Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
“Eles que Venham. Por Aqui Não Passarão” é o título de uma nota divulgada ontem, por 98 militares da reserva, criticando a Comissão da Verdade – criada para esclarecer quem foram os responsáveis por mortes, torturas e desaparecimentos na ditadura, mas sem poder de punição. Eles reafirmam outro manifesto que havia sido divulgado anteriormente, em que reconhecem que a comissão é um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo”.
Minha crítica à Comissão da Verdade é exatamente o contrário: ela foi aprovada em versão light, sem a força que deveria ter.
Pouco me importa o que pensam os verde-oliva da reserva. Eles podem reclamar até se engasgar com o chá da tarde no Clube Militar. A meu ver, demonstrações de afeto a um período autoritário são peça de museu, pertencentes a um tempo que, se não fizermos nenhuma besteira, nunca mais vai se repetir. Vivemos em uma democracia e, por isso, e só por isso, qualquer um (inclusive eles) podem se manifestar à vontade. O problema são as consequências da permanência de uma forma de pensar na sociedade, que é passada sem questionamento para as gerações mais jovens, tornando a dignidade humana algo relativo e flexível.
Para isso, gostaria de tomar a liberdade e reproduzir um texto que já postei aqui há um bom tempo – atualizado, é claro, com informações novas:
*****
Não conheço pessoa que, tendo amado intensamente ou vivido uma dor muito forte, não pensou, pelo uma vez, na possibilidade de ter suas memórias arrancadas fora em um passe de mágicas. Considerando que deve levar um tempinho ainda até que desenvolvam um aparelho como o do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, perguntei a uma médica-amiga se já haviam inventado remédio para acentuar o esquecimento. E, em caso positivo, se ela poderia me deixar receitadas uma ou duas caixas – nada demais, apenas para as intempéries do dia-a-dia. Ora, por que não? Inventam pílulas para tudo, de ereção prolongada até suadouro nas mãos! Com um sorriso, ela me lembrou que tal remédio já existe e é consumido pela humanidade desde que o primeiro hominídio percebeu que comida fermentada dá barato.
É claro que todos os percalços fazem parte da caminhada de cada um e da grande marcha de uma sociedade e que, portanto, são importantes no processo de aprendizado. Mas e quando a lição já foi entendida e a lembrança, não resolvida, continua a martelar nosso cotidiano?
Dia desses, trouxe aqui a história de Maria Francisca Cruz, uma “quase” viúva. Seu marido foi trabalhar na Amazônia, deixando para trás sete filhos e o silêncio. Enveredou-se por outro colo? Está preso? Tem medo de voltar? Falam que morreu tentando fugir de uma fazenda… Quem sabe? Dor maior não é saber que acabou. É não ter certeza disso.
Acordar de manhã sem alguns pressupostos básicos é angustiante. Imagine, então, aguardar o retorno de alguém que nunca aparece. Conheço gente cujos pais foram sumidos pela Gloriosa dos Verde-Oliva. A família parou no tempo, porta-retratos não saem do mesmo lugar em que estavam desde quando ainda éramos 90 milhões em ação. Até a poeira do relógio de pulso aguardando o dono é a mesma, sofrendo em silêncio.
O governo brasileiro resolveu não mais tentar buscar a revisão da Lei da Anistia. Mais do que punir torturadores, seria uma ótima forma de colocar pontos-finais em muitas das histórias em aberto e fazer com que pessoas tivessem, pela primeira vez em décadas, uma noite de sono inteira. A Presidência da República resolveu investir suas fichas na Comissão da Verdade, criada pelo Congresso Nacional. Até agora, o governo insiste em manter trancados a sete chaves documentos considerados ultrassecretos, além de inventar desculpa atrás de desculpa para não vomitar todos os arquivos da ditadura. Garantindo que representantes daquele tempo, como o Coronel Brilhante Ustra, possam continuar reinventando a história como quiserem, uma vez que a prova dos nove está encaixotada em algum lugar.
(Carlos Alberto Brilhante Ustra foi acusado pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado no Doi-Codi, em São Paulo, em 1971. Pede-se o reconhecimento público da responsabilidade do coronel pela morte de Merlino. Ustra era comandante do Doi-Codi e diversas testemunhas – entre elas o ex-ministro-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, preso no local na mesma época – afirmam ter visto Merlino em estado gravíssimo após sessões de tortura.)
Em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. E incomodando através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar.
Isso tudo com a ajuda de colegas jornalistas que esqueceram que a função primeira da profissão não é ajudar restolhos da ditadura sob a justificativa de garantir essa estabilidade, mas trazer à tona o que está submerso. Repetem ad nauseam: “Não é hora de mexer nesse assunto”.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o Brasil é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas entre os anos de 1972 e 1974, durante a Guerrilha do Araguaia. Disse que a Lei da Anistia impede o acesso à verdade dos fatos e pediu que ela fosse revista. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal, que vem sendo sensível em decisões sobre a dignidade humana, deu de ombros.
Uma pesquisa do Datafolha em 2010 apontou que 45% da população era contrária à punição de agentes que torturaram presos políticos durante a ditadura militar contra 40% a favor. Agarro-me desesperadamente à esperança de que o pessoal não entendeu exatamente do que se tratava.
Em enquete realizada este ano por este humilde blog, o resultado foi o contrário, com a grande maioria apoiando a punição contra quem torturou durante a Gloriosa. Orgulho dos meus leitores que, contudo, não representam a posição do restante da sociedade.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto de ser banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós torceu para os mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos no afã de arrancar a “verdade”.
A justificativa é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás. Esse é o problema de sermos o país do “deixa disso” ou mesmo do “esquece, não vamos criar caso, o que passou, passou” e ainda do “você vai comprar briga por isso? Ninguém gosta de briguentos”. Enquanto não acertarmos as contas com nossa história, não teremos capacidade de entender qual foi a herança deixada por ela – na qual estamos afundados até o pescoço e que nos define.
A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje. E muitos de nós não suportarão isso.
O presidente do Senado chegou a defender o sigilo dos documentos da ditadura da qual fez parte.
Mas, e agora José? O que eu faço para esquecer?
“Eles que Venham. Por Aqui Não Passarão” é o título de uma nota divulgada ontem, por 98 militares da reserva, criticando a Comissão da Verdade – criada para esclarecer quem foram os responsáveis por mortes, torturas e desaparecimentos na ditadura, mas sem poder de punição. Eles reafirmam outro manifesto que havia sido divulgado anteriormente, em que reconhecem que a comissão é um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo”.
Minha crítica à Comissão da Verdade é exatamente o contrário: ela foi aprovada em versão light, sem a força que deveria ter.
Pouco me importa o que pensam os verde-oliva da reserva. Eles podem reclamar até se engasgar com o chá da tarde no Clube Militar. A meu ver, demonstrações de afeto a um período autoritário são peça de museu, pertencentes a um tempo que, se não fizermos nenhuma besteira, nunca mais vai se repetir. Vivemos em uma democracia e, por isso, e só por isso, qualquer um (inclusive eles) podem se manifestar à vontade. O problema são as consequências da permanência de uma forma de pensar na sociedade, que é passada sem questionamento para as gerações mais jovens, tornando a dignidade humana algo relativo e flexível.
Para isso, gostaria de tomar a liberdade e reproduzir um texto que já postei aqui há um bom tempo – atualizado, é claro, com informações novas:
*****
Não conheço pessoa que, tendo amado intensamente ou vivido uma dor muito forte, não pensou, pelo uma vez, na possibilidade de ter suas memórias arrancadas fora em um passe de mágicas. Considerando que deve levar um tempinho ainda até que desenvolvam um aparelho como o do filme “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, perguntei a uma médica-amiga se já haviam inventado remédio para acentuar o esquecimento. E, em caso positivo, se ela poderia me deixar receitadas uma ou duas caixas – nada demais, apenas para as intempéries do dia-a-dia. Ora, por que não? Inventam pílulas para tudo, de ereção prolongada até suadouro nas mãos! Com um sorriso, ela me lembrou que tal remédio já existe e é consumido pela humanidade desde que o primeiro hominídio percebeu que comida fermentada dá barato.
É claro que todos os percalços fazem parte da caminhada de cada um e da grande marcha de uma sociedade e que, portanto, são importantes no processo de aprendizado. Mas e quando a lição já foi entendida e a lembrança, não resolvida, continua a martelar nosso cotidiano?
Dia desses, trouxe aqui a história de Maria Francisca Cruz, uma “quase” viúva. Seu marido foi trabalhar na Amazônia, deixando para trás sete filhos e o silêncio. Enveredou-se por outro colo? Está preso? Tem medo de voltar? Falam que morreu tentando fugir de uma fazenda… Quem sabe? Dor maior não é saber que acabou. É não ter certeza disso.
Acordar de manhã sem alguns pressupostos básicos é angustiante. Imagine, então, aguardar o retorno de alguém que nunca aparece. Conheço gente cujos pais foram sumidos pela Gloriosa dos Verde-Oliva. A família parou no tempo, porta-retratos não saem do mesmo lugar em que estavam desde quando ainda éramos 90 milhões em ação. Até a poeira do relógio de pulso aguardando o dono é a mesma, sofrendo em silêncio.
O governo brasileiro resolveu não mais tentar buscar a revisão da Lei da Anistia. Mais do que punir torturadores, seria uma ótima forma de colocar pontos-finais em muitas das histórias em aberto e fazer com que pessoas tivessem, pela primeira vez em décadas, uma noite de sono inteira. A Presidência da República resolveu investir suas fichas na Comissão da Verdade, criada pelo Congresso Nacional. Até agora, o governo insiste em manter trancados a sete chaves documentos considerados ultrassecretos, além de inventar desculpa atrás de desculpa para não vomitar todos os arquivos da ditadura. Garantindo que representantes daquele tempo, como o Coronel Brilhante Ustra, possam continuar reinventando a história como quiserem, uma vez que a prova dos nove está encaixotada em algum lugar.
(Carlos Alberto Brilhante Ustra foi acusado pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, torturado e assassinado no Doi-Codi, em São Paulo, em 1971. Pede-se o reconhecimento público da responsabilidade do coronel pela morte de Merlino. Ustra era comandante do Doi-Codi e diversas testemunhas – entre elas o ex-ministro-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, preso no local na mesma época – afirmam ter visto Merlino em estado gravíssimo após sessões de tortura.)
Em nome de uma suposta estabilidade institucional, o passado não resolvido permanece nos assombrando. E incomodando através de um olhar perdido da mãe de um amigo que, da janela, permanece a esperar.
Isso tudo com a ajuda de colegas jornalistas que esqueceram que a função primeira da profissão não é ajudar restolhos da ditadura sob a justificativa de garantir essa estabilidade, mas trazer à tona o que está submerso. Repetem ad nauseam: “Não é hora de mexer nesse assunto”.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que o Brasil é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas entre os anos de 1972 e 1974, durante a Guerrilha do Araguaia. Disse que a Lei da Anistia impede o acesso à verdade dos fatos e pediu que ela fosse revista. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal, que vem sendo sensível em decisões sobre a dignidade humana, deu de ombros.
Uma pesquisa do Datafolha em 2010 apontou que 45% da população era contrária à punição de agentes que torturaram presos políticos durante a ditadura militar contra 40% a favor. Agarro-me desesperadamente à esperança de que o pessoal não entendeu exatamente do que se tratava.
Em enquete realizada este ano por este humilde blog, o resultado foi o contrário, com a grande maioria apoiando a punição contra quem torturou durante a Gloriosa. Orgulho dos meus leitores que, contudo, não representam a posição do restante da sociedade.
O impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia dos distritos policiais, nas salas de interrogatórios, nas periferias das grandes cidades, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica). A ponto de ser banalizada em filmes como Tropa de Elite, em que parte de nós torceu para os mocinhos que usavam o mesmo tipo de método dos bandidos no afã de arrancar a “verdade”.
A justificativa é a mesma usada nos anos de chumbo brasileiros ou nas prisões no Iraque e em Guantánamo, em Cuba: estamos em guerra. Ninguém explicou, contudo que essa guerra é contra os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás. Esse é o problema de sermos o país do “deixa disso” ou mesmo do “esquece, não vamos criar caso, o que passou, passou” e ainda do “você vai comprar briga por isso? Ninguém gosta de briguentos”. Enquanto não acertarmos as contas com nossa história, não teremos capacidade de entender qual foi a herança deixada por ela – na qual estamos afundados até o pescoço e que nos define.
A verdade é que não queremos olhar para o retrovisor não por ele mostrar o que está lá atrás, mas por nos revelar qual a nossa cara hoje. E muitos de nós não suportarão isso.
O presidente do Senado chegou a defender o sigilo dos documentos da ditadura da qual fez parte.
Mas, e agora José? O que eu faço para esquecer?
4 comentários:
O mundo ocidental, incluído aí a mídia nacional, a FIESP e o Príncipado de Higienópolis, têm saudado as ações de derrubada de governos, chamadas de "Primavera Árabe". São reações das respectivas populações aos governos ditatorias de países árabes.
Sabemos que muitas ações têm sido insufladas e até patrocinadas por países e empresas que não se importam nem um pouco com os ideais e necessidades das populações, mas com o único objetivo comercial sobre o petróleo.
Aqui no Brasil, tentamos com a criação da Comissão da Verdade, punir torturadores e assassinos, que usando uniformes das FFAA, destituíram um Governo legitimamente eleito, impuseram à censura, torturam, sequestraram e mataram. Sufocaram o povo com a força dos fuzis e a ponta da baioneta.
Por quê no mundo árabe se pode derrubar governos e aqui no Brasil, não ?
O famigerado Rei do Esgoto, blogueiro da veja, está pregando abertamente um golpe militar. Ele o faz com mais-palavras, esperto que é, mas libera os comentários para perdirem abertamente a derrubada do Governo Constitucional. Como se orgulha de ter o blog mais censurado do Brasil, é óbvio que aprova e concorda com as manifestações golpistas.
Espero que a Abin esteja atenta, já que o patrão deste elemento, sr. Bob Civita, já anunciou publicamente que irá derrubar a Presidenta Dilma Roussef. Nos termos da lei, é preciso abortar esta conspiração escancarada, já!
Esses aí vão mostar a cara? Covardes, sequer tinham a congem de mostar a cara quando estavam no poder e agora vem esse tipo de ameaça.Se sentem impunes esses covardes que torturavam e assassivam pessoas desarmadas e amarradas.Basta as autridades punir exemplarmente essa escória que esse tipo de coisa acaba.
RIO DOS MACACOS - UMA TRAGÉDIA ANUNCIADA. - Será que teremos aqui um novo Pinheirinho????!!! - http://pregopontocom.blogspot.com/2012/03/rio-dos-macacos-uma-tragedia-anunciada.html
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