Foto: Wilson Dias/Agência Brasil |
O Brasil tem o terceiro maior contingente populacional do mundo e, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, possui 726.354 pessoas encarceradas [1].
Temos um sistema penal falido, isso não é mistério pra ninguém, que não recupera, é superlotado, dominado por facções criminosas e com pouco investimento, a ponto de muitas unidades não terem o suficiente para dignificar a condição humana, e, consequentemente, não há valorização dos servidores e dos policiais penais.
A falta de condição estrutural, higiene, aliada a um ambiente com altos picos de estresse gerado pelo processo de emparedamento [2], que atinge tanto os apenados quanto os policiais penais e demais servidores, fazem do sistema penal um dos ambientes mais insalubres para se viver e trabalhar.
Para o filósofo Norberto Bobbio [3], o problema em relação aos direitos humanos não está na normatização e reconhecimento legal, mas sim na sua efetivação e aplicabilidade.
Expectativa de vida do policial penal (agente penitenciário)
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a expectativa de vida do brasileiro é de 76 anos [4], já a de um policial militar é de 58 anos [5], muito abaixo da média em razão dos riscos inerentes à carreira. Em comparação com o mapa da desigualdade da cidade de São Paulo [6], temos um pior cenário que é visto em Cidade Tiradentes, onde a expectativa de vida é de 57 anos.
Estudo do Instituto de Psicologia (IP) da Universidade de São Paulo [7] revela o espantoso dado de que a expectativa de vida de um policial penal no Brasil é de 45 anos, ou seja, a mesma de um homem que viveu no Brasil em 1945.
Os riscos inerentes à carreira do policial penal, como violência dentro das prisões, assassinatos por facções fora das prisões, doenças ocupacionais que levam à dependência química e alcoólica, bem como o suicídio (o maior índice entre as carreiras policiais), transformam essa profissão em uma das mais insalubres e estressantes do mundo.
Expectativa de vida do apenado
As condições de superlotação no quadro prisional brasileiro trazem para a população carcerária um carrossel de moléstias, desde doenças de pele até tuberculose, além dos quadros de doenças como Aids e câncer.
Segundo um levantamento feito pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em junho de 2019 havia nos presídios brasileiros 8.638 casos de tuberculose, 7.742 casos de HIV, 5.549 casos de sífilis e 4.927 de outras doenças [8].
Em 2018, segundo levantamento feito pelo Ministério Público no estudo Sistema Prisional em Números [9], foi a óbito em todo o Brasil um total de 1.615 apenados, sendo que no estado de São Paulo ocorreu a maior incidência, 495 mortes. Já que o número de óbitos no sistema penal em 2017 foi de 1.547, o aumento foi de 4,4%, sendo que São Paulo teve 490 mortes.
O maior estado do país tem um grave problema: a falta de médicos para atender os apenados dentro das unidades penais. Segundo dados apurados por reportagem junto à Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) [10], de 2014 a 2017 morreram dentro das penitenciárias paulistas 1.728 detentos, 90% deles foram classificados como “morte natural”, sendo as causas: Aids, tuberculose, hepatite e câncer; a maioria das mortes se dá entre apenados com idade entre 18 e 29 anos.
Segundo a socióloga Camila Nunes Dias, a falta de atendimento médico é um dos fatores que reduzem a expectativa de vida do apenado, afirmando ainda que existem unidades sem médicos há mais de cinco anos, sendo o atendimento feito por enfermeiros e auxiliares de enfermagem.
A administração alega falta de interesse por parte dos profissionais de saúde. O salário abaixo da média e a preocupação com a segurança são empecilhos para a contratação. O último concurso da área contou com a habilitação de 31 médicos, sendo que assumiram o cargo apenas dois clínicos gerais, um ginecologista e dois psiquiatras. O salário de um médico que trabalha em uma unidade penal chega a R$ 7.700, já o recomendado pela Federação Nacional dos Médicos está em torno de R$ 15 mil. Enfim, uma somatória de fatores desestimula o profissional de saúde: salários baixos, distância percorrida e a crueza do dia a dia.
Covid-19 nos presídios
É esse o precário cenário do sistema de saúde da maioria das unidades penais no Brasil, que está exposto à ação da covid-19. No dia 15 de abril, o coronavírus fez sua primeira vítima dentro dos presídios brasileiros, mais precisamente no Instituto Penal Cândido Mendes, no estado do Rio de Janeiro. A vítima, um detento de 73 anos [11].
Segundo o Depen, no mundo 1.602 detentos encontram-se infectados e 25 já entraram em óbito. O Brasil é o quinto país com o maior número de detentos contaminados. Podemos acompanhar a evolução da covid-19 nos presídios brasileiros [12], diariamente junto ao sistema de acompanhamento do próprio Depen, sendo que atualmente no Brasil temos 156 suspeitas de contaminação, 112 confirmações e 7 óbitos.
Os presídios da região Centro-Oeste são os que detêm o maior número de presidiários contaminados, 72, contudo não há registro de óbitos ou nenhuma suspeita. A região Sudeste é a que apresenta os óbitos registrados em todo o país, 4, sendo que o estado de São Paulo é o que detém o maior número de apenados mortos, 3, e que segundo registro possuía 6 detecções e 37 suspeitas.
No dia 16 de março, o Depen [13], em razão da pandemia, suspendeu todas as visitas em suas unidades prisionais, sendo que os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Goiás, Amazônia, Roraima, Tocantins, Alagoas, Minas Gerais e Santa Catarina foram os únicos estados a suspender as visitas imediatamente.
Covid-19 nos presídios de São Paulo
A princípio, o estado de São Paulo não suspendeu as visitas em seus presídios, e a SAP expôs a sua população prisional, visitantes, seus policiais penais e demais servidores ao risco iminente de contágio ao editar a Resolução SAP 40, de 18/3/2020 [14], que autorizava uma visita por preso em suas unidades penais, mesmo o governo já tendo se posicionado frente à alta possibilidade de contágio, em 13 de março, quando determinou em decreto o fim de aglomerações.
Para que se tenha uma ideia do tamanho do problema, segundo a lista de relação de detentos no grupo de risco, encaminhada à Defensoria Pública [15], a SAP tem em suas unidades 10.538 presos com morbidades (HIV, tuberculose, asma), 4.911 mães gestantes e lactantes e 2.617 idosos. A defensoria entrou com pedido de habeas corpus para cada um desses detentos para prisão domiciliar com tornozeleira, sendo que até o dia 2 de abril mais de 1.500 detentos, entre homens e mulheres, já haviam sido soltos [16].
Os sindicatos ligados aos servidores do sistema penitenciário do estado também foram de suma importância para que medidas de urgência fossem adotadas por meio de ação judicial, haja vista a imobilidade da SAP em adotar as ações para conter o avanço do novo coronavírus dentro dos presídios.
Segundo o Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), em seu site, graças à pressão dos sindicatos do sistema as visitas foram suspensas [17], com uma liminar ganha pelo Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo (Sindasp) [18]. Ainda assim, faltava cancelar a entrega dos “jumbos”, pacotes de mantimentos e objetos levados pelos visitantes durante a semana, quando ocorre grande aglomeração de pessoas junto aos presídios, para justamente depositar esses pertences, colocando em risco a própria saúde e a dos funcionários.
A secretaria parecia estar engessada diante do problema, a ponto de os sindicatos terem de fazer diversas denúncias para forçá-la a fazer o óbvio, cancelar a entrega de materiais. Isso só ocorreu dia 25 de março, que apesar de tardia, segundo Fábio Cesar Ferreira, Fábio Jabá, presidente do Sifuspesp, foi necessária para a prevenção do contágio [19]. Não custa lembrar que as primeiras ações feitas pelo estado, por meio de decretos em relação à covid-19, começaram em 13 de março com a suspensão de aglomerações, Decreto 64.682 [20]; seguido do afastamento de servidores do grupo de risco, em 17 de março, Decreto 64.864 [21]; no dia 20 de março, com o Decreto 64.879, definindo o estado de calamidade pública [22]; e finalmente, em 24 de março, o Decreto 64.881, estabelecendo a quarentena em todo o estado.
Com relação aos seus policiais e servidores, a atitude da SAP também não foi diferente, e os sindicatos tiveram de entrar com ação para garantir o imediato afastamento dos servidores do grupo de risco, bem como assegurar a vinda dos equipamentos de proteção individual [23].
Afinal, apesar de ser alardeado, através de um vídeo, que equipamentos de proteção, máscaras, macacões de isolamento, termômetro a laser, borrifador para higienização de viatura e luvas já estavam sendo utilizados em um Centro de Detenção Provisória em Caiuá, no interior paulista, apenas essa unidade, das 176 existentes no estado, tinha recebido tal equipamento, sendo que em muitas penitenciárias faltavam até luvas e álcool em gel [24].
Em São Paulo, segundo apurado pelos sindicatos do sistema penitenciário, existem 35 casos confirmados de servidores contaminados por covid-19 e 37 casos suspeitos, além de que há o registro de um policial penal que mesmo já estando curado contraiu o vírus novamente, jogando por terra a falácia de que se cria imunidade quando recuperado [25].
Conclusão
O Brasil já está entre os cinco países que mais possuem presos contaminados por covid-19, bem como em registro de óbitos.
Um país em que o desrespeito às condições humanas dentro dos seus presídios, inclusive com a proliferação de doenças, que já custaram diversas reprimendas por parte de organizações de direitos humanos, conseguirá realmente dar suporte a sua população carcerária para protegê-la da pandemia do século? Onde nem médicos querem exercer a sua função, que aliás é regida por um conselho de ética e por um juramento.
Pelo exemplo do cenário posto, principalmente no estado de São Paulo, os presídios estão contando quase que unicamente com a atuação dos sindicatos dos servidores do sistema, com o trabalho incansável do corpo funcional dos presídios, com a ajuda de familiares de presos, com algumas instituições que lá prestam socorro e com o poder Judiciário, que ao acolher as denúncias e preposições legais dos sindicatos contribui para que se possa combater a proliferação massiva da covid-19 dentro dos presídios.
Porém, é necessário que uma ação de estado possa fazer frente a esse cenário grotesco, pois, caso não haja realmente ações efetivas, uma verdadeira tragédia pode se abater nos presídios brasileiros, transformando-os em tumbas com grades.
* Abdael Ambruster é especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos, diretor de Base Sindical do Sifuspesp e do Movimento Policiais Antifascismo.
Notas
1. Violência em Números. http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Infogr%C3%A1fico-2019-FINAL_21.10.19.pdf
2. FARIA, Glauco. ||Trancado por dentro||. Carta Maior. https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Trancado-por-dentro/5/11217
3. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 10 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
23. Sifuspesp esclarece dúvidas sobre proteção individual e afastamento de servidores para evitar proliferação do coronavírus https://sifuspesp.org.br/noticias/7405-sifuspesp-esclarece-duvidas-sobre-protecao-individual-e-afastamento-de-servidores-para-evitar-proliferacao-do-coronavirus
24. “Coronavírus: procedimento mostrado no vídeo em Caiuá tem que ser garantido pela SAP em todas as unidades, defende Sifuspesp”. https://sifuspesp.org.br/noticias/7442-coronavirus-procedimento-mostrado-no-video-em-caiua-tem-que-ser-garantido-pela-sap-em-todas-as-unidades-defende-sifuspesp
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