou: “há muitos pontos de encontro entre a China e o Vaticano”. Ele fez afirmações surpreendentes: “Neste momento, os que atendem melhor a doutrina social da Igreja são os chineses.” Ainda mais, num momento em que o Comum é tema cada vez mais relevante nas formulações de caráter pós-capitalista, o bispo indicou que a China dever ser olhada com atenção: “Eles se preocupam com o bem comum, subordinam as coisas ao bem comum”. Uma declaração ainda mais ousada causou a fúria dos conservadores católicos saudoso de Wojtyla: “Pequim está defendendo a dignidade da pessoa, seguindo mais do que os outros países, a encíclica Laudato Si” [encíclica do Papa sobre o planeta Terra e o meio ambiente].
Do lado chinês, elogios e gestos na direção do Vaticano. No início de fevereiro, o Global Times, vinculado ao Partido Comunista, escreveu que “o povo chinês respeita o Papa”, que “tem um imagem positiva entre os chineses”, que o restabelecimento das relações diplomáticas é questão de tempo, e que os problemas estão sendo superados com base na “sabedoria” de Francisco.
Um dos obstáculos ao acordo, o cardeal emérito de Hong Kong Zen Ze-kiun, anticomunista ferrenho e que tinha voz decisiva no Vaticano com Wojtyla e Bento XVI, foi colocado de lado por Parolin e Francisco. Em 30 de janeiro, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, criticou abertamente o cardeal –o que é raríssimo, em e tratando de Igreja Católica- acusando-o de “alimentar a confusão”.
EUA
O governo americano, especialmente sob Trump, está de cabelo em pé com o movimento Vaticano-Pequim, que pôs a pique a estratégia de Guerra Fria renovada da Casa Branca. Houve pressão da diplomacia americana –imediatamente rechaçada pelo Vaticano.
As relações entre o Vaticano e os EUA são como água e óleo, e isso vem desde a campanha eleitoral, quando o Papa acusou o então candidato Trump de “não ser cristão” por suas posições contra os imigrantes e refugiados. Foram seguidos confrontos públicos e nos bastidores. Trump chegou a afirmar que iria à Itália e não visitaria o Papa, mas recuou e foi ao Vaticano em maio de 2017; a foto do encontro é antológica e tornou-se simbólica do status da relação entre a Igreja e a Casa Branca.
Francisco ataca sistematicamente todos os valores defendidos pela visão capitalista de Trump. Chegou a afirmar que o capitalismo é “insuportável”, uma “ditadura sutil” e que o dinheiro, idolatrado pelo empresário-presidente americano, é o “esterco do diabo”.
Por isso, se você quiser saber onde está o Papa em qualquer questão mundial relevante, saiba onde está Trump –Francisco estará no polo oposto (e vice-versa). Outra situação notável: enquanto Trump que destruir Coreia do Norte e ameaça o país com bombas nucleares, Francisco é um dos maiores incentivadores públicos da aproximação entre as duas Coreias, qualificando os movimentos recentes entre Pyongyang e Seul de um exemplo “de um mundo no qual os conflitos se resolvem pacificamente com o diálogo e em respeito recíproco”.
Rússia
Não é só a China que está na agenda de Francisco. Ele pretende ser o primeiro Papa a visitar a Rússia. O cardeal Parolin esteve no país entre 20 a 24 de agosto, numa viagem –desde 1888 um secretário de Estado do Vaticano não pisava em solo russo; esteve com Putin e com Kirill, patriarca de Moscou e de toda a Rússia e primaz da Igreja Ortodoxa Russa.
Parolin foi chave na costura do histórico encontro entre Francisco e Kirill em Havana, em fevereiro de 2016, depois de quase mil anos sem que os chefes da Igreja Católica e Ortodoxa Russa tivessem contato, num clima de intensa afetividade. Também com a Rússia as coisa andam rapidamente –ainda mais pensando na complexidade de relações tão marcadas por separações e traumas.
“O resultado é substantivamente positivo” –assim resumiu Parolin o resultado de sua viagem. De fato. O governo russo comprometeu-se a usar sua força (inclusive militar) no Oriente Médio para defender as minorias religiosas. Além disso, reafirmou-se a identidade entre Moscou e o Vaticano na visão sobre a Síria, de apoio ao governo de Bashar al-Assad e longe dos jihadistas –financiados pelos EUA.
América Latina, Europa, as periferias e o fim dos blocos
O Papa do “fim do mundo”, como ele se definiu na noite em que foi apresentado ao povo na Praça São Pedro e em quase todo o planeta tem uma visão geopolítica que não se limita à relação com as potências como China, Rússia e Estados Unidos.
Francisco mantém distância de governos de direita na América Latina –é notório que ele evita visitar seu país, a Argentina, sob a presidência do neoliberal Mauricio Macri, condenou o golpe de 2016 no Brasil e recusou-se a pisar novamente no país em 2017, mesmo com as celebrações dos 300 anos da aparição da imagem de Nossa Senhora Aparecida, de quem devoto. Ao mesmo tempo, cultiva relações fraternas com o presidente boliviano Evo Morales, assim como com líderes dos movimentos sociais da região, como João Pedro Stedile –foi expressiva a presença de latino-americanos nas três edições do Encontro Mundial dos Movimentos Populares.
Com o Papa do “fim do mundo”, que enterrou o eurocentrismo da Igreja Católica (ao menos simbolicamente) ficou também decretada a superação da contraposição ideológica entre católicos e socialista; a contraposição agora é entre os que estão ao lado dos pobres e aqueles que defendem os ricos e os sistemas de exploração e opressão das pessoas. Para Francisco “não existem mais os blocos contrapostos” do passado –afirmou em seu discurso ao Parlamento europeu de Estrasburgo de 25 de novembro de 2014.
Há protagonismo de Francisco no Velho Continente, em especial no tema dos migrantes e refugiados. E um de seus interlocutores mais assíduos é exatamente o primeiro-ministro socialista da Grécia, Aléxis Tsípras, com quem “costurou” uma sequência de reuniões entre o Vaticano e grupos marxistas europeus.
Uma imagem possível para mudança da geopolítica da Igreja Católica: o Vaticano deixou o G-8 e agora está nos BRICS.
Nota:
[1] BERNSTEIN, Carl; POLITI, Marco. Sua Santidade: João Paulo II e a História Oculta de Nosso Tempo. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996, p. 274 a 276.
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