sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Werneck Sodré e o povo brasileiro

Nelson Werneck Sodré
Por Augusto C. Buonicore, no site da Fundação Mauricio Grabois:

Neste artigo não pretendemos fazer uma exaustiva análise da rica obra do historiador comunista Nelson Werneck Sodré, e sim analisar um único texto: Quem é o povo no Brasil? Essa escolha nos parece óbvia, pois nele o autor expõe de maneira mais clara, até didática, o seu conceito de povo brasileiro. Dentro da velha e respeitável tradição marxista e leninista, abordada no artigo anterior, ele escreveu o seu pequeno ensaio, publicado na coleção Cadernos do Povo Brasileiro, da Editora Civilização Brasileira. Posteriormente, o texto foi incorporado à segunda edição de Introdução à Revolução Brasileira (1963).


Observação preliminar


Logo no início,Sodré afirma que com o aparecimento das classes sociais o conceito de povo se separa do de população, “o termo começa a designar coisas diferentes”. Assim, não haveria mais um “critério objetivo para definir o conceito de povo que não estivesse ligado ao conceito de sociedade dividida em classes (...). Daí por diante (...) povo será um conjunto de classes (ou camadas, ou grupos), ficando outras classes (ou camadas, ou grupos) excluídas do conceito”.

Nas sociedades, sucessoras do comunismo primitivo, a população se repartiria em “classes dominantes, exploradas, de um lado, e classes dominadas, de outro, aquelas que as primeiras oprimem, exploram e privam de direitos, inclusive e, principalmente, os direitos políticos. Realizam essa exploração, entretanto, afirmando sempre que representam o povo. Estão interessadas, pois, em que o conceito de povo seja vago, arbitrário e confuso. Tão confuso que engloba exploradores e explorados”.

Em alguns casos, continua ele, setores das classes dominantes poderiam realizar “o que é do interesse da maioria das classes”, mas “isso estaria longe de se constituir numa regra”. Contudo, no conjunto do seu ensaio, o autor procura provar justamente que, pelo menos no caso brasileiro, explorados e algumas frações das classes exploradoras podem ser incluídos na mesma categoria de povo. Mais do que uma exceção, isso se constituiria numa regra dos processos revolucionários brasileiros, pelo menos até o início da década de 1960.

O que é o povo?

O autor contesta aqueles que procuravam identificar o conceito povo com o de “produtores de bens materiais”. Isso se constituiria numa “equívoca limitação”. Haveria trabalhadores que não poderiam ser englobados na categoria de “produtores de bens materiais” e, entretanto, pertenceriam ao povo. Os empregados “não produzem bens materiais, nem os funcionários, nem os intelectuais. Seria justo excluí-los do conceito de povo? Parece que não. Por aí vemos que o critério econômico restrito não pode servir de base para uma conceituação aceitável e justa”.

Se, por um lado, todos os trabalhadores (manuais ou intelectuais, produtivos ou improdutivos) pertenceriam ao povo; por outro, a noção de povo também não deveria se restringir ao conjunto desses trabalhadores. Para Sodré, “em todas as situações, povo é o conjunto das classes, camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva das tarefas do desenvolvimento progressista e revolucionário na área em que vive”. O conceito de povo não poderia “ser definido senão considerando as condições reais de tempo e de lugar (...). Povo, hoje, no Brasil, não é o que era há um século (...) nem o que é na China. A composição dos grupos, camadas e classes que constituem o povo muda ao longo do tempo, e varia de país para país”. Assim, o conceito de povo estaria em constante evolução e mudaria conforme a sociedade fosse se transformando.

Tentando se defender de possíveis acusações de subjetivismo, o autor afirma que tais mudanças não seriam “arbitrárias e acidentais” e existiriam “sempre critérios justos para definir o conceito exato do povo em cada fase distinta”.

As coisas não são tão simples assim. Como veremos mais à frente, esta conceituação acaba se amarrando por demais às formulações táticas e/ou estratégicas das organizações comunistas. Ela estaria estreitamente vinculada à determinada maneira (ou ângulo) de se ver a história do país. Isso dá ao conceito de povo uma fluidez muito grande. Em outras palavras: o conceito de povo apresenta muito menos “estabilidade”, por exemplo, que o conceito de classe social.

Existem poucas dúvidas – embora existam algumas –entre os marxistas, sobre o que sejam proletariado, burguesia e pequena burguesia. Mas, existem diferenças monumentais sobre a análise da composição social das frentes formadas na luta pela Independência, pela Abolição, pela República e a Revolução de 1930. Existem polêmicas acirradas em torno do papel desempenhado pelos latifundiários na luta pela Abolição e pela República ou o da burguesia (e suas frações) na Revolução de 1930. Isso para não falar na polêmica infernal em relação à existência ou não de duas etapas na revolução brasileira e de qual papel desempenhado pela burguesia nacional, caso ela realmente exista. Rios de tintas foram gastos nesse debate e não vamos entrar nele neste momento.

O povo na história do Brasil

Depois de apresentar aquela que seria a sua definição marxista de povo, Sodré passa a exemplificar as mudanças na configuração do povo brasileiro ao longo da história. Começa suas análises no início do XIX: “Se a tarefa do desenvolvimento progressista do Brasil, nessa fase histórica, é a realização da Independência (...) e se o povo, em tal fase, é representado pelo conjunto de classes e camadas e grupos sociais empenhados na solução objetiva daquela tarefa, o povo brasileiro abrange então todas as classes, camadas e grupos da sociedade brasileira”.

As coisas se complicam quando afirma logo a seguir: “Como os servos e escravos, tanto quanto os pequenos grupos de trabalhadores livres que se dispersam, particularmente em áreas urbanas, não têm consciência política, embrutecidos que se acham pelo regime colonial, só participam da luta pela autonomia a classe dominante de senhores e as camadas intermediárias”.

Aqui surge um problema: se a independência foi obra exclusiva – ou quase – das classes dominantes e das camadas médias, como aqueles que “não estavam empenhados na solução objetiva da tarefa” da independência – a maioria dos trabalhadores (escravos e livres) – poderiam ser considerados parte do povo? Sabemos que a Constituição brasileira de 1824 não considerava os escravos verdadeiros brasileiros. Mais tarde adquiririam a condição de brasileiros, mas não de cidadãos.

Exageramos na argumentação visando a demonstrar a existência de certa imprecisão na formulação de Sodré e dos comunistas em geral. É claro que eles jamais deixaram de considerar os escravos e os agregados rurais como partes integrantes do povo brasileiro do período colonial. Mas, sabem também que esses segmentos não desempenharam papel algum no movimento pela Independência, embora pudessem ter tido simpatias por ele. Para muitos a notícia da Independência chegou muitos meses depois do famoso grito dado às margens do Ipiranga.

A Independência, segundo Sodré, abriria uma nova fase da história da nação e, por isso mesmo, mudaria a composição do povo brasileiro, pois classes e frações de classe dele se desprenderiam. Assim, “o povo tornar-se-á outra coisa. Dele já não fará parte a classe dominante senhorial que tratará, na montagem do Estado, de afastar as demais classes, camadas e grupos do poder e da participação política”. Referindo-se especificamente à “classe latifundiária”, diria que ela não mais faria parte do povo, pois “seu último serviço fora a Independência”. Até 1822 (ou 1831), os latifundiários compunham o povo brasileiro, depois não mais.

Na segunda metade do século XIX, outra tarefa progressista colocar-se-ia diante da Nação: seria a liquidação do Império e a Proclamação da República. Isso significaria eliminar “todas as velhas relações econômicas e políticas que entravavam o desenvolvimento do país”. Assim, as classes interessadas na implantação do novo regime “compunham uma ampla frente, englobando setores latifundiários e a burguesia nascente, a que se somavam a pequena burguesia, o proletariado, o semiproletariado e os servos”.

Estas classes constituíam o povo brasileiro no final do século XIX, pois eram aquelas que “estavam interessadas na tarefa progressista, historicamente necessária, de criar a República”. Estranhamente, mais uma vez aparecem setores (frações) do latifúndio como ainda pertencentes ao povo brasileiro. Claro, não se trata mais de toda a classe latifundiária, como o fora no processo de Independência, mas de um pequeno setor dela. Afinal, não é possível negar a participação dos fazendeiros do Oeste paulista no movimento republicano.

Como ocorreu na sua análise sobre o processo de Independência, ao falar da composição social do movimento pela República, corretamente “relativiza” a participação dos trabalhadores, especialmente os manuais. Escreveu ele: “o reduzido proletariado e particularmente o semiproletariado não haviam alcançado ainda o grau de consciência política necessário a uma participação eficiente; e a servidão permanecia estática, isolada no vasto mundo rural”. Essas classes poderiam até ser beneficiadas pela substituição da monarquia pela República, mas não tinham consciência disso e nem participaram desta luta enquanto classe.

Pesquisas recentes tenderam a minimizar – sem negar – o papel da oligarquia cafeeira paulista no movimento que culminou na Proclamação da República e a realçar o papel desempenhado pelos setores médios urbanos. O que parece consensual é o reconhecimento da baixa participação das massas populares naquele evento importante na modernização política do país.

O interessante, neste ensaio, é o fato de Sodré não ter dado devida atenção ao movimento pela libertação dos escravos, que foi muito mais popular – e mais radical – do que o movimento republicano. Gorender chegou a afirmar que esta teria sido a única revolução social ocorrida no país e por isso deu-lhe o nome de “revolução abolicionista”.

Seja como for, esses dois acontecimentos (Abolição e Proclamação da República) fizeram parte de um único e mesmo processo de destruição do império escravista, condição indispensável para o desenvolvimento do capitalismo em nosso país. Portanto, cumpriram um papel progressista na nossa história. Foram, de certa forma, revolucionários.

O problema é que a base social (de classe) desses dois movimentos, transcorridos num mesmo período histórico, não foi necessariamente a mesma. Parte significativa dos fazendeiros paulistas escravistas aderiu ao Partido Republicano (PRP) e não protagonizou o movimento abolicionista, pelo menos até 1887. Muitos abolicionistas, inclusive radicais, foram (ou passaram a ser) ardentes monarquistas. Lembramos que, após a Abolição, massas de negros urbanos, em geral ex-escravos, passaram a compor fileiras ao lado dos monarquistas e instituíram um verdadeiro culto em torno da figura da Princesa Isabel. Criaram, inclusive, a temida Guarda Negra visando a proteger o trono ameaçado pelos republicanos radicais. Ao fazê-lo, teriam perdido a condição de povo? É óbvio que não!

Assentar a definição de povo, fundamentalmente, na participação (ou não) de uma classe social nas principais lutas transformadoras de um período histórico pode nos trazer sérias dificuldades. Isso porque nem todas as classes ou frações de classe têm consciência de seus interesses históricos e às vezes atuam contra eles. Lembremos apenas um episódio trágico da nossa história republicana: a campanha contra o arraial de Canudos. Naquele conflito, jovens oficiais davam vivas à República e ao Marechal Floriano Peixoto enquanto massacraram camponeses simpatizantes da monarquia deposta. O resultado do sangrento conflito acabou sendo o fortalecimento do latifúndio no interior do país e a derrota definitiva do jacobinismo, expressão das classes médias urbanas, como força política nacional.

O povo e a revolução brasileira

O principal objetivo de Sodré era entender o Brasil do seu tempo – final da década de 1950 e início da de 1960. Pretendia descobrir a dinâmica da “revolução brasileira”, ou seja, quais suas tarefas e as forças sociais interessadas na sua realização. Acreditava, como a maioria dos comunistas, que a revolução em curso deveria ser, pelo seu conteúdo,democrático-burguesa e não socialista.

Quais tarefas revolucionárias estavam colocadas naquela etapa histórica? Quais obstáculos deveriam ser eliminados para que o país pudesse seguir na senda do progresso? Sodré sintetizaria a resposta em uma única frase: “Libertar o Brasil do imperialismo e do latifundiário”.

As classes interessadas nessa tarefa seriam “parte da alta, média e pequenaburguesia, desligada de associação, compromisso ou subordinação ao imperialismo; o proletariado; o semiproletariado e o campesinato”. Portanto, esse era o “povo” que deveria realizar a “revolução brasileira” em meados do século XX.

No esquema de Sodré – e do PCB –, os setores da grande burguesia que tinham “seus interesses confundidos com o interesse nacional e lutavam por este” também comporiam o povo brasileiro, enquanto uma parte da pequenaburguesia “comprometida com o imperialismo” estaria excluída dele.

Como já falamos anteriormente, essa definição de povo nos parece muito fluída, pois está demasiadamente amarrada não às etapas do movimento histórico real, mas à evolução da tática e da estratégia de uma organização de esquerda. A cada inflexão política desta – e foram muitas –, as classes e frações eram incluídas e excluídas sumariamente da definição de povo brasileiro.

Vejamos um breve resumo desse movimento pendular. Entre 1945 e 1948, o PCB incluiu a grande burguesia no seio da frente anti-imperialista e antilatifundiária (e, portanto, no interior do povo brasileiro); entre 1948 e 1952 ela foi excluída daquela frente (e da condição de povo) para de novo voltar a compô-la em 1954, após a morte de Vargas. Na Declaração de Março de 1958 e na resolução do V Congresso do PCB (1960), retomou posição de destaque na frente estratégica proposta por aqueles comunistas, que passaria a ser integrada, inclusive, por setores modernos (e produtivos) do latifúndio. A grande burguesia e frações do latifúndio voltavam assim a compor o povo brasileiro.

Sodré escreveu seu ensaio justamente nos marcos de tal concepção estratégica, dentro de certo esquema da revolução brasileira. Predominava no interior do PCB – já em pleno processo de cisão – a ideia de que a nossa revolução ainda seria democrático-burguesa.Isso implicava o reconhecimento da existência de uma burguesia nacional portadora de contradições (antagônicas) com o imperialismo estadunidense e o latifúndio semifeudal. Tais esquemas não foram confirmados pela história. O golpe de 1954 e, particularmente, o de 1964 demonstraram o papel contrarrevolucionário desempenhado pelo conjunto dos latifundiários e da grande burguesia brasileira, inclusive sua fração industrial.

Não se trata aqui de questionar a necessidade de se estabelecer alianças pontuais com elementos e frações da burguesia contra o imperialismo e o latifúndio – especialmente no início da década de 1960 –, e sim a possibilidade de construção de uma aliança estratégica (de longo termo) com aqueles setores das classes dominantes. Dentro da perspectiva do próprio Sodré, podemos dizer que, pelo menos, desde meados dos anos 1950 a grande burguesia, enquanto classe, não poderia ser incluída nas fileiras do povo brasileiro.

Outro historiador comunista, Caio Prado Jr., teria uma visão diferente sobre a participação das frações das classes dominantes em todos esses episódios essenciais da história brasileira e por isso mesmo construiria sua própria noção de povo brasileiro.

* Este texto, com algumas revisões e alguns complementos, compõe o ensaio Descobrindo o povo brasileiro, publicado no livro Marxismo, história e revolução brasileira: Encontros e desencontros (Editora Anita Garibaldi, 2009).
* Augusto César Buonicore é historiador, mestre em Ciência Política pela Unicamp e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução, publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia 

LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1973.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1985.

RUY, José Carlos. Visões da História.Princípios, n. 53 e 54. São Paulo: Anita Garibaldi, 1999.

SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1967.

______. Formação histórica do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

______. A história da burguesia brasileira. Petrópolis (RJ): Vozes, 1983.

______. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Graphia, 1997.

______. A Ideologia do Colonialismo: seus reflexos no pensamento brasileiro. Petrópolis (RJ): Vozes,1984.

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