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Desde o final dos anos 1970, vivemos um enorme experimento para testar a afirmação segundo a qual mercados “livres” realmente funcionam bem. Esta ressurreição ocorreu apesar do fracasso do laissez-faire, nos anos 1930, a humilhação consequente da teoria dos mercados “livres” e, em contraste, o sucesso do capitalismo regulado, durante o boom de três décadas do pós-II Guerra.
Quando o crescimento arrefeceu, nos anos 1970, a teoria econômica ultraliberal teve uma nova chance. Ela demonstrou ser muito conveniente para os conservadores, que voltaram ao poder na década seguinte. A contrarrevolução neoliberal, na teoria e na prática, reverteu ou solapou quase todos os aspectos do capitalismo regulado – a tributação progressiva, as transferências de renda em favor do bem-estar, as políticas antitruste, o empoderamento dos trabalhadores e a regulamentação dos bancos e outros grandes setores econômicos.
A premissa neoliberal sustenta que mercados “livres” podem regular a si mesmos; que o Estado tem incompetência inerente, deixa-se capturar por certos interesses e representa uma intrusão na eficiência do mercado; que, em termos da distribuição de riquezas, os resultados sancionados pelo mercado são, em essência, merecidos; e que a redistribuição cria incentivos perversos, ao punir os vencedores econômicos e recompensar os perdedores. Por isso o Estado deveria afastar-se das relações de mercado.
Nos anos 1990, mesmo a esquerda moderada havia se convertido à crença de que os objetivos de justiça social podem ser alcançados reforçando o poder dos mercados. Períodos intermitentes de governo da esquerda atrasaram, mas não reverteram a deriva rumo à doutrina e às políticas neoliberais. As alas empresariais dos partidos que compuseram esta esquerda aplaudiram.
Agora, depois de quase meio século, o veredito é claro. Virtualmente todas estas políticas fracassaram, mesmo em seus próprios termos. As empresas foram recompensadas; os impostos, cortados; a regulação, reduzida ou transferida ao setor privado. E a economia é muito mais desigual; no entanto, o crescimento econômico é muito mais lento e caótico que durante a era do capitalismo regulado. A desregulação não produziu competição salutar, mas concentração de mercado. O poder econômico produziu mudanças no poder político, por meio das quais as elites impõem regras que produzem mais concentração.
O culpado não são propriamente os “mercados” – uma força impessoal que de algum modo tornou-se descontrolada de novo. Trata-se de um caso de controle de poder por meio da manipulação da teoria. A economia regulada foi desfeita pelas elites econômicas, que refizeram as regras em seu próprio benefício. Elas patrocinaram pesadamente teóricos “amigos”, que apresentaram a mudança como algo necessário e saudável; e políticos “amigos”, que colocaram as teorias em prática.
Nos últimos anos, houve dois casos espetaculares de erros de mercado, com consequências devastadoras: a quase-depressão iniciada em 2008 e os sinais de mudança climática irreversível. O colapso econômico de 2008 foi o resultado da desregulação das finanças. Só nos EUA, custou à economia 15 trilhões de dólares e, dependendo do cálculo, muito mais que qualquer ganho de eficiência concebível, que pudesse ser creditado à inovação financeira. A teoria dos mercados “livres” presume que a inovação é necessariamente benigna. Mas muito da engenharia financeira da era desregulatória favorecia os que a adotavam, era opaca e corrupta – o oposto de um mercado eficiente e transparente
A ameaça existencial da mudança climática global reflete a incompetência dos mercados para precificar de modo acurado as emissões de carbono e os custos crescentes da poluição. O economista britânico Nicholas Stern classificou os riscos crescentes de catástrofe climática como o maior caso de fracasso dos mercados da história. Também aqui, não é apenas o resultado de erros teóricos. O poder arraigado das indústrias extrativas e de seus aliados políticos influencia as regras e o preço de mercado do carbono. Isso é menos a “mão invisível” que uma garra. A permissão de “mercados eficientes” oferece útil cobertura.
O grande experimento neoliberal dos últimos 40 anos demonstrou que os mercados são incapazes de se autorregular. Mercados regulados pelo setor público são menos desiguais e mais eficiente. No entanto, a teoria e a influência prática do neoliberalismo avançam, porque ele é muito útil para os setores mais poderosos da sociedade – com um verniz acadêmico recobrindo o que seria, de outra forma, uma captura de poder sem disfarces. O economista político britânico Colon Crouch registrou esta anomalia num livro de título sugestivo: The Strange Non-Death of Neoliberalism [“A estranha não-morte do Neoliberalismo”]. Por que o neoliberalismo não morreu? Com o autor observa, ele fracassou tanto como teoria quanto em seus resultados práticos, mas foi extremamente bem-sucedido como política de poder para as elites econômicas.
O avanço neoliberal teve outro custo calamitoso – a legitimidade democrática. À medida em que o Estado deixou de mitigar as forças de mercado, a vida cotidiana tornou-se, para as pessoas comuns, uma luta árdua. As bases de uma vida decente são evidentes – empregos e carreiras seguras, aposentadorias adequadas, atendimento à Saúde, habitação acessível, acesso à Educação sem endividamento por toda a vida. No entanto, a vida tornou-se cada vez mais fácil para as elites econômicas, cujas renda e riqueza multiplicaram-se e cuja lealdade local e à nação tornou-se mais incerta e menos segura.
Vastos setores da sociedade, em consequência, abandonaram a crença em governos realizadores e na própria democracia. Depois que o Muro de Berlim caiu, em 1989, acreditou-se que a nova era seria marcada pelo triunfo do capitalismo liberal e da democracia. Mas em poucas décadas, a segurança aparente da democracia desabou em cada vez mais países, num ecoar dos anos 1930.
Como advertiu o grande historiador da Política, Karl Polanye, quando os mercados oprimem as sociedades, os cidadãos comuns frequentemente voltam-se para os tiranos. Em regimes que se aproximam do neofascismo, clepto-capitalistas confraternizam com ditadores, minando a premissa de que capitalismo e democracia são complementares. Muitos gângsters autoritários tornam-se surpreendentemente populares ao mobilizar os nacionalismos tribais como antídoto ao cosmopolitismo capitalista.
Também vale a pena observar que neoliberalismo não é laissez-fair. Classicamente, a premissa de um “livre” mercado é a de que o Estado simplesmente se retira. É algo sem sentido, já que todos os mercados são criados por regras – fundamentalmente as que definem a propriedade, mas também as que estabelecem condições para o crédito, a dívida, as falências; as que criam patentes, marcas e propriedade intelectual; as que organizam o trabalho e tantas outras. Mesmo a desregulação exige regras. Nas palavras de Polanyi, “o laissez-faire foi planejado”…
A questão política é quem faz as regras e em benefício de quem. O neoliberalismo de Friedrich Hayek e Milton Friedman invocava os mercados “livres”, mas na prática o regime neoliberal promove regras criadas por e para os proprietários de capital privado, para manter o Estado distante da definição de regras de competição justa e dos interesses sociais. O regime tem regras para proteger os gigantes farmacêuticos do direito dos consumidores a ter acesso a genéricos. As regras de competição e propriedade intelectual são concebidas para proteger as empresas já estabelecidas. As regras de falência foram desenhadas para favorecer os credores financeiros. Hipotecas exigem regras elaboradas, escritas pelo setor financeiro e colocadas em vigor pelo Estado. As regras de patentes permitiram que o agronegócio e companhias químicas gigantescas, como a Monsanto, se apoderassem de muito da agricultura – o oposto de mercados “livres”. O setor inventou regras, exigindo que os trabalhadores e consumidores se submetessem a arbitragens obrigatórias e desistissem de um conjunto de normas e costumes.
Quando o crescimento arrefeceu, nos anos 1970, a teoria econômica ultraliberal teve uma nova chance. Ela demonstrou ser muito conveniente para os conservadores, que voltaram ao poder na década seguinte. A contrarrevolução neoliberal, na teoria e na prática, reverteu ou solapou quase todos os aspectos do capitalismo regulado – a tributação progressiva, as transferências de renda em favor do bem-estar, as políticas antitruste, o empoderamento dos trabalhadores e a regulamentação dos bancos e outros grandes setores econômicos.
A premissa neoliberal sustenta que mercados “livres” podem regular a si mesmos; que o Estado tem incompetência inerente, deixa-se capturar por certos interesses e representa uma intrusão na eficiência do mercado; que, em termos da distribuição de riquezas, os resultados sancionados pelo mercado são, em essência, merecidos; e que a redistribuição cria incentivos perversos, ao punir os vencedores econômicos e recompensar os perdedores. Por isso o Estado deveria afastar-se das relações de mercado.
Nos anos 1990, mesmo a esquerda moderada havia se convertido à crença de que os objetivos de justiça social podem ser alcançados reforçando o poder dos mercados. Períodos intermitentes de governo da esquerda atrasaram, mas não reverteram a deriva rumo à doutrina e às políticas neoliberais. As alas empresariais dos partidos que compuseram esta esquerda aplaudiram.
Agora, depois de quase meio século, o veredito é claro. Virtualmente todas estas políticas fracassaram, mesmo em seus próprios termos. As empresas foram recompensadas; os impostos, cortados; a regulação, reduzida ou transferida ao setor privado. E a economia é muito mais desigual; no entanto, o crescimento econômico é muito mais lento e caótico que durante a era do capitalismo regulado. A desregulação não produziu competição salutar, mas concentração de mercado. O poder econômico produziu mudanças no poder político, por meio das quais as elites impõem regras que produzem mais concentração.
O culpado não são propriamente os “mercados” – uma força impessoal que de algum modo tornou-se descontrolada de novo. Trata-se de um caso de controle de poder por meio da manipulação da teoria. A economia regulada foi desfeita pelas elites econômicas, que refizeram as regras em seu próprio benefício. Elas patrocinaram pesadamente teóricos “amigos”, que apresentaram a mudança como algo necessário e saudável; e políticos “amigos”, que colocaram as teorias em prática.
Nos últimos anos, houve dois casos espetaculares de erros de mercado, com consequências devastadoras: a quase-depressão iniciada em 2008 e os sinais de mudança climática irreversível. O colapso econômico de 2008 foi o resultado da desregulação das finanças. Só nos EUA, custou à economia 15 trilhões de dólares e, dependendo do cálculo, muito mais que qualquer ganho de eficiência concebível, que pudesse ser creditado à inovação financeira. A teoria dos mercados “livres” presume que a inovação é necessariamente benigna. Mas muito da engenharia financeira da era desregulatória favorecia os que a adotavam, era opaca e corrupta – o oposto de um mercado eficiente e transparente
A ameaça existencial da mudança climática global reflete a incompetência dos mercados para precificar de modo acurado as emissões de carbono e os custos crescentes da poluição. O economista britânico Nicholas Stern classificou os riscos crescentes de catástrofe climática como o maior caso de fracasso dos mercados da história. Também aqui, não é apenas o resultado de erros teóricos. O poder arraigado das indústrias extrativas e de seus aliados políticos influencia as regras e o preço de mercado do carbono. Isso é menos a “mão invisível” que uma garra. A permissão de “mercados eficientes” oferece útil cobertura.
O grande experimento neoliberal dos últimos 40 anos demonstrou que os mercados são incapazes de se autorregular. Mercados regulados pelo setor público são menos desiguais e mais eficiente. No entanto, a teoria e a influência prática do neoliberalismo avançam, porque ele é muito útil para os setores mais poderosos da sociedade – com um verniz acadêmico recobrindo o que seria, de outra forma, uma captura de poder sem disfarces. O economista político britânico Colon Crouch registrou esta anomalia num livro de título sugestivo: The Strange Non-Death of Neoliberalism [“A estranha não-morte do Neoliberalismo”]. Por que o neoliberalismo não morreu? Com o autor observa, ele fracassou tanto como teoria quanto em seus resultados práticos, mas foi extremamente bem-sucedido como política de poder para as elites econômicas.
O avanço neoliberal teve outro custo calamitoso – a legitimidade democrática. À medida em que o Estado deixou de mitigar as forças de mercado, a vida cotidiana tornou-se, para as pessoas comuns, uma luta árdua. As bases de uma vida decente são evidentes – empregos e carreiras seguras, aposentadorias adequadas, atendimento à Saúde, habitação acessível, acesso à Educação sem endividamento por toda a vida. No entanto, a vida tornou-se cada vez mais fácil para as elites econômicas, cujas renda e riqueza multiplicaram-se e cuja lealdade local e à nação tornou-se mais incerta e menos segura.
Vastos setores da sociedade, em consequência, abandonaram a crença em governos realizadores e na própria democracia. Depois que o Muro de Berlim caiu, em 1989, acreditou-se que a nova era seria marcada pelo triunfo do capitalismo liberal e da democracia. Mas em poucas décadas, a segurança aparente da democracia desabou em cada vez mais países, num ecoar dos anos 1930.
Como advertiu o grande historiador da Política, Karl Polanye, quando os mercados oprimem as sociedades, os cidadãos comuns frequentemente voltam-se para os tiranos. Em regimes que se aproximam do neofascismo, clepto-capitalistas confraternizam com ditadores, minando a premissa de que capitalismo e democracia são complementares. Muitos gângsters autoritários tornam-se surpreendentemente populares ao mobilizar os nacionalismos tribais como antídoto ao cosmopolitismo capitalista.
Também vale a pena observar que neoliberalismo não é laissez-fair. Classicamente, a premissa de um “livre” mercado é a de que o Estado simplesmente se retira. É algo sem sentido, já que todos os mercados são criados por regras – fundamentalmente as que definem a propriedade, mas também as que estabelecem condições para o crédito, a dívida, as falências; as que criam patentes, marcas e propriedade intelectual; as que organizam o trabalho e tantas outras. Mesmo a desregulação exige regras. Nas palavras de Polanyi, “o laissez-faire foi planejado”…
A questão política é quem faz as regras e em benefício de quem. O neoliberalismo de Friedrich Hayek e Milton Friedman invocava os mercados “livres”, mas na prática o regime neoliberal promove regras criadas por e para os proprietários de capital privado, para manter o Estado distante da definição de regras de competição justa e dos interesses sociais. O regime tem regras para proteger os gigantes farmacêuticos do direito dos consumidores a ter acesso a genéricos. As regras de competição e propriedade intelectual são concebidas para proteger as empresas já estabelecidas. As regras de falência foram desenhadas para favorecer os credores financeiros. Hipotecas exigem regras elaboradas, escritas pelo setor financeiro e colocadas em vigor pelo Estado. As regras de patentes permitiram que o agronegócio e companhias químicas gigantescas, como a Monsanto, se apoderassem de muito da agricultura – o oposto de mercados “livres”. O setor inventou regras, exigindo que os trabalhadores e consumidores se submetessem a arbitragens obrigatórias e desistissem de um conjunto de normas e costumes.
Neoliberalismo como Teoria, Política e Poder
Vale a pena tomar um momento para desembrulhar o termo “neoliberalismo”. “Liberal” refere-se não ao oposto de conservador, mas ao liberalismo econômico clássico, também conhecido como economia dos “livre” mercados. O prefixo “neo” refere-se à reafirmação da ideia segundo a qual o modelo econômico do laissez-faire estava, ao fim das contas, correto.
Poucos proponentes destas ideias adotaram o termo neoliberal. A maior parte preferiu chamar-se de “conservadores do livre mercado”. “Neoliberal” foi um termo cunhado principalmente pelos críticos, às vezes como um termo descritivo neutro, outras como um epíteto. O uso difundiu-se na era de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Para aumentar a confusão, um uso distinto, e em parte sobreposto, foi adotado nos anos 1970 pelo grupo formado em torno da revista Washington Monthlly. Eles usavam “neoliberal” para designar uma nova forma, mesmo “estatista” do liberalismo norte-americano. Mais ou menos à mesma época, o termo neoconservadores foi usado, nos Estados Unidos, para auto-descrever antigos liberais que adotavam o conservadorismo nos terrenos cultural, étnico, econômico e geopolíticos. Os neoconservadores eram neoliberais, na economia.
A partir dos anos 1970, a teoria revivida dos “livres” mercados entrelaçou-se tanto com a política conservadora quanto com investimentos significativos na produção de intelectuais acadêmicos e políticos. Isso ocorreu não apenas nos thinktanks conservadores mais conhecidos, como American Enterprise Institute, Heritage, Cato e Manhattan Institute, mas por meio de investimentos ousados na academia. Centros de estudos foram generosamente financiados por fundações de extrema direita como Olin, Scaife, Bradley e outras, para promover variantes da teoria dos “livre” mercados – como as “escolhas racionais”, a “escolha pública”, as “análises de custo-benefícios”, a “maximização da importância dos acionistas”. Estas teorias colonizaram diversas disciplinas acadêmicas. Todas eram variações em torno da afirmação de que os mercados são eficientes e os Estados devem deixá-los “livres”.
Cada um destes corpos de sub-teoria apoiava-se sobre sua própria variante de ideologia neoliberal. Uma versão mais crua da teoria das vantagens comparativas foi usada não apenas para cortar tarifas de importação, mas para transformar a globalização numa ferramenta geral para desregular. A teoria de maximizar a importância dos acionistas foi empregada para dinamitar um vasto espectro de regulações financeiras e de normas em favor do direito dos trabalhadores. As análises de custo-benefícios, que enfatizavam custos e desprezavam benefícios, foram usadas para desacreditar normas de Saúde, Segurança e Ambiente. A teoria da “escolha pública”, associada ao economista Jamis Buchanan e uma vasta escola de Economia e Ciência Política, foi usada para bloquear a própria democracia, sob a premissa de que a política estava irreparavelmente contaminada pelos busca de vantagens indevidas e pelos aventureiros.
As falhas dos mercados foram desprezadas, como se fossem casos raros e especiais. As falhas do Estados eram vistas como ubíquas. Os teóricos, lobistas e funcionários atuavam lado a lado. Mas em cada caso importante em que a teoria neoliberal gerava políticas, o resultado era sucesso político e fracasso econômico.
Um exemplo: a Economia da oferta tornou-se justificativa para cortes de impostos, sob a premissa de que estes puniam o empreendimento. Supostamente, se fossem cortados – especialmente os que incidem sobre o capital e suas rendas – o estímulo resultante, sobre a atividade econômica, seria tão potente que os déficits seriam muito menores que os previstos pelas projeções econômicas “estatistas”. Nos EUA, houve seis rodadas deste experimento, dos cortes de impostos patrocinados por Jimmy Carter em 1978 à mastodôntica Lei de Cortes de Impostos e Empregos, assinada por Donald Trump em 2017. Em todos os casos, houve algum estímulo econômico, principalmente originado no impacto keynesiano sobre a demanda, mas os déficits sempre cresceram de modo significativo. Os conservadores simplesmente pararam de falar no tema. Os cortes de impostos eram, frequentemente, ineficientes e desiguais, já que inúmeras brechas dirigiam os investimento para atividades fiscalmente favorecidas, em vez de orientá-los para usos mais lógicos do ponto de vista econômicos. Dezenas das mais lucrativas corporações dos EUA deixaram de pagar impostos.
O “paradoxo antitruste” de Robert Bork, segundo o qual medidas antitruste acabavam enfraquecendo a competição, foi usado como doutrina para acompanhar inúmeras leis. Supostamente, se o Estado se afastasse, as forças de mercados iriam tornar-se mais competitivas, porque os preços de monopólio iriam suscitar inovação e novos ingressantes no mercado. Na prática, todos os setores tornaram-se mais pesadamente concentrados. As corporações estabelecidas adquiriram o hábito de comprar os inovadores ou de usar seu poder de mercado para esmagá-los. Este padrão é especialmente insidioso na economia dos monopólios de plataformas na internet, onde os gigantes como Google e Amazon usam seu poder e seu acesso muito superior aos dados dos consumidores para excluir rivais. Os mercados, também aqui, exigem regras que levem em conta muito mais que a competição supostamente “benigna”. Só governos democráticos podem estabelecer regras que estabeleçam a igualdade. E quando a democracia é inibida, governos antidemocráticos, em associação com plutocratas privados corruptos, fazem as leis.
A teoria do “capital humano”, outra variante do uso de visões neoliberais dos mercados para lidar com questões sociais, justificou a desregulamentação dos mercados de trabalho e o esmagamento dos sindicatos. Estes, assim como as leis trabalhistas, supostamente usavam seu poder para fazer com que os trabalhadores recebessem mais que seu valor de mercado. Mas a era dos salários deprimidos é acompanhada por um declínio das taxas de crescimento da produtividade. Em paralelo, alguma pessoa séria acredita que o pagamento hiperinflacionado dos magnatas financeiros que quebraram a economia reflete sua contribuição para a atividade econômica? No caso dos fundos de hedge e de private equity, as altíssimas rendas dos patrocinadores dos fundos são o resultado de capturas de riqueza e de renda dos assalariados e de outros agentes, não frutos de gerenciamento eficiente.
Uma vasta literatura critica, em detalhe, este corpo de trabalhos pseudo-acadêmicos. Muito do neoliberalismo representa a vitória da presunção sobre a evidência. Mas a teoria neoliberal sobreviveu por ser conveniente para as elites, e devido ao poder inercial do capital intelectual que havia criado. Um habitat neoliberal muito bem financiado ofereceu carreiras confortáveis para duas gerações de acadêmicos e pseudo-acadêmicos, que transitam entre a academia, os think tanks, as empresas de lobby, as páginas dos jornais, o Estado e os mercados financeiros. Ainda que a teoria tenha sido demolida tanto pela refutação acadêmica quanto pelos fatos, ela realimenta-se em instituições poderosas e aliados políticos musculados.
Vale a pena tomar um momento para desembrulhar o termo “neoliberalismo”. “Liberal” refere-se não ao oposto de conservador, mas ao liberalismo econômico clássico, também conhecido como economia dos “livre” mercados. O prefixo “neo” refere-se à reafirmação da ideia segundo a qual o modelo econômico do laissez-faire estava, ao fim das contas, correto.
Poucos proponentes destas ideias adotaram o termo neoliberal. A maior parte preferiu chamar-se de “conservadores do livre mercado”. “Neoliberal” foi um termo cunhado principalmente pelos críticos, às vezes como um termo descritivo neutro, outras como um epíteto. O uso difundiu-se na era de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Para aumentar a confusão, um uso distinto, e em parte sobreposto, foi adotado nos anos 1970 pelo grupo formado em torno da revista Washington Monthlly. Eles usavam “neoliberal” para designar uma nova forma, mesmo “estatista” do liberalismo norte-americano. Mais ou menos à mesma época, o termo neoconservadores foi usado, nos Estados Unidos, para auto-descrever antigos liberais que adotavam o conservadorismo nos terrenos cultural, étnico, econômico e geopolíticos. Os neoconservadores eram neoliberais, na economia.
A partir dos anos 1970, a teoria revivida dos “livres” mercados entrelaçou-se tanto com a política conservadora quanto com investimentos significativos na produção de intelectuais acadêmicos e políticos. Isso ocorreu não apenas nos thinktanks conservadores mais conhecidos, como American Enterprise Institute, Heritage, Cato e Manhattan Institute, mas por meio de investimentos ousados na academia. Centros de estudos foram generosamente financiados por fundações de extrema direita como Olin, Scaife, Bradley e outras, para promover variantes da teoria dos “livre” mercados – como as “escolhas racionais”, a “escolha pública”, as “análises de custo-benefícios”, a “maximização da importância dos acionistas”. Estas teorias colonizaram diversas disciplinas acadêmicas. Todas eram variações em torno da afirmação de que os mercados são eficientes e os Estados devem deixá-los “livres”.
Cada um destes corpos de sub-teoria apoiava-se sobre sua própria variante de ideologia neoliberal. Uma versão mais crua da teoria das vantagens comparativas foi usada não apenas para cortar tarifas de importação, mas para transformar a globalização numa ferramenta geral para desregular. A teoria de maximizar a importância dos acionistas foi empregada para dinamitar um vasto espectro de regulações financeiras e de normas em favor do direito dos trabalhadores. As análises de custo-benefícios, que enfatizavam custos e desprezavam benefícios, foram usadas para desacreditar normas de Saúde, Segurança e Ambiente. A teoria da “escolha pública”, associada ao economista Jamis Buchanan e uma vasta escola de Economia e Ciência Política, foi usada para bloquear a própria democracia, sob a premissa de que a política estava irreparavelmente contaminada pelos busca de vantagens indevidas e pelos aventureiros.
As falhas dos mercados foram desprezadas, como se fossem casos raros e especiais. As falhas do Estados eram vistas como ubíquas. Os teóricos, lobistas e funcionários atuavam lado a lado. Mas em cada caso importante em que a teoria neoliberal gerava políticas, o resultado era sucesso político e fracasso econômico.
Um exemplo: a Economia da oferta tornou-se justificativa para cortes de impostos, sob a premissa de que estes puniam o empreendimento. Supostamente, se fossem cortados – especialmente os que incidem sobre o capital e suas rendas – o estímulo resultante, sobre a atividade econômica, seria tão potente que os déficits seriam muito menores que os previstos pelas projeções econômicas “estatistas”. Nos EUA, houve seis rodadas deste experimento, dos cortes de impostos patrocinados por Jimmy Carter em 1978 à mastodôntica Lei de Cortes de Impostos e Empregos, assinada por Donald Trump em 2017. Em todos os casos, houve algum estímulo econômico, principalmente originado no impacto keynesiano sobre a demanda, mas os déficits sempre cresceram de modo significativo. Os conservadores simplesmente pararam de falar no tema. Os cortes de impostos eram, frequentemente, ineficientes e desiguais, já que inúmeras brechas dirigiam os investimento para atividades fiscalmente favorecidas, em vez de orientá-los para usos mais lógicos do ponto de vista econômicos. Dezenas das mais lucrativas corporações dos EUA deixaram de pagar impostos.
O “paradoxo antitruste” de Robert Bork, segundo o qual medidas antitruste acabavam enfraquecendo a competição, foi usado como doutrina para acompanhar inúmeras leis. Supostamente, se o Estado se afastasse, as forças de mercados iriam tornar-se mais competitivas, porque os preços de monopólio iriam suscitar inovação e novos ingressantes no mercado. Na prática, todos os setores tornaram-se mais pesadamente concentrados. As corporações estabelecidas adquiriram o hábito de comprar os inovadores ou de usar seu poder de mercado para esmagá-los. Este padrão é especialmente insidioso na economia dos monopólios de plataformas na internet, onde os gigantes como Google e Amazon usam seu poder e seu acesso muito superior aos dados dos consumidores para excluir rivais. Os mercados, também aqui, exigem regras que levem em conta muito mais que a competição supostamente “benigna”. Só governos democráticos podem estabelecer regras que estabeleçam a igualdade. E quando a democracia é inibida, governos antidemocráticos, em associação com plutocratas privados corruptos, fazem as leis.
A teoria do “capital humano”, outra variante do uso de visões neoliberais dos mercados para lidar com questões sociais, justificou a desregulamentação dos mercados de trabalho e o esmagamento dos sindicatos. Estes, assim como as leis trabalhistas, supostamente usavam seu poder para fazer com que os trabalhadores recebessem mais que seu valor de mercado. Mas a era dos salários deprimidos é acompanhada por um declínio das taxas de crescimento da produtividade. Em paralelo, alguma pessoa séria acredita que o pagamento hiperinflacionado dos magnatas financeiros que quebraram a economia reflete sua contribuição para a atividade econômica? No caso dos fundos de hedge e de private equity, as altíssimas rendas dos patrocinadores dos fundos são o resultado de capturas de riqueza e de renda dos assalariados e de outros agentes, não frutos de gerenciamento eficiente.
Uma vasta literatura critica, em detalhe, este corpo de trabalhos pseudo-acadêmicos. Muito do neoliberalismo representa a vitória da presunção sobre a evidência. Mas a teoria neoliberal sobreviveu por ser conveniente para as elites, e devido ao poder inercial do capital intelectual que havia criado. Um habitat neoliberal muito bem financiado ofereceu carreiras confortáveis para duas gerações de acadêmicos e pseudo-acadêmicos, que transitam entre a academia, os think tanks, as empresas de lobby, as páginas dos jornais, o Estado e os mercados financeiros. Ainda que a teoria tenha sido demolida tanto pela refutação acadêmica quanto pelos fatos, ela realimenta-se em instituições poderosas e aliados políticos musculados.
O fracasso prático das políticas neoliberais
A desregulação financeira é o fracasso desregulatório mais palpável do neoliberalismo, mas está longe de ser o único. A desregulação elétrica elevou, em muitos países, o poder de um oligopólio e elevou os custos para os consumidores – mas foi incapaz de oferecer oportunidades significativas para reduzir os preços. Retrocedemos de monopólios estatais regulados, com ganhos, custos, salários e proteções ao consumidor previsíveis, para oligopólios desregulados, com enorme poder de estabelecer seus próprios preços. As telecomunicações viveram processo quase idêntico de competição restrita, disparata de preços e restrições aos sindicatos.
O transporte aéreo é quase sempre apresentado como um caso exemplar, pelos defensores da desregulação, mas os resultados são, se muito, ambíguos. A desregulação produziu quebradeiras em série das empresas, muitas vezes atingindo os salários e aposentadorias dos trabalhadores. Os preços das passagens declinaram na média, nas últimas décadas, mas o público sofre com um louco mosaico de tarifas, piora dos serviços, encolhimento dos assentos e distância entre eles e penalidades exorbitantes quando é necessário fazer mudanças de horários absolutamente normais. Diversos estudos demonstraram que os preços caíram mais rapidamente nos 20 anos antes da regulamentação que no período posterior, já que a fonte principal de eficiência é a introdução de aviões que usam combustível de modo mais eficiente. As oscilações bruscas entre lucro e prejuízo das empresas reduziu a capacidade de adquirirem aviões mais econômicos e a idade média das frotas sobe.
Além da desregulação, três grandes áreas das políticas neoliberais são a privatização dos serviços públicos, o emprego de vouchers para remunerar a Educação ou Saúde prestada por particulares e o uso, para o mesmo fim, de subsídios fiscais, em vez de desembolsos diretos do Estado. Em todos os casos, estão envolvidas receitas do Estado. Por isso, estamos muito longe de um mercado “livre”. Mas a premissa é que a disciplina de mercado permite obter resultados melhores que os da prestação direta pelo Estado.
As evidências não ajudam estas afirmações. Um problema central é que os programas invariavelmente transferem muito para os intermediários privados, às custas do supostos beneficiários. Um problema relacionado é que o uso de vouchers e contratos é um convite à corrupção. É uma forma de busca de privilégios de monopólio [“rent-seeking”] diferente da que os teóricos da “escolha pública” atribuem ao Estado – mas igualmente corruta. Quase sempre, a oferta direta de serviços, pelo setor público, é muito mais transparente e sujeita a responsabilização que uma rede de contratados.
Um problema adicional é que na prática há sempre muito menos competição do que o imaginado, devido ao poder dos oligopólios e à influência política dos prestadores de serviços. Os experimentos de mercantilização para alcançar objetivos sociais não se dão em laboratórios político platônicos, onde a única meta é a eficiência. Eles ocorrem no mundo fétido da política prática, onde os prestadores estão frequentemente aliados a políticos conservadores, cujo propósito pode ser desacreditar os investimentos sociais, recompensar aliados políticos ou favorecer-se de propina direta, ou contribuições às campanhas eleitorais.
Os presídios privatizados são outro exemplo. Um punhado de enormes empresas, protegidas de escândalos, obteve a maior parte dos contratos, quase sempre por meio de influência política. Em vez de apostar mais qualidade e eficiência gerencial, lucraram desviando fundos operacionais, piorando condições que já eram deploráveis e encontravam novas formas de cobrar, dos presos, tarifas mais altas por serviços essenciais, como chamadas telefônicas. A maior parte das “economias” veio da redução dos salários e do profissionalismo dos guardas, de superlotação cada vez maior e da redução de orçamentos inadequados para alimentação e cuidados com saúde.
Um exemplo similar é a privatização das estruturas de transportes, como rodovias e mesmo parquímetros. Em muitos países e regiões, as estradas foram transferidas a concessionários privados. As autoridades que fazem o negócio ganham um impulso fiscal temporário, enquanto os usuários acabam pagando os pedágios mais altos por décadas. Os banqueiros que financiam o negócio também se apropriam de uma fatia gorda. Uma parte do dinheiro acaba dirigida a melhoras nas estradas, mas isso poderia ser feito de modo muito mais eficiente via propriedade pública direta e licitações competitivas.
(…)
À medida em que mais sistemas hospitalares e planos de saúde passam a visar lucro, investimentos maciços fluem para atividades indesejáveis como a manipulação das cobranças, a “seleção de riscos” e outras formas de burlar as regras. Sistemas semi-públicos de Saúde requerem regulação maciça para trabalhar com eficiência tolerável. Na prática, a terceirização degenera numa disputa interminável entre reguladores e gestores interessados na “eficiência” lucrativa, com as empresas privadas recorrendo aos governos para alterar as regras.
Uma vasta literatura demonstrou que instituições de ensino privadas, que recebem incentivos públicos para admitir alunos, têm resultados muito piores que escolas públicas, e são vulneráveis a múltiplas formas de manipulação e corrupção. Os proprietários destas escolas são muito hábeis para encontrar meios de excluir estudantes.
(…)
A influência neoliberal sobre a esquerda
À medida em que as teorias de “livre” mercado ressurgiram, elas foram abraçadas por muitos integrantes da esquerda moderada. Nos anos 1970, marcados por inflação, a regulação tornou-se um bode expiatório acusada de supostamente bloquear a competição salutar por preços. Alguns, como o economista Alfred Kahn, conselheiro do presidente norte-americano Jimmy Carter, apoiaram a desregulação por enxergar seus supostos méritos. Outros esquerdistas moderados defenderam as políticas neoliberais de modo oportunista, para prestar favores a setores econômicos poderosos e doadores de campanha. As políticas de mercado também foram adotadas pela esquerda moderada como medida tática para chegar a acordos com os conservadores.
Nos EUA, diversas formas de desregulação – do setor aéreo, transporte de carga e fornecimento de eletricidade começaram, nos Estados Unidos, não sob Reagan, mas sob o democrata Jimmy Carter. A desregulação financeira decolou sob outro democrata, Bill Clinton, mas só republicanos promoveram acordos comerciais que destruíram padrões sociais. As análises de custo-benefício do Escritório de Informação e Assuntos Regulatórios de Washington causaram mais danos sob Barack Obama que sob George W. Bush.
“Comando e controle” tornou-se um pejorativo geral para depreciar regulações inteligentes e eficientes. “Semelhante ao dos mercados” [“market-like”] tornou-se um conceito de moda, não apenas entre a direita, mas também nos ambientes de esquerda moderada. Cass Sunstein, que foi o czar anti-regulação no governo Obama, usa a imagem de “cutucões”, como uma alternativa “semelhante à dos mercados” e, portanto, superior, diante da regulação direta. No entanto, o impacto destes “empurrões”, salvo raras exceções, é trivial – eles só funcionam, de fato, em conjunto com processos regulatórios.
Há, de fato, certas políticas intervencionistas que utilizam incentivos de mercado para atender objetivos sociais. Mas, ao contrário do que dizem as teorias de “livre” mercado, estes incentivos exigem regulação substancial – não são uma alternativa a ela. Há muitos outros temas, como os rótulos nutricionais, informação precisa sobre empréstimos e controle das emissões de carbono em que as premissas de mercado, de um consumo informado, conduzem a regulação – mas também não a substituem. Quase todo o aumento de eficiência energética, por exemplo, são resultado de regulações obrigatórias, que exigem das frotas automotivas cumprir metas de economia. O fato de os índices de consumo serem exibidos com destaque, nos novos carros, pode ter influência modesta, mas os combustíveis estão tão depreciados que as empresas conseguem vender com sucesso automóveis muito perdulários a despeito das informações ao consumidor.
Politicamente, qualquer que fosse a lógica para a adesão da esquerda moderada às teses ultraliberais, ela se esgotou. Hoje, a direita ataca os direitos sociais e reduz os impostos dos ricos sem nenhum diálogo com seus oponentes. Também abandonou o esforço para chegar a consensos sobre políticas ambientais, combate a pobreza e serviços públicos – ou seja, quase tudo. A ideologia neoliberal cumpriu sua tarefa histórica de enfraquecer o apoio popular e intelectual à proposição segundo a qual ações afirmativas do Estado podem melhorar as vidas dos cidadãos.
Neoliberalismo e hiperglobalismo
As regras pós-1990 da globalização, apoiadas tanto pelos conservadores quanto pela esquerda moderada, são a quintessência do neoliberalismo. Na Conferência de Bretton Woods, em 1944, o uso de taxas fixas de câmbio e os controles sobre o movimento de capitais privados especulativos, mais a criação do FMI e do Banco Mundial, visam permitir que os países-membros praticassem formas de capitalismo regulado, livres das influências destrutivas e deflacionárias dos fluxos especulativos de capitais. Quando a doutrina e o controle de poder mudaram, nos anos 1970, o FMI, o Banco Mundial e, mais tarde, a OMC (que substituiu o antigo GATT) transformaram-se no oposto ideológico. Em vez de instrumentos de apoio para as economias nacionais, eles passaram a exigir a aplicação das políticas neoliberais.
O pacote padrão do Consenso de Washington, de políticas impostas às nações em desenvolvimento incluía demandas de abertura dos mercados de capitais para as transações financeiras especulativas, o corte de impostos sobre o capital, o enfraquecimento dos gastos sociais, a redução dos direitos trabalhistas e das empresas públicas. Mas o investimento de capitais privados em nações empobrecidas demonstrou-se volátil. O resultado foram fluxos excessivos, durantes os períodos de boom e retiradas punitivas, nas fases de contração – o oposto dos capitais pacientes, de longo termo, de que estes países necessitavam e que haviam sido oferecidos pelo Banco Mundial da fase anterior. Nos momentos de contração, o FMI tipicamente impõe as exigências neoliberais de maneira ainda mais dramática, como contrapartida a seus “resgates”. Entre as medidas, estão austeridade orçamentária perversa, supostamente para restaurar a confianças dos mesmos mercados de capital altamente especulativos responsáveis pelos ciclos de boom e retração.
Dezenas de países, da América Latina ao Sudeste Asiático, afundaram neste ciclo e, em seguida, na submissão ao FMI. A Grécia ainda sofre o impacto. Depois de 1990, o hiper-globalismo também incluiu tratados comerciais cujos termos favoreceram as corporações. Tradicionalmente, as cláusulas destes acordos envolviam principalmente a redução de tarifas de importação. Os países que os assinavam eram livres para manter as medidas de regulação, o investimento público ou as políticas sociais que desejassem. Com o advento da OMC, muitas políticas, além das tarifas, foram rotuladas como “distorções do ‘livre’ comércio”. Os acordos comerciais foram usados para dar ao capital externo livre acesso a seus objetivos e para desmantelar as regulações a empresas nacionais. Tribunais especiais foram criados. Neles, as corporações estrangeiras e os investidores podiam obrigar as autoridades nacionais a abrir mão de regulação, tratada como “impeditiva ao comércio”.
O dano não se restringiu, porém, aos países em desenvolvimento. Como demonstrou um trabalho do economista Dani Rodrik, a democracia exige um espaço político. Para o bem ou para o mal, tanto este espaço quanto a cidadania são nacionais. Ao adotar o mercado global, às custas do Estado democrático, o padrão atual de hiperglobalização enfraquece deliberadamente a capacidade dos Estados para regular mercados – e enfraquece a própria democracia.
Quando os mercados funcionam?
O fracasso do neoliberalismo como política econômica e social não significa que os mercados nunca funcionem. Uma economia de comando central pode ser ainda mais irreal e perversa que uma neoliberal. A questão prática é como encontrar uma alternativa eficiente e igualitária.
A narrativa neoliberal sobre como a economia opera pressupões um mercado sem conflitos, em que os preços são estabelecidos pela oferta e demanda, e o mecanismo de preços aloca os recursos em direção a seu melhor uso, para a economia como um todo. Para que este esquema funcione como supõe a propaganda, porém, não pode haver poder de mercado. A competição deve ser plena. Vendedores e compradores precisam ter acesso, basicamente, à mesma informação. Não pode haver externalidades significativas. O século XX foi, em boa parte, a prova prática de que estas condições não descrevem a economia real. E se os mercados precificaram os produtos de modo errado, o sistema de mercado não produziu um equilíbrio eficiente e as depressões poderiam aprofundar a si mesmas em espiral descendente. Como Keynes demonstrou, apenas um aumento maciço do gasto governamental é capaz de religar os motores – mesmo quando violam, ainda que parcialmente, o estabelecimento de preços pelos mercados…
Mesmo assim, em muitos setores da economia, o processo de compra e venda é suficientemente próximo das condições ideais de competição perfeita – e o sistema de preços funcional de modo tolerável. Os supermercados, por exemplo, oferecem preços mais ou menos acurados, devido à liberdade dos consumidores e a seu conhecimento sobre as lojas da redondeza. É o mesmo com boa parte do setor de varejo. No entanto, quando se entra nos grandes setores da economia, como a Educação e a Saúde, os mercados não são suficientes. E em outros grandes setores, como a indústria farmacêutica, em que as corporações usam seu poder político para estabelecer as regras de patentes, o mercado não oferece uma saída.
O argumento essencial do neoliberalismo pode ser resumido num adesivo de para-choques: “Os mercados funcionam; os governos, não”. Se você deseja adocicar a narrativa, há alguns acréscimos: “Os mercados fortalecem a liberdade humana. E com mercados, as pessoas obtêm essencialmente aquilo que merecem”. “Alterar os resultados dos mercados é espoliar os pobres e punir os produtivos”. Estas conclusões derivam, logicamente, da premissa segundo a qual os mercados são eficientes. Milton Friedman tornou-se rico, famoso e influente por defender as diversas implicações destas premissas simples.
É muito mais difícil articular a defesa de economias complexas que a dos “livres” mercados, precisamente porque as economias complexas são complexas. A refutação exige vários parágrafos. A narrativa mais complexa sustenta que os mercados são substancialmente eficientes em alguns setores, mas estão distantes disso em muitos outros, porque as externalidades positivas e negativas, a tendência dos mercados financeiro a criar ciclos de expansão e contração, a interseção entre auto-interesse e competição, a assimetria de informação entre empresas e consumidores, a assimetria de poder entre corporações e empregados, o poder dos poderosos para burlar as regras e o fato de haver setores da vida humana (o direito ao voto, a liberdade humana e a segurança de qualquer pessoa, por exemplo) que não deveriam ser mercantilizados.
E se os mercados não são perfeitamente eficientes, as questões redistributivas são, em parte, escolhas políticas. Algumas sociedades pagam a professores pré-escola básica o salário mínimo. Outras educam e recompensam seus profissionais. Não há nenhum salário “correto” a partir de critérios de mercado, porque a educação pré-escola básica é um bem social e o tema de como treinar e compensar os professores é uma escolha social, não uma definição de mercado. O mesmo é verdade para muitos outros serviços humanos, entre eles a Medicina. Também não é um conjunto de regras “corretas” para patentes, marcas e propriedade intelectual. Tudo isso é derivado da política – ou as normas equilibrar os interesses da inovação com os da difusão, ou são politicamente capturados pelas empresas estabelecidas
Os governos podem, em princípio, aperfeiçoar os resultados dos mercados, por meio da regulação. Isso torna-se mais complexo devido ao risco de captura regulatória. Por isso, surge o tema da falha dos mercados versus falha da política – o que nos remete novamente à urgência de democracias fortes e governos efetivos.
Depois do Neoliberalismo
A reversão política do neoliberalismo poderá vir somente por meio de políticas e decisões práticas que demonstrem como os Estados podem servir os cidadãos de modo mais igualitário e eficiente que os mercados. Não faltam economistas dissidentes e pesquisadores políticos cujos trabalhos acadêmicos foram confirmados pelos fatos. Não precisam de mais teoria, mas de mais influência política, tanto na academia quanto nos corredores do poder. Eles poderão assessorar novos governos progressistas se estes puderem ser eleitos e se estiverem dispostos a desistir de buscar auxílio de neoliberais.
Também há algumas áreas relativamente novas que convidam à inovação política. Entre elas estão a regulação dos direitos de privacidade versus as liberdades das empresas, na era digital; como pensar na internet como um Comum; como atualizar as políticas de competição e combate aos oligopólios, quando os monopólios de plataforma exercem novas formas de poder de mercado; como modernizar as políticas de trabalho na era da economia uberizada; e o papel das políticas de Renda Cidadã, num tempo em que as máquinas substituem o trabalho humano.
O experimento neoliberal fracassado não sugere apenas, como alternativa, um capitalismo melhor regulado – mas a ação pública direta. A atividade bancária, quando exercida corretamente – em especial a provisão de crédito imobiliário – é algo muito próximo a um bem público. Poderia ter este caráter. Uma boa parte da pesquisa científica e tecnológica é feita mais honesta e eficazmente em instituições públicas do que num setor particularmente corrupto como a indústria farmacêutica. A habitação social é quase sempre melhor que os esquemas oferecidos pelo mercado. A geração de energia é mais eficiente, menos suscetível a preços de monopólio e mais aberta a políticas ambientais quando estatal. A saúde pública é muito mais eficiente. Serviços oferecidos pelo Estado requerem supervisão das sociedades, mas esta é muito mais direta e transparente que a dança bizantina de regulação e contrarregulação.
Os outros dois benefícios da oferta direta pelo Estado são: a sociedade tem evidência direta da entrega, pelos governos, de algo de valor; e o poder da democracia para controlar os mercados é ampliado. Uma economia complexa depende, sobretudo, de uma democracia forte – ainda mais do que aquela que sucumbiu à influência corrupta das elites econômicas e dos defensores do neoliberalismo nos últimos 50 anos. O antídoto para a fábula neoliberal é a ressurreição de uma democracia suficientemente forte para domar os mercados.
* Tradução de Antonio Martins.
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