Por Luis Nassif, no Jornal GGN:
A politização da Polícia Militar tem vários capítulos prévios.
O mais trágico e simbólico foi quando o sanguinário Secretário de Segurança de São Paulo, Saulo de Castro Abreu, liberou a PM para os massacres do que ficou conhecido como os crimes de maio de 2006.
Havia até então, no governo Alckmin, um equilíbrio precário entre Saulo, o Secretário de Administração Previdenciária, o excepcional Natasha Furukawa, e o Secretário da Justiça.
O PSDB caminhava inapelavelmente para a direita selvagem. O próprio Alckmin estimulava a violência da PM, para desespero dos oficiais mais preparados, que tentavam reprimir os abusos.
De um deles, ouvi na época: quando o comandante maior (no caso, o governador) estimula a violência, não tem como segurarmos os policiais na ponta.
Na época, vivia-se o conflito com o PCC.
Alckmin conseguiu montar uma política de segurança eficaz, porque Saulo tratava de emporcalhar todas as reuniões com sua agressividade.
Quando Alckmin se retirou, para se candidatar à Presidência, assumiu o vice-governador Cláudio Lembo.
Pressentindo a tragédia que se avizinhava, fui a Lembro para aconselhá-lo a não dar gás a Saulo.
Em três momentos, Saulo demonstrara desequilíbrio amplo: no massacre de Castelinho; quando invadiu a Assembleia Legislativa acompanhado de PMs armados; e quanto prendeu o dono de um restaurante, por ter fechado a rua para o trânsito.
Foi em vão.
Lembo já tinha sido emprenhado pelo ouvido.
Alegou que todos lhe disseram que Saulo era o mais capaz. Dias depois, o massacre, a peça mais vergonhosa da história de São Paulo. Houve ordem central, foram desligados os rádios dos veículos, para não deixar pistas para a imprensa. E mataram-se jovens estudantes, grávidas prestes a dar luz.
O massacre só terminou quando pessoas ligadas a direitos humanos convenceram o Conselho Regional de Medicina a enviar peritos isentos ao Instituto Médico Legal.
Como é um homem de bem, o episódio deve ter sido decisivo para Lembo reavaliar o papel de uma certa elite branca paulista.
A partir dali, a selvageria se instalou.
Multiplicaram-se os massacres na periferia, apesar dos esforços de contenção de oficiais mais responsáveis.
Nada aconteceu com os assassinos.
As mães de maio tentaram inutilmente levantar o tema, mas uma imprensa insensível, um Tribunal de Justiça partidarizado, capaz de isentar os assassinos do Carandiru, e uma Polícia Civil impotente impediram a apuração dos crimes.
Depois disso, o pacto com o PCC foi a humilhação final, o reconhecimento da incapacidade do estado mais rico da União de montar uma política de segurança.
Finalmente, João Doria foi eleito com um discurso de estímulo à violência policial, inclusive prometendo fornecer defesa jurídica aos PMs acusados de assasinato.
As redes sociais
Nesse quadro, a expansão das redes sociais e dos grupos de WhatsApp foi o segundo fator de politização das PMs.
Eles saíram de sua bolha e passaram a conviver com a ultradireita civil, nacional e internacional. E muitos se lançaram candidatos do poder militar.
Mais que isso, decidiram enveredar pelo empreendedorismo espúrio, tornando-se fornecedores do complexo militar.
O portal da tal Senah (Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários), a falsa ONG que pretendia intermediar venda de vacinas, expõe diversas falsas ONGs e associações, em vários países, ligadas a militares da ativa e da reserva
O caso mais emblemático é do general Braga Neto, quando comandante da intervenção militar no Rio de Janeiro. Abusou das compras emergenciais, sem licitação, tentando adquirir equipamentos até de uma empresa de Miami, especializada na contratação de mercenários para ações terroristas.
A CPI da Pandemia desnudou, de forma definitiva, a rede de negócios estranhos envolvendo militares e ex-militares.
Some-se a isso, uma leniência histórica – e indesculpável – do modelo de segurança brasileiro, de permitir a oficiais da PM serem proprietários de empresas de segurança.
A infiltração no poder civil
A ampliação da participação de militares no poder civil começou ainda nos governos petistas, permitindo que assumissem cargos no Ministério da Defesa, que deveria ser fundamentalmente civil.
Michel Temer – e seu Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes – trouxeram os militares para o coração no governo, no Gabinete de Segurança Institucional e no comando da operação de Garantia da Lei e Ordem no Rio de Janeiro.
Além disso, com o governo politicamente enfraquecido, Moraes tentou fabricar até um grupo terrorista para justificar a ampliação das relações com militares.
Bolsonaro consolida esse movimento, com um número incalculável de militares nas mais distintas áreas da administração pública.
Nesse período, a inoperância de militares das Forças Armadas, e oficiais de Polícias Militares, atuando em áreas desconhecidas para eles, provocaram dois efeitos fulminantes na opinião pública: liquidaram com a imagem de que militares eram mais eficientes e de que eram infensos à corrupção.
Criou-se uma extensa rede de interesses pessoais e familiares, com a melhoria de rendimentos permitida por esse movimento de Bolsonaro.
Mesmo assim, está longe a possibilidade de um golpe militar, mesmo com a adesão de quadros das PMs estaduais. Aparentemente, não há uma estrutura sólida de apoio ao golpe.
Mas não se descartam atentados ou outras manifestações terroristas. Afinal, o próprio Bolsonaro saiu dos porões das Forças Armadas.
A volta à institucionalidade
Aparentemente, falta massa crítica para Bolsonaro ser bem sucedido em suas ameaças de golpe miliciano-militar.
Mas as manifestações de indisciplina de oficiais da PM, estimulados pela leniência do Alto Comando com o general Pazuello, indicam mais um desafio pós-Bolsonaro: o reenquadramento dos PMs e das Forças Armadas, de volta aos quartéis.
Daqui até 7 de setembro haverá a contagem regressiva, se Bolsonaro terá ou não condições de golpe. Mesmo falhando, ele continuará tentando, erodindo dia a dia a democracia com cada arremate contra as instituições.
Tudo isso amplia a necessidade do grande pacto nacional, juntando atores políticos de diversas cores em defesa da democracia.
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