Por José Luiz Fiori, no site da Fundação Maurício Grabois:
O meu anjo irá adiante de ti e te levará aos amoreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus, e eu os exterminarei. Não adorarás os seus deuses, nem os servirás; não farás o que eles fazem, mas destruirás os seus deuses e quebrarás as suas colunas. (Êxodo, 23, Bíblia de Jerusalém, Edições Paulinas, São Paulo, p.140)
Na segunda década do século XVI, o humanista cristão Erasmo de Roterdã sustentou um famoso debate teológico com Martim Lutero sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre o critério de verdade no conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor, mas ajudou a clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou a autoridade do Papa e dos Concílios e defendeu a tese de que todo cristão deveria julgar por si mesmo, o que fosse certo e o fosse errado no campo da fé.
Para Lutero, como para Calvino, a evidência última da verdade religiosa era a “persuasão” de cada um dos leitores das Escrituras, e essa “persuasão” era concedida aos homens pela “revelação” do Espírito Santo. Contra este argumento de Lutero, Erasmo levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero, como poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes de algumas passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se poderia escapar da circularidade do raciocínio de Lutero, que considerava que o critério da verdade religiosa era a “persuasão interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia que esta mesma “persuasão” só poderia ser garantida pela “revelação divina”. Uma “revelação” pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com outra “revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o que seja a ortodoxia, e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na fogueira, acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a doutrina pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso da violência e à “guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma tese que foi radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da Igreja Católica que cunhou o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 – para designar e justificar o assassinato cristão de hereges, pagãos e infiéis de todo tipo – doutrina aceita e praticada durante toda a Idade Média.
Do lado protestante, o primeiro herege colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado pelos calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso, entretanto, em 1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de 100 mil camponeses alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o clero católico, inspirados pelas próprias ideias de Lutero.
A partir daí, a violência e a crueldade entre as seitas cristãs foi cada vez maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se transformou na força propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes que durou mais de cem anos – de 1524 a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da América. Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa ira santa contra os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões perdeu sua centralidade política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas decisões de guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular depois do fim da Guerra Fria, vem-se assistindo por todos os lados o renascimento de um fanatismo religioso associado a forças políticas de extrema-direita. Tudo indica que essa onda começou nos EUA, na década de 1980, sob a liderança de seitas evangélicas e pentecostais, mas contando também com o apoio de setores cada mais extensos da Igreja Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao crescimento do medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um futuro incerto e imprevisível.
Seja qual for a causa, a verdade é que esse fenômeno adquiriu uma nova dimensão com a eleição de Donald Trump, em 2016, apoiado por uma grande coalizão de forças religiosas e de extrema-direita que acabaram se impondo dentro Partido Republicano e vencendo as eleições. E houve um novo salto nesse processo, no momento em que essas forças religiosas assumiram o comando da política externa dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton, como secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da Presidência da República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike Pence, o vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa, para formar um dos grupos mais conservadores e belicistas que já comandou a política externa dos EUA, desde a II Guerra Mundial. Todos discípulos de Dick Cheney, e todos firmemente convencidos de que os EUA foram o “povo escolhido” por Deus para salvar a civilização judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo e J. Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra comercial” com a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, que havia sido assinado em 2015, o ICPOA. Anunciaram também, logo em seguida, uma série de sanções com o objetivo de estrangular progressivamente a economia iraniana. Hoje, os EUA bombardeiam quase diariamente a população de quatro países, pelo menos: Afeganistão, Somália, Síria e Iêmen, e sustentam, ao mesmo tempo, uma escalada global de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos militares, e de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia, Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia – Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA anunciaram seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”, assinado com a URSS, em 1987, e depois aceleraram e multiplicaram suas intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios norte-americanos. Um quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível com o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de “cristianização da política externa norte-americana”.
Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente, através da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos bíblicos da política externa dos EUA, que estão convencidos de que Donald Trump é o homem que foi enviado para comandar as forças do Bem contra o Mal, na batalha apocalíptica do Armagedon, que segundo a profecia bíblica, deverá ser vencida pelas forças do bem –portanto, pelos Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e pentecostal é compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje são liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está envolvido na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.
Do ponto de vista desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada vez menos absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que hoje estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de 2001 teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com o objetivo de mobilizar as energias nacionais americanas para uma guerra religiosa secular, contra o Islã e contra todas as heresias que se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a verdade é que é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001 permitiram a Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como secretário de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano declarar guerra sem autorização do Congresso Nacional, em caso de “ameaça terrorista”; e o direito do Banco Central e do governo americano de acessarem e controlarem todas as operações financeiras mundiais que passem pelo sistema bancário americano, pelo Banco da Inglaterra e pelo próprio sistema bancário da União Europeia. Tudo isto pode ser apenas uma especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que essas teses e interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a esse conjunto de ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos que ameacem sua lealdade judaica e estejam no caminho de seu projeto de poder global.
Mas existe outro lado deste assunto que não é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas possam não compartilhar desses mesmos valores nem considerar que esses mesmos textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum fundamento real –o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e Lutero. A diferença, nesse caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo nem é um cristão necessariamente, e pode até considerar que todas essas previsões do Apocalipse são uma rematada loucura. Além disso, no campo internacional, este “outro” é sempre um Estado nacional, e pode ser um Estado que tenha as mesmas pretensões globais dos EUA, e que luta por suas crenças e valores com a mesma intensidade que os norte-americanos. Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de “gritos e ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória significativa, nem mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e adversários mais importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no Oriente Médio e na América Latina.
Desse ponto de vista, com toda certeza, uma das poucas intervenções diretas bem sucedidas (pelo menos no curto prazo) desse grupo de herdeiros de Dick Cheney foi mesmo a “operação Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma coalizão política montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas muito toscas e, ao mesmo tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma espécie de simulacro de baixo nível de qualidade da própria coalizão que elegeu Trump e, mais especificamente, do grupo que assumiu o comando de sua política externa e emplacou um de seus discípulos (ou seminaristas?), no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com a função explícita e imediata de apoiar e participar da invasão militar da Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel patético e solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali postado como se fosse o comandante de um exército que não existia e de uma invasão que não aconteceu.
Faltou Mike Pompeo explicar ao seu pupilo que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na prática, um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar de ocupação, com poder atômico; e os Estados Unidos, que já foram “fundados“ pelos puritanos, uma seita de origem calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o século XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais.
Além disso, Pompeo deveria ter-lhe explicado que, no caso de Israel e dos Estados Unidos, o discurso religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus interesses militares, políticos e econômicos. Já no caso do Brasil, a luta pela civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide ou ajuda a promover os interesses econômicos e estratégicos de um país que é multicultural, multirracial e extremamente heterogêneo do ponto de vista religioso, e desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa nova submissão da política externa brasileira aos versículos da Bíblia admirados pelo presidente e seus filhos, e pelo próprio ministro, limitam inevitavelmente o escopo das alianças internacionais do país a um número muito pequeno e inexpressivo de países sem grande projeção, como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polônia, ou mesmo Israel, fora do Oriente Médio.
A artificialidade do projeto americano transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros, que tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John Bolton. Esta violência primitiva do núcleo governante brasileiro transforma toda e qualquer divergência política e democrática numa heresia e tenta eliminar e destruir como herege todos os seus opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil um tipo de divisão e enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou esquecer por muitos e muitos anos, talvez décadas.
No caso do governo Trump, a agressão internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos norte-americanos. Mas, no caso da agressividade bolsonarista e de sua obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma sociedade que se sente atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que não são capazes de propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro mais pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo religioso e fundamentalista propõe é uma espécie de distopia da violência, o prazer da violência pela violência e o desejo psicopático doentio de destruir a tudo e a todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é usada em todo mundo como sinônimo de violência irracional e destruição psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum sentido ético e humanitário. Já e utilizada também como um sinal vermelho de advertência sobre o limite a que pode chegar a humanidade quando perde o sentido ético da política e da história, e se joga contra tudo e contra todos, movida pelo ódio, medo e paranoia, transformando a religião num instrumento de vingança e destruição da possibilidade de convivência entre os homens.
Nesse sentido, e de alguma forma, o “bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em todo mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e Lutero: perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o amor entre os homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e a guerra sem fim contra “hereges” e “heresias” que elas mesmas vão inventando, separando amigos e inimigos, fiéis e infiéis, com base em “revelações” e “persuasões individuais” que não se sustentam em nenhum tipo de evidência ou argumentação racional, mas que acabam reforçando a unidade e a identidade destas seitas através do próprio exercício da violência.
Na segunda década do século XVI, o humanista cristão Erasmo de Roterdã sustentou um famoso debate teológico com Martim Lutero sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre o critério de verdade no conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor, mas ajudou a clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou a autoridade do Papa e dos Concílios e defendeu a tese de que todo cristão deveria julgar por si mesmo, o que fosse certo e o fosse errado no campo da fé.
Para Lutero, como para Calvino, a evidência última da verdade religiosa era a “persuasão” de cada um dos leitores das Escrituras, e essa “persuasão” era concedida aos homens pela “revelação” do Espírito Santo. Contra este argumento de Lutero, Erasmo levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero, como poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes de algumas passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se poderia escapar da circularidade do raciocínio de Lutero, que considerava que o critério da verdade religiosa era a “persuasão interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia que esta mesma “persuasão” só poderia ser garantida pela “revelação divina”. Uma “revelação” pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com outra “revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o que seja a ortodoxia, e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na fogueira, acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a doutrina pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso da violência e à “guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma tese que foi radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da Igreja Católica que cunhou o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 – para designar e justificar o assassinato cristão de hereges, pagãos e infiéis de todo tipo – doutrina aceita e praticada durante toda a Idade Média.
Do lado protestante, o primeiro herege colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado pelos calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso, entretanto, em 1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de 100 mil camponeses alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o clero católico, inspirados pelas próprias ideias de Lutero.
A partir daí, a violência e a crueldade entre as seitas cristãs foi cada vez maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se transformou na força propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes que durou mais de cem anos – de 1524 a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da América. Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa ira santa contra os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões perdeu sua centralidade política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas decisões de guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular depois do fim da Guerra Fria, vem-se assistindo por todos os lados o renascimento de um fanatismo religioso associado a forças políticas de extrema-direita. Tudo indica que essa onda começou nos EUA, na década de 1980, sob a liderança de seitas evangélicas e pentecostais, mas contando também com o apoio de setores cada mais extensos da Igreja Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao crescimento do medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um futuro incerto e imprevisível.
Seja qual for a causa, a verdade é que esse fenômeno adquiriu uma nova dimensão com a eleição de Donald Trump, em 2016, apoiado por uma grande coalizão de forças religiosas e de extrema-direita que acabaram se impondo dentro Partido Republicano e vencendo as eleições. E houve um novo salto nesse processo, no momento em que essas forças religiosas assumiram o comando da política externa dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton, como secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da Presidência da República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike Pence, o vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa, para formar um dos grupos mais conservadores e belicistas que já comandou a política externa dos EUA, desde a II Guerra Mundial. Todos discípulos de Dick Cheney, e todos firmemente convencidos de que os EUA foram o “povo escolhido” por Deus para salvar a civilização judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo e J. Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra comercial” com a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, que havia sido assinado em 2015, o ICPOA. Anunciaram também, logo em seguida, uma série de sanções com o objetivo de estrangular progressivamente a economia iraniana. Hoje, os EUA bombardeiam quase diariamente a população de quatro países, pelo menos: Afeganistão, Somália, Síria e Iêmen, e sustentam, ao mesmo tempo, uma escalada global de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos militares, e de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte, Turquia, Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia – Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA anunciaram seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”, assinado com a URSS, em 1987, e depois aceleraram e multiplicaram suas intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens, ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios norte-americanos. Um quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível com o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de “cristianização da política externa norte-americana”.
Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente, através da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos bíblicos da política externa dos EUA, que estão convencidos de que Donald Trump é o homem que foi enviado para comandar as forças do Bem contra o Mal, na batalha apocalíptica do Armagedon, que segundo a profecia bíblica, deverá ser vencida pelas forças do bem –portanto, pelos Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e pentecostal é compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje são liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está envolvido na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco.
Do ponto de vista desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada vez menos absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que hoje estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de 2001 teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com o objetivo de mobilizar as energias nacionais americanas para uma guerra religiosa secular, contra o Islã e contra todas as heresias que se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a verdade é que é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001 permitiram a Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como secretário de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano declarar guerra sem autorização do Congresso Nacional, em caso de “ameaça terrorista”; e o direito do Banco Central e do governo americano de acessarem e controlarem todas as operações financeiras mundiais que passem pelo sistema bancário americano, pelo Banco da Inglaterra e pelo próprio sistema bancário da União Europeia. Tudo isto pode ser apenas uma especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que essas teses e interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a esse conjunto de ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos que ameacem sua lealdade judaica e estejam no caminho de seu projeto de poder global.
Mas existe outro lado deste assunto que não é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas possam não compartilhar desses mesmos valores nem considerar que esses mesmos textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum fundamento real –o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e Lutero. A diferença, nesse caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo nem é um cristão necessariamente, e pode até considerar que todas essas previsões do Apocalipse são uma rematada loucura. Além disso, no campo internacional, este “outro” é sempre um Estado nacional, e pode ser um Estado que tenha as mesmas pretensões globais dos EUA, e que luta por suas crenças e valores com a mesma intensidade que os norte-americanos. Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de “gritos e ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória significativa, nem mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e adversários mais importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no Oriente Médio e na América Latina.
Desse ponto de vista, com toda certeza, uma das poucas intervenções diretas bem sucedidas (pelo menos no curto prazo) desse grupo de herdeiros de Dick Cheney foi mesmo a “operação Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma coalizão política montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas muito toscas e, ao mesmo tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma espécie de simulacro de baixo nível de qualidade da própria coalizão que elegeu Trump e, mais especificamente, do grupo que assumiu o comando de sua política externa e emplacou um de seus discípulos (ou seminaristas?), no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, com a função explícita e imediata de apoiar e participar da invasão militar da Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel patético e solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali postado como se fosse o comandante de um exército que não existia e de uma invasão que não aconteceu.
Faltou Mike Pompeo explicar ao seu pupilo que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na prática, um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar de ocupação, com poder atômico; e os Estados Unidos, que já foram “fundados“ pelos puritanos, uma seita de origem calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o século XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais.
Além disso, Pompeo deveria ter-lhe explicado que, no caso de Israel e dos Estados Unidos, o discurso religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus interesses militares, políticos e econômicos. Já no caso do Brasil, a luta pela civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide ou ajuda a promover os interesses econômicos e estratégicos de um país que é multicultural, multirracial e extremamente heterogêneo do ponto de vista religioso, e desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa nova submissão da política externa brasileira aos versículos da Bíblia admirados pelo presidente e seus filhos, e pelo próprio ministro, limitam inevitavelmente o escopo das alianças internacionais do país a um número muito pequeno e inexpressivo de países sem grande projeção, como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polônia, ou mesmo Israel, fora do Oriente Médio.
A artificialidade do projeto americano transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros, que tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John Bolton. Esta violência primitiva do núcleo governante brasileiro transforma toda e qualquer divergência política e democrática numa heresia e tenta eliminar e destruir como herege todos os seus opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil um tipo de divisão e enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou esquecer por muitos e muitos anos, talvez décadas.
No caso do governo Trump, a agressão internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos norte-americanos. Mas, no caso da agressividade bolsonarista e de sua obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma sociedade que se sente atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que não são capazes de propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro mais pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo religioso e fundamentalista propõe é uma espécie de distopia da violência, o prazer da violência pela violência e o desejo psicopático doentio de destruir a tudo e a todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é usada em todo mundo como sinônimo de violência irracional e destruição psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum sentido ético e humanitário. Já e utilizada também como um sinal vermelho de advertência sobre o limite a que pode chegar a humanidade quando perde o sentido ético da política e da história, e se joga contra tudo e contra todos, movida pelo ódio, medo e paranoia, transformando a religião num instrumento de vingança e destruição da possibilidade de convivência entre os homens.
Nesse sentido, e de alguma forma, o “bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em todo mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e Lutero: perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o amor entre os homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e a guerra sem fim contra “hereges” e “heresias” que elas mesmas vão inventando, separando amigos e inimigos, fiéis e infiéis, com base em “revelações” e “persuasões individuais” que não se sustentam em nenhum tipo de evidência ou argumentação racional, mas que acabam reforçando a unidade e a identidade destas seitas através do próprio exercício da violência.
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