Por Víctor Sampedro, no site Outras Palavras:
Tragar a farsa do feliz mundo digital, supõe, em definitivo, engolir três sapos: Um!: trabalhamos em nosso tempo de ócio, sem cobrar. Dois!: geramos enormes lucros empresariais, dos quais não participamos. E aqui vai o terceiro sapo!: estamos mais nus e desprotegidos do que o anfíbio que engolimos. Enquanto usamos suas ferramentas, as corporações tornam-se mais ricas e opacas. Enquanto saqueiam nossa biografia, nos deixam indefesos.
“O Facebook é uma companhia que processa dados e administra — de forma magistral, segundo qualquer padrão técnico – um gráfico muito completo, milhões de nós. Para quem não está dentro, estes nós podem parecer com pessoas, leitores ou consumidores. E os dados podem parecer com notícias, relatos, fotografias ou anúncios. Mas para o Facebook, há somente dados, apenas abstrações matemáticas de um gráfico teórico.” (Nicholas Carr)
Formamos parte de um gráfico com nós (não pessoas) de dados (não conteúdos), que se processam para produzir mais informações ao nó central, o Facebook. A verdadeira mansão do Grande Irmão é a Rede, com maiúscula. Os executivos que estão no comando do negócio são bem explícitos. Chamam as comunidades virtuais de fazendas de dados (data farms). Ou seja: os gestores (administradores da comunidade) trabalham como pastores. Nossos estábulos são as redes e lá nos colocam para ordenar, classificar e ordenhar nossos dados.
Um punhado de empresas fabrica a imensa maioria de dispositivos eletrônicos e programas, plataformas e aplicativos. As corporações GAFAM (siglas de Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) ocupavam, em 2018, as cinco primeiras posições em valor no mercado de ações. A Google representa os buscadores. Facebook, as redes sociais. Amazon domina o comércio digital. Apple, os dispositivos. Poucas outras têm sua envergadura, a exceção dos gigantes da tecnologia que emergiram na China. Nos “top 10” encontramos a Alibaba (principal competidor da Amazon no comércio eletrônico mundial) e a Tencent (redes sociais, mensagens instantâneas, videogames etc) em sétimo e oitavo lugar, respectivamente. Junto à Baidu, o motor de busca predominante, e por isso conhecido como “Google chinês”, formam as BAT, uma tríade que pretende competir com as GAFAN pela hegemonia tecnológica do mundo.
Sua qualidade técnica e de serviços são inquestionáveis. Mas seu modelo de negócio - em linhas gerais, os estadunidenses e chineses são similares - ameaça acabar com nossa liberdade. Estas empresas garantem que todos fiquem de olho em todos. Usando seus aplicativos e dispositivos, nos convertemos em réplicas do Grande Irmão. Vigiamos a nós mesmos e nossos círculos, deixando pegadas digitais sem cessar. Incluindo o ritmo cardíaco que o relógio digital registra e que pode formar parte do dossiê que as empresas de seguros revisarão, antes de nos segurar. Revelamos identidades, condutas, pensamentos, desejos, intenções…em todos os planos vitais e a todo momento. Ocorre de forma inevitável e nem sempre para o mal.
Podemos vigiar quem nos governa e contrata, tornando públicos os dados sobre seus abusos. Trabalhamos com registros informatizados que podemos viralizar. E se soubéssemos devolver na mesma moeda, os que nos vigiam tremeriam. Fazer-se visível nas redes é tornar-se mais vulnerável. Mas quem menos poder tem, está mais indefeso. As corporações fecham o código e abrem “portas traseiras” para assegurar sua fonte de negócio: os metadados. O leite, a carne, a lã que damos – nós as ovelhas digitais. E que se convertem em Big Data (dados grandes): a pilhagem do Grande Irmão.
Os metadados não são os conteúdos que compartilhamos. É a informação que se anexa a nossas mensagens. Metáfora: se fossem cartões postais, seriam os dados sobre os remetentes, destinatários, a data, hora e lugar de postagem. Registra-se tudo o que aparece no carimbo dos correios e muito mais informações. Não é necessário abrir as cartas. Estão classificadas em perfis com metadados parecidos. E, quando é o caso, examinam-se as mensagens, ordenadas em grupos de consumidores de todo tipo…ou de dissidentes políticos, quiçá de “terroristas”.
Damos metadados de presente sem cessar. São o rastro inevitável que deixamos ao usar um dispositivo. Não importa qual. Se estamos conectados à Rede, estabelecemos a sincronia. Ocorre o mesmo ao baixar e atualizar aplicativos. Mesmo estando desconectados, o celular registra os lugares por quais passamos e com quais intervalos de tempo. Ao conectarmos novamente, a informação é enviada. Revela se somos sedentários ou ativos, ansiosos ou tranquilos. Traços que servem para nos enviarem propagandas “sob medida”.
Aceitamos as condições de uso sem as ler. E entramos em novos aplicativos desde nossa conta nas redes, porque obtemos uma gratificação imediata. Cremos que é grátis. Mas o preço é a transferência contínua de nossa privacidade e intimidade à bases de dados comerciais. Quanto mais compartilhamos ou comentamos, quanto mais seguidores temos, quanto mais nos locomovemos com o celular e mais o usamos, mais cedemos ao Grande Irmão.
Além dos metadados, cedemos os direitos sobre os conteúdos que subimos na Rede ou guardamos “na nuvem”. A indústria recolhe, vampiriza e privatiza a comunicação interpessoal. Os textos, fotos e vídeos deixam de ser nossos, para ser usados com qualquer propósito. Em qualquer caso, diferente do original. Seria insólito que, depois de lucrar com nossas selfies no Instagram, nos contratassem para fazer uma campanha publicitária. Essa é a isca: a fantasia que anima os mais exibicionistas.
O papel oferecido ao usuário digital é passivo: ele é rastreado e escaneado para difundir publicidades que outros fazem. Damos, isso sim, puro ouro para o marketing: informação confiável e completa. Não são respostas a um questionário, que podemos falsificar. Sabem quem vê pornô e quais categorias, que horas, em quais sites…Se não cobrimos a câmera, descobrem mais “coisas”. Revelamos dados sobre usos e costumes, desejos, tudo o que é impossível captar em um questionário. E também recordar.
Ao ser automaticamente registrada, nossa atividade digital conta um passado que esquecemos. O navegador, a conta de email, têm uma memória infalível. Pode-se comprová-lo facilmente. Façamos uma lista dos sites que vimos hoje, os e-mails, mensagens de WhatsApp enviadas. Basta, depois, rever o histórico de navegação e a caixa de entrada. Pensemos sobre o que sabemos sobre o que fizemos há um mês e o que sabem as mega-empresas. Ou desde que abrimos a primeira conta de email…
Os aplicativos registram números de telefone, o IP ou identidade do dispositivos, os emails, os usuários e senhas. Por isso, a Google nos “dá” contas de e-mail com grande capacidade de armazenamento. Essa capacidade corresponde à a da corporação para ler os emails com algorítmos. As fórmulas matemáticas identificam, por exemplo, para onde viajaremos, e então nos enviam publicidades sobre tal destino e outras coisas semelhante…ou não. Assim, sabem se estamos dispostos a mudar de rumo. E nos inundam de spam, lixo publicitário. Anúncios que, claro, pode-se evitar usando bloqueadores. O ruim é que muitos sites impedem visitas se, por exemplo, ativa-se o Adblock.
A Google vangloria-se de oferecer garantias de privacidade. Mas se você não determina explicitamente o contrário - quem o faz? - guarda os trajetos que realiza todos os dias, graças a localização proporcionada pelos celulares com sistema Android. Os telefones “inteligentes” registram um diário detalhado e íntimo, preciso e atualizado de nossas vidas. Aprenderíamos muito se pudéssemos acessá-lo. Não o permitem: nós que escrevemos, mas é de sua propriedade.
As redes nos convertem em alvos e canais comerciais de grande valor, também com objetivos específicos e canais publicitários muito confiáveis. O marketing online dirige-se a grupos de consumidores concretos. São definidos por perfis com uma infinidade de traços. As empresas verificam quais mensagens têm mais impacto sobre quem. Registram nossas reações e, o que é mais importante, o que fazemos com a informação e no que a gastamos. Finalmente, personalizam os anúncios para que sejam mais efetivos. E conseguem fazê-lo porque, para além dos dados, utilizam nossa credibilidade.
Ninguém acredita na publicidade. Até os aborígenes sabem que ela mente, exagerando as vantagens daquilo que oferece. Mas o boca a boca - agora, tela a tela - é tremendamente crível. Os amigos e conhecidos não recebem nossas mensagens na defensiva ou com receio. Supõem que não os enganamos. Se o fizermos, podem cortar relações. Compartilhamos gostos. Confiam em nosso critério e não creem que os estejamos manipulando.
Utilizando-nos como mineradores de dados e canais de propagandistas, as redes economizam pesquisas de mercado e vendem campanhas muito caras. Alguém dá menos em troca de tanto benefício? Em 2015, Max Schrems e outros 25 mil europeus exigiram o Facebook 500 euros cada, pelo que entregavam à empresa. Foi um gesto de cidadania digital, consciente da riqueza que criava. Mas também da impotência. Não receberam nem um centavo.
As empresas digitais asseguram que não vendem nossos dados. Talvez seja verdade. Não que é os vendam, mas sim que trocam entre si. Compartilham em troca de outros dados e assim formam um perfil ainda mais completo de cada um de nós. Ademais, muitas formam parte do mesmo grupo. Mark Zuckerberg detém o Facebook, Instagram e WhatsApp. Desse modo, Facebook e WhatsApp forneceram dados para criar anúncios personalizados. E contatos para difundi-los em campanhas ajustadas ao objetivo publicitário. O Instagram ajuda Zuckerberg a personalizar ainda mais os anúncios.
Em janeiro de 2017, um tribunal de Berlim alegou que o WhatsApp “coleta e armazena dados ilegalmente em parte e os compartilha com o Facebook”. A sentença apenas obrigou a empresa a suspender temporariamente a prática. Meses depois, a União Europeia impôs uma multa a Zuckerberg por tais práticas, multa cujo valor representava 1% de seus lucros. Emaranhados dia e noite, falta espaço para respirar. E buscamos espaços de comunicação limpos, sem contaminação publicitária. Precisamos de anonimato, para que não manipulem o que compartilhamos e aproveitem nossa informação, sem qualquer controle ou remuneração. E queremos privacidade: poder falar com quem quisermos. Ou ficar sós, nem que seja por pouco tempo. Algumas redes de mensagens (WhatsApp ou Telegram) recusam-se a incluir publicidade e criptografam as mensagens. Afirmam guardá-las codificadas. Ou que as apagam, como o Snapchat. É o que dizem.
O anonimato e a privacidade industrial são enganosos. Primeiro, a criptografia não vem como padrão, embora a própria ONU e uma ONG com a repercussão da Anistia Internacional tenham-no solicitado. O usuário deve ativá-la. Mais uma vez, quem faz isso? Pergunta-se: os cintos de segurança dos automóveis também também vêm desativados? Criptografar antes de navegar na internet é equivalente a colocar o cinto antes de arrancar. E, segunda maneira de nos enganar: a própria criptografia serve muito pouco. Ainda que neguem, todas as redes e aparatos têm “portas traseiras” por onde entrar. Em resumo, embora ninguém hackeie os aplicativos, as empresas obtém e comercializam nossos dados de forma ilegal.
Para que não nos escandalizemos com estas práticas corporativas, enganam-se com a publicidade. Tratam de normalizá-la e relativizá-la, além de apresentá-la como algo positivo. O que para um cidadão é uma violação de seu direito à privacidade e intimidade, para um cliente ou consumidor é comodidade e conveniência de não ter que pensar por si mesmo sobre aquilo que quer, pois o algoritmo o faz.
Antes que Orwell escrevesse seu clássico 1984, Aldous Huxley publicou Admirável Mundo Novo, imaginando profeticamente o mundo do capitalismo digital. O livro retrata nossa visão da tecnologia, porque estamos entupidos de soma, a droga legal que Huxley imaginou, e que convertia em paraíso o inferno. No nosso mundo, estamos viciados em tecnologia e em consumo. Ou em consumo de tecnologia, que incita a consumir mais. As corporações digitais apresentam-se como solução a qualquer tipo de necessidade. Incluídas as existenciais, como o amor e a amizade.A indústria tecnológica sustenta que nos monitora para nos dar um “melhor serviço”. Isso só é possível se acreditarmos que as corporações e a sociedade possuem interesses idênticos. E que a publicidade é igualmente confiável e crível como a informação. Duas afirmações que, quando relidas (ou já à primeira leitura), resultam mentiras evidentes.
Tragar a farsa do feliz mundo digital, supõe, em definitivo, engolir três sapos: Um!: trabalhamos em nosso tempo de ócio, sem cobrar. Dois!: geramos enormes lucros empresariais, dos quais não participamos. E aqui vai o terceiro sapo!: estamos mais nus e desprotegidos do que o anfíbio que engolimos. Enquanto usamos suas ferramentas, as corporações tornam-se mais ricas e opacas. Enquanto saqueiam nossa biografia, nos deixam indefesos.
“O Facebook é uma companhia que processa dados e administra — de forma magistral, segundo qualquer padrão técnico – um gráfico muito completo, milhões de nós. Para quem não está dentro, estes nós podem parecer com pessoas, leitores ou consumidores. E os dados podem parecer com notícias, relatos, fotografias ou anúncios. Mas para o Facebook, há somente dados, apenas abstrações matemáticas de um gráfico teórico.” (Nicholas Carr)
Formamos parte de um gráfico com nós (não pessoas) de dados (não conteúdos), que se processam para produzir mais informações ao nó central, o Facebook. A verdadeira mansão do Grande Irmão é a Rede, com maiúscula. Os executivos que estão no comando do negócio são bem explícitos. Chamam as comunidades virtuais de fazendas de dados (data farms). Ou seja: os gestores (administradores da comunidade) trabalham como pastores. Nossos estábulos são as redes e lá nos colocam para ordenar, classificar e ordenhar nossos dados.
Um punhado de empresas fabrica a imensa maioria de dispositivos eletrônicos e programas, plataformas e aplicativos. As corporações GAFAM (siglas de Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) ocupavam, em 2018, as cinco primeiras posições em valor no mercado de ações. A Google representa os buscadores. Facebook, as redes sociais. Amazon domina o comércio digital. Apple, os dispositivos. Poucas outras têm sua envergadura, a exceção dos gigantes da tecnologia que emergiram na China. Nos “top 10” encontramos a Alibaba (principal competidor da Amazon no comércio eletrônico mundial) e a Tencent (redes sociais, mensagens instantâneas, videogames etc) em sétimo e oitavo lugar, respectivamente. Junto à Baidu, o motor de busca predominante, e por isso conhecido como “Google chinês”, formam as BAT, uma tríade que pretende competir com as GAFAN pela hegemonia tecnológica do mundo.
Sua qualidade técnica e de serviços são inquestionáveis. Mas seu modelo de negócio - em linhas gerais, os estadunidenses e chineses são similares - ameaça acabar com nossa liberdade. Estas empresas garantem que todos fiquem de olho em todos. Usando seus aplicativos e dispositivos, nos convertemos em réplicas do Grande Irmão. Vigiamos a nós mesmos e nossos círculos, deixando pegadas digitais sem cessar. Incluindo o ritmo cardíaco que o relógio digital registra e que pode formar parte do dossiê que as empresas de seguros revisarão, antes de nos segurar. Revelamos identidades, condutas, pensamentos, desejos, intenções…em todos os planos vitais e a todo momento. Ocorre de forma inevitável e nem sempre para o mal.
Podemos vigiar quem nos governa e contrata, tornando públicos os dados sobre seus abusos. Trabalhamos com registros informatizados que podemos viralizar. E se soubéssemos devolver na mesma moeda, os que nos vigiam tremeriam. Fazer-se visível nas redes é tornar-se mais vulnerável. Mas quem menos poder tem, está mais indefeso. As corporações fecham o código e abrem “portas traseiras” para assegurar sua fonte de negócio: os metadados. O leite, a carne, a lã que damos – nós as ovelhas digitais. E que se convertem em Big Data (dados grandes): a pilhagem do Grande Irmão.
Os metadados não são os conteúdos que compartilhamos. É a informação que se anexa a nossas mensagens. Metáfora: se fossem cartões postais, seriam os dados sobre os remetentes, destinatários, a data, hora e lugar de postagem. Registra-se tudo o que aparece no carimbo dos correios e muito mais informações. Não é necessário abrir as cartas. Estão classificadas em perfis com metadados parecidos. E, quando é o caso, examinam-se as mensagens, ordenadas em grupos de consumidores de todo tipo…ou de dissidentes políticos, quiçá de “terroristas”.
Damos metadados de presente sem cessar. São o rastro inevitável que deixamos ao usar um dispositivo. Não importa qual. Se estamos conectados à Rede, estabelecemos a sincronia. Ocorre o mesmo ao baixar e atualizar aplicativos. Mesmo estando desconectados, o celular registra os lugares por quais passamos e com quais intervalos de tempo. Ao conectarmos novamente, a informação é enviada. Revela se somos sedentários ou ativos, ansiosos ou tranquilos. Traços que servem para nos enviarem propagandas “sob medida”.
Aceitamos as condições de uso sem as ler. E entramos em novos aplicativos desde nossa conta nas redes, porque obtemos uma gratificação imediata. Cremos que é grátis. Mas o preço é a transferência contínua de nossa privacidade e intimidade à bases de dados comerciais. Quanto mais compartilhamos ou comentamos, quanto mais seguidores temos, quanto mais nos locomovemos com o celular e mais o usamos, mais cedemos ao Grande Irmão.
Além dos metadados, cedemos os direitos sobre os conteúdos que subimos na Rede ou guardamos “na nuvem”. A indústria recolhe, vampiriza e privatiza a comunicação interpessoal. Os textos, fotos e vídeos deixam de ser nossos, para ser usados com qualquer propósito. Em qualquer caso, diferente do original. Seria insólito que, depois de lucrar com nossas selfies no Instagram, nos contratassem para fazer uma campanha publicitária. Essa é a isca: a fantasia que anima os mais exibicionistas.
O papel oferecido ao usuário digital é passivo: ele é rastreado e escaneado para difundir publicidades que outros fazem. Damos, isso sim, puro ouro para o marketing: informação confiável e completa. Não são respostas a um questionário, que podemos falsificar. Sabem quem vê pornô e quais categorias, que horas, em quais sites…Se não cobrimos a câmera, descobrem mais “coisas”. Revelamos dados sobre usos e costumes, desejos, tudo o que é impossível captar em um questionário. E também recordar.
Ao ser automaticamente registrada, nossa atividade digital conta um passado que esquecemos. O navegador, a conta de email, têm uma memória infalível. Pode-se comprová-lo facilmente. Façamos uma lista dos sites que vimos hoje, os e-mails, mensagens de WhatsApp enviadas. Basta, depois, rever o histórico de navegação e a caixa de entrada. Pensemos sobre o que sabemos sobre o que fizemos há um mês e o que sabem as mega-empresas. Ou desde que abrimos a primeira conta de email…
Os aplicativos registram números de telefone, o IP ou identidade do dispositivos, os emails, os usuários e senhas. Por isso, a Google nos “dá” contas de e-mail com grande capacidade de armazenamento. Essa capacidade corresponde à a da corporação para ler os emails com algorítmos. As fórmulas matemáticas identificam, por exemplo, para onde viajaremos, e então nos enviam publicidades sobre tal destino e outras coisas semelhante…ou não. Assim, sabem se estamos dispostos a mudar de rumo. E nos inundam de spam, lixo publicitário. Anúncios que, claro, pode-se evitar usando bloqueadores. O ruim é que muitos sites impedem visitas se, por exemplo, ativa-se o Adblock.
A Google vangloria-se de oferecer garantias de privacidade. Mas se você não determina explicitamente o contrário - quem o faz? - guarda os trajetos que realiza todos os dias, graças a localização proporcionada pelos celulares com sistema Android. Os telefones “inteligentes” registram um diário detalhado e íntimo, preciso e atualizado de nossas vidas. Aprenderíamos muito se pudéssemos acessá-lo. Não o permitem: nós que escrevemos, mas é de sua propriedade.
As redes nos convertem em alvos e canais comerciais de grande valor, também com objetivos específicos e canais publicitários muito confiáveis. O marketing online dirige-se a grupos de consumidores concretos. São definidos por perfis com uma infinidade de traços. As empresas verificam quais mensagens têm mais impacto sobre quem. Registram nossas reações e, o que é mais importante, o que fazemos com a informação e no que a gastamos. Finalmente, personalizam os anúncios para que sejam mais efetivos. E conseguem fazê-lo porque, para além dos dados, utilizam nossa credibilidade.
Ninguém acredita na publicidade. Até os aborígenes sabem que ela mente, exagerando as vantagens daquilo que oferece. Mas o boca a boca - agora, tela a tela - é tremendamente crível. Os amigos e conhecidos não recebem nossas mensagens na defensiva ou com receio. Supõem que não os enganamos. Se o fizermos, podem cortar relações. Compartilhamos gostos. Confiam em nosso critério e não creem que os estejamos manipulando.
Utilizando-nos como mineradores de dados e canais de propagandistas, as redes economizam pesquisas de mercado e vendem campanhas muito caras. Alguém dá menos em troca de tanto benefício? Em 2015, Max Schrems e outros 25 mil europeus exigiram o Facebook 500 euros cada, pelo que entregavam à empresa. Foi um gesto de cidadania digital, consciente da riqueza que criava. Mas também da impotência. Não receberam nem um centavo.
As empresas digitais asseguram que não vendem nossos dados. Talvez seja verdade. Não que é os vendam, mas sim que trocam entre si. Compartilham em troca de outros dados e assim formam um perfil ainda mais completo de cada um de nós. Ademais, muitas formam parte do mesmo grupo. Mark Zuckerberg detém o Facebook, Instagram e WhatsApp. Desse modo, Facebook e WhatsApp forneceram dados para criar anúncios personalizados. E contatos para difundi-los em campanhas ajustadas ao objetivo publicitário. O Instagram ajuda Zuckerberg a personalizar ainda mais os anúncios.
Em janeiro de 2017, um tribunal de Berlim alegou que o WhatsApp “coleta e armazena dados ilegalmente em parte e os compartilha com o Facebook”. A sentença apenas obrigou a empresa a suspender temporariamente a prática. Meses depois, a União Europeia impôs uma multa a Zuckerberg por tais práticas, multa cujo valor representava 1% de seus lucros. Emaranhados dia e noite, falta espaço para respirar. E buscamos espaços de comunicação limpos, sem contaminação publicitária. Precisamos de anonimato, para que não manipulem o que compartilhamos e aproveitem nossa informação, sem qualquer controle ou remuneração. E queremos privacidade: poder falar com quem quisermos. Ou ficar sós, nem que seja por pouco tempo. Algumas redes de mensagens (WhatsApp ou Telegram) recusam-se a incluir publicidade e criptografam as mensagens. Afirmam guardá-las codificadas. Ou que as apagam, como o Snapchat. É o que dizem.
O anonimato e a privacidade industrial são enganosos. Primeiro, a criptografia não vem como padrão, embora a própria ONU e uma ONG com a repercussão da Anistia Internacional tenham-no solicitado. O usuário deve ativá-la. Mais uma vez, quem faz isso? Pergunta-se: os cintos de segurança dos automóveis também também vêm desativados? Criptografar antes de navegar na internet é equivalente a colocar o cinto antes de arrancar. E, segunda maneira de nos enganar: a própria criptografia serve muito pouco. Ainda que neguem, todas as redes e aparatos têm “portas traseiras” por onde entrar. Em resumo, embora ninguém hackeie os aplicativos, as empresas obtém e comercializam nossos dados de forma ilegal.
Para que não nos escandalizemos com estas práticas corporativas, enganam-se com a publicidade. Tratam de normalizá-la e relativizá-la, além de apresentá-la como algo positivo. O que para um cidadão é uma violação de seu direito à privacidade e intimidade, para um cliente ou consumidor é comodidade e conveniência de não ter que pensar por si mesmo sobre aquilo que quer, pois o algoritmo o faz.
* Publicado no site OtherNews. Tradução de Marianna Braghini e Felipe Calabrez.
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