Charge: Renan Lima |
A “polarização” virou moda. Todos a pronunciam: a colunista da Folha, o cientista social renomado e a minha filha adolescente na prova do Enem. Dividiu as famílias, sacrossanto pilar da sociabilidade burguesa. Virou senso comum. O país estaria dividido entre “nós e eles” ou vice-versa.
A quem interessa o discurso da polarização, de que a sociedade brasileira estaria partida ao meio? Os intelectuais trabalham com conceitos que comportam sentidos. Vivemos de problematizar o real e de buscar a gênese das construções ideológicas a serviço de determinados segmentos sociais, com o intuito de desconstruí-las.
Nas marchas de junho de 2013, criou-se o “mito” da polarização. Não o mito que abre caminho para utopias. O mito aqui mais se assemelha a uma distopia: duas visões extremadas e irracionais que se opõem sem espaço para o diálogo – é o que se diz por aí. De um lado, os camisas verde-amarelas teleguiados pela Veja e a Rede Globo, inconformados com a marcha avassaladora da corrupção. De outro, os vermelhos esquerdistas que se manifestam por meio de sites, blogs e periódicos alternativos, escudados na “narrativa do golpe”.
Visões mais extremadas como a fornecida pela capa da “IstoÉ” – n. 2549, de 26 de outubro de 2018 –, concluem de forma taxativa que “o PT criou Bolsonaro”. Segundo essa leitura falseadora, o derretimento do centro político no país deve ser posto na conta das dívidas do partido, incapaz de fazer a sua “autocrítica”. A polarização da sociedade, já dizia o candidato Ciro Gomes, foi obra do partido de Lula.
Será mesmo? Proponho uma leitura alternativa. No meu entender, as classes dominantes se aglomeraram em torno de um polo, expulsando o PT do sistema ao qual ele tão bem (ou tão mal) – dependendo do ponto de vista – havia se aliado.
Um dos meus argumentos contra o impeachment – tirando a sua ilegitimidade e ilegalidade – era o de que com a sua consumação, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com o apoio da grande imprensa e da burguesia conglomerada, passariam a compor um mesmo bloco. Assim foi. Criou-se um bloco hegemônico, sustentado pela força das instituições reorganizadas – graças à politização e elitização das suas cúpulas. Foi para o ralo a divisão de poderes.
O outro polo não existe ao menos do ponto de vista da participação nas instituições políticas. Ele existe, sim, enquanto força potencial da sociedade, restando-lhe no momento a resistência ao novo status quo.
Isso ficou patente durante a campanha de Fernando Haddad. Apesar de o candidato ter se superado em todos os quesitos, ficou evidente que ele corria praticamente sozinho, com apoio da militância petista, mas inclusive e, sobretudo, da juventude, dos professores e dos movimentos sociais, muitos não vinculados ao PT. As lideranças do PT – as novas e as velhas –, na sua grande maioria, ou são desconhecidas ou não têm votos. Em suma, apesar de um processo de renovação ter lentamente se iniciado, trata-se de um partido desfigurado, que não tem a força que o bloco dominante lhe confere.
Daí a sua incapacidade de recompor as pontes com o “mercado” e seus economistas, com o sistema partidário, com a grande mídia e com a burguesia e as suas várias frações de classe. Ora, o PT se tornou, depois do golpe, um partido pária, com o qual ninguém quer se aliar. O novo polo de forças políticas e sociais aglomeradas fez do PT novamente um “partido radical” para seu consumo próprio.
Não há polarização! Há, sim, expurgo do poder político de um segmento importante da sociedade, o que inclui a esquerda não-petista e os movimentos sociais em geral.
Senão vejamos. Dilma é apeada do poder numa ópera bufa de consternar qualquer cidadão que guarde um mínimo de decência pelos rituais democráticos. Depois se criam da noite para o dia “movimentos sociais” micróbios, pois desprovidos de qualquer representatividade, segundo a designação de Wanderley Guilherme dos Santos.
Os âncoras do Jornal Nacional reproduzem um diálogo entre uma presidenta e um ex-presidente, liberado ilegalmente por um juiz que não segue os preceitos básicos exigidos pelo cargo. Lula – o ex-presidente defensor da conciliação “com tudo e com todos” – é perseguido pela grande imprensa, procuradores e juízes e transformado em “chefe da quadrilha”. Depois o encarceram e cortam a sua voz, impedindo-o de dar entrevistas. O maior líder popular do mundo contemporâneo assume a pecha de presidiário. Neste meio tempo, direitos sociais e trabalhistas são eliminados sumariamente da carta constitucional.
Qual o resultado? Radicalização? Não. O PT aceita o impeachment e Lula, a sua prisão. Mesmo sabendo que as instituições estão viciadas pelo acordo das cúpulas dos três poderes – aos quais se somam a mídia e a finança –, decidem preparar a resistência. Democraticamente. Voltam para a oposição e recorrem às urnas.
Lula tem votos suficientes para se eleger no primeiro turno depois de toda a encenação. Segue em Curitiba, incomunicável, repito: o maior líder popular do mundo contemporâneo, para escândalo da mídia internacional. O Brasil está cercado pelo ódio contra a esquerda, contra o povo e contra a sua maior liderança. Ódio de classe.
Bolsonaro foi eleito nas eleições mais desequilibradas da história nacional. Teve apoio (velado ou explícito) da grande mídia e da burguesia, mas quem mostrou a cara foram os lumpempresários que financiaram as fakenews. O twitter disparado pelo comandante do Exército atingiu a juíza, selando assim o destino do habeas corpus.
O candidato vitorioso não foi aos debates no segundo turno, fato inédito na história da democracia brasileira recente, contando mais uma vez com a conivência da grande mídia. O mercado o apoiou com seus métodos, afinal, a bolsa subia e o dólar caía. O capitão não mencionou, durante a campanha, uma única política a ser executada pelo seu governo. Eleito, nomeou o justiceiro para a Justiça e trouxe o general do presidente do STF para a Defesa. Temer será brindado com uma embaixada no berço da latinidade.
Nas últimas semanas do segundo turno, a militância foi às ruas. Munidos de cartazes e folhetos, os jovens (e outros nem tão jovens assim) se dirigiram às periferias em busca do povo. Para quê? Conversar. Buscavam virar votos com base na argumentação e no convencimento. Nenhum discurso de ódio. Este novo movimento cultural que surgiu de maneira espontânea – e como resultado da inoperância da campanha e da máquina petista – é um dos grandes legados das eleições de 2018.
A polarização pode existir na esfera da família, das relações pessoais e do trabalho, gerando cisões e rompimentos desagradáveis. Um dia, quem sabe, serão feitas as pazes. Mas o Brasil não é uma grande família. Vivemos numa sociedade capitalista – dividida em classes, hoje quase castas -, e situada na semiperiferia de uma economia-mundo capitalista sujeita a fortes tensões e reajustamentos.
O poder foi tomado, nas eleições de 2018, por meio de uma aliança do voto com o coturno, a toga, o templo, a telinha, a banca de jornal e o WhatsApp. O bloco hegemônico responsável pelo golpe de 2016 mostrou a sua cara, sem disfarces. Logo, mostrará as suas rachaduras.
Não há polarização na sociedade. Do outro lado, estão os que foram expurgados pelo golpe e resistem ao “governo de ocupação” – mais uma vez, o mestre Wanderley – porque sabem que o que está em jogo é o seu extermínio real e simbólico da sociedade. À guerra de movimento, segue agora a guerra de posição. Não existe simetria em termos de forças. Como pode existir “polarização” num cenário em que “está tudo dominado” por eles?
O próximo lance cabe aos vencedores. A grande imprensa e o Judiciário dirão se prosseguem na farsa, naturalizando a ocupação. Idem para a burguesia. Neste contexto, o movimento de resistência ao desmonte das instituições, com todos os seus vícios e virtudes, arduamente construídas desde 1988, durante os governos FHC, Lula e Dilma – muitas delas remontando a Vargas, o ditador e o democrata, para não mencionar o Itamaraty do Barão do Rio Branco – será decisivo para o desenlace final do drama. Pois eles querem separar o trigo do joio.
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