Quando se fala em apartheid social, fica muito claro que o Brasil é um país dividido entre quem merece viver e quem apenas atrapalha o projeto dos donos da vida. Tem gente que importa e gente que é descartável. O massacre em Paraisópolis é mais um exemplo dessa constatação. Nove jovens foram mortos de forma criminosa pelo fato de frequentarem uma festa numa região pobre. Não faltou quem acusasse a festa, a música e até os pais dos jovens assassinados por permitirem que cometessem o desatino de serem jovens cheios de vida.
A polícia se justificou dizendo que perseguia dois suspeitos. A lógica é transparente: suspeitos que poderiam trazer problemas para pessoas que importam buscaram abrigo junto a gente que não importa. Por simples contágio, todos se tornam suspeitos e são vítimas potenciais de desrespeito humano, violência e até extermínio. A palavra está no dicionário: genocídio. Morte premeditada de grupo considerado inferior por questões de natureza ideológica, racial ou social.
A polícia não decide – na verdade são pobres matando pobres – , cumpre ordens que não emanam das leis, mas dos valores traçados desde “cima”. Como pagamento por sua eficiência, a ela tem sido prometida uma absolvição prévia em razão de abusos na defesa daqueles mesmos interesses particulares. O excludente de ilicitude, vomitado a todo momento por Bolsonaro, parece ser o máximo de articulação a que ele alcança. A anistia pode começar com a violência no combate ao suposto crime comum e em seguida contaminar os protestos sociais. É tudo fruto da mesma divisão fundante de uma sociedade injusta: quem protesta não aceita seu lugar e merece ser abatido ou pelo menos não criar constrangimento para quem o faz.
O crime de Paraisópolis foi considerado pelo ministro Sérgio Moro como “erro operacional grave”. De erro operacional ele entende, sobretudo em sua atribuição primária de juiz, que vendeu a imparcialidade da função por um cargo no governo de extrema direita, com pretensões a um dia vir a ocupar o maior posto da República. Para isso, o ex-juiz precisa manter sua capa antipopular e justiceira, que tem inspiração em sua personalidade autoritária, mas que ganhou ainda mais força pelo cálculo político. Não está sozinho: Dória conseguiu ser ainda mais covarde e reticente com relação ao massacre em seu estado.
A morte de nove adolescentes e jovens, em meio a uma festa com 5 mil pessoas tratadas violentamente como gado em direção ao abate, evoca o detestável comportamento dos nazistas no cerco aos guetos judaicos no século passado. Uma operação que desumaniza ao longo do tempo, com os mais sórdidos instrumentos de propaganda e da mentira, para permitir que todos sejam em seguida tratados como animais. A ausência de reação proporcional, que é um dos grandes enigmas da psicologia social contemporânea, parece se manter atuante em nossa realidade social. Não se trata de incitar a violência, mas de defender o princípio da manutenção da vida pela resistência.
A situação na comunidade paulista é exemplar de como há muitas Paraisópolis espalhadas invisivelmente pelo país. A população é constantemente advertida a se manter em seus limites de exclusão, sem querer atravessar as barreiras simbólicas e reais. Não frequentar determinadas áreas, não festejar demais, não reclamar dos maus tratos diários na provisão de serviços públicos, não requerer atenção do Estado em suas comunidades – além da força policial contra elas mesmas. Sobretudo, não cobrar empatia: não são gente como todas as pessoas. Algumas pessoas não são gente e por isso suas mortes não têm o mesmo peso.
Se a questão da violência policial escancara a injustiça com sua face pública mais brutal, em outros campos a divisão social vai se estabelecendo de forma menos visível, mas igualmente eficiente. É o caso, por exemplo, das políticas de educação. O recente resultado do Pisa, teste internacional que afere a qualidade do setor, mostrou que o Brasil segue na rabeira da lista em matéria de instrumentos básicos para o exercício da cidadania plena: leitura, matemática e ciências. O dado evidencia o que todo mundo sabe: que a educação pública não é prioridade no Brasil.
No entanto, o mesmo índice medido pelo Pisa, quando conjugado com a posição do país na economia e na qualidade de vida de parte da população, expressa exatamente o significado da cisão social. Nossa educação tem funcionado muito bem para que a situação de desigualdade permaneça intocável. Não se trata de um fracasso, mas de um programa. Os recursos que faltam sistematicamente a um projeto político e pedagógico de conquista da equidade estão sendo investidos na priorização de determinados setores que reproduzem exatamente a ordem que gera a injustiça.
Não há o desejo de ser um país para todos – projeto que deveria estar na base das políticas educacionais –, mas de manter-se como uma nação de escolhidos desde o berço, tendo como única forma de distensão os exemplos fofos de meritocracia e exercício ressentido de piedade religiosa. O Pisa não é apenas um teste de habilidades intelectuais, mas um marcador de injustiça social: ele mede como a população está sendo preparada para cumprir seu desígnio no projeto de país que quer se construir. No caso do Brasil, uma nação de excluídos pela cor da pele, pelo CEP e pela restrição do seu universo de expressão cultural.
Essa história precisa ser reescrita. Pode ser que o caminho seja a política. Mas é possível que venha pelo funk e pelo rap. Ou pela desobediência civil. Ou pela extinção da confiança nas instituições, na administração pública ou na imprensa, que se encontram a cada dia mais atravessadas de atitudes colaboracionistas constrangidas, seja pela manutenção do emprego, seja pela sobrevivência de seu negócio.
A convivência próxima com o pior da herança nazista parece que deixou para trás o temor que tomava os intelectuais até já pouco tempo, em considerar a atual situação como um terreno propício para o fascismo. Na vigência do genocídio, já atravessamos há muito a linha da infâmia. A luta pela igualdade e justiça social hoje é consequência de um compromisso inadiável com a defesa da vida.
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