Anos 2000. A International Sport and Leisure (ISL) corre o risco de falir. A empresa havia sido criada por Horst Dassler, o magnata alemão herdeiro da Adidas. Foi o homem que ajudou a inventar o marketing esportivo: assumir um evento, empacotar comercialmente e vender a emissoras de televisão, já com os patrocinadores definidos.
Hoje sabemos que a ISL dominou o mercado à custa de dezenas de milhões de dólares em propinas. O homem da mala de Dassler era Jean Marie Weber. O encarregado de molhar a mão da cartolagem e garantir os direitos de TV e de marketing que eram das federações.
Foi o esquema da ISL que enriqueceu João Havelange e Ricardo Teixeira. Na casa dos milhões e milhões de dólares. Mostramos no Brasil - modéstia à parte, pela primeira vez - a relação entre as datas de pagamento das propinas e o enriquecimento de Teixeira. Está tudo em O Lado Sujo do Futebol.
Voltemos à ISL. Fustigada por concorrentes, deu passo maior que as pernas, sem contar a drenagem do dinheiro que destinava à corrupção. No desespero, fez um pedido à Globo Overseas, dos irmãos Marinho. Queria um empréstimo. A Globo concordou em fazer um adiantamento de uma parcela devida, relativa a direitos de TV da Copa do Mundo, com 13% de desconto. Assim foi feito.
Mas, a FIFA chiou, já que não recebeu da ISL o repasse que lhe era devido. Foi à Justiça. O caso resultou numa ação contra seis executivos da ISL, inclusive o homem da mala. A Globo foi ouvida no caso. No dia 26 de agosto de 2001, o todo-poderoso do futebol global, Marcelo Campos Pinto, deu depoimento.
Não era objeto daquele caso investigar a Globo. Como não é agora, com os cartolas presos em Zurique. Mas aquele primeiro caso colocou a bola para rolar. Foi resultante dele a investigação subsequente, do promotor Thomas Hildbrand, que acabou com um acordo envolvendo Teixeira e Havelange. Eles devolveram parte do dinheiro recebido como propina e ficou por isso mesmo. Não admitiram culpa, mas o meticuloso trabalho de Hildbrand seguiu o dinheiro e constatou sem sombra de dúvidas o propinoduto na casa das dezenas de milhões de dólares.
O que há em comum entre o caso suiço e o de agora, nos Estados Unidos? A escolha arbitrária, pela cartolagem, de intermediários que facilitam o enriquecimento pessoal. Por que a FIFA não vendeu os direitos diretamente às emissoras de TV? Por que a CBF não vendeu os direitos da Copa do Brasil diretamente às emissoras de TV? Porque os intermediários levam a bolada de onde sai a propina.
Foi assim com a ISL, foi assim com a Traffic de J. Háwilla. Exemplo? Contrato da Nike com a CBF. De acordo com a promotoria dos Estados Unidos, Háwilla recebeu pelo menos U$ 30 milhões da Nike na Suiça, dos quais repassou 50% a Ricardo Teixeira. Só aí são, em valores de hoje, por baixo, R$ 45 milhões de reais para o cartola! Considerando o valor total do contrato, dá uma taxa de cerca de 20% de propina.
Como sabemos que Teixeira está sendo investigado pelo FBI? Porque na página 74 do indiciamento feito nos Estados Unidos é mencionado que, no dia 11 de julho de 1996, houve a assinatura do contrato entre a Nike e a CBF em Nova York. Quem assinou em nome da CBF foi o co-conspirador de número 11. Como quem assinou em nome da CBF foi Ricardo Teixeira, ele é o co-conspirador número 11 (num documento paralelo, a plea bargain de J. Háwilla, Teixeira é o co-conspirador número 13).
Também é possível identificar J. Háwilla, neste documento, como o co-conspirador número 2. Foi ele quem, em abril de 2014, teve uma conversa um tanto bizarra com José Maria Marin na Flórida. Marin tinha ido a Miami tratar da Copa América Centenário, que será disputada em 2016 nos Estados Unidos. Mas falou com Háwilla sobre pagamentos devidos a ele e ao co-conspirador número 12 (presumivelmente Marco Polo Del Nero, o atual presidente da CBF) no esquema da Copa do Brasil.
Háwilla provavelmente usava uma escuta ambiental, já que o diálogo é transcrito ipsis literis pelos promotores (ver abaixo).
Em resumo, Háwilla perguntou se deveria continuar pagando propina ao antecessor de José Maria Marin, Ricardo Teixeira, no esquema da Copa do Brasil. Marin respondeu mais ou menos assim: “Tá na hora de vir para nós. Verdade ou não?”.
Háwilla: “Certo, certo, certo, o dinheiro tinha de ser dado a você”. Marin: “É isso, certo”.
Disso podemos tirar duas conclusões:
— Tudo indica que o FBI usou escutas ambientais em mais de um dos quatro acusados que fizeram confissão de culpa. Em Chuck Blazer, conhecido como Mr. 10%, o fez com certeza. Como nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, não há vazamentos seletivos para a imprensa, só saberemos exatamente quando e se as gravações forem mostradas no julgamento.
— Ricardo Teixeira e Marco Polo Del Nero estão sob investigação da polícia federal dos Estados Unidos.
Uma autoridade norte-americana disse ao New York Times que deverá acontecer uma segunda rodada de indiciamentos. O mais provável é que a promotoria aguarde a extradição dos presos em Zurique para tentar obter a colaboração de mais algum deles.
Marin está com 83 anos de idade. Vai passar o resto da vida na cadeia ou fazer acordo com os promotores?
O foco parece ser, acima de tudo, a FIFA e sua cartolagem graúda, ainda em atividade. São aqueles que conhecem com intimidade os bastidores e as negociatas do futebol, tanto quanto ou mais que J. Háwilla. Gente que pode denunciar esquemas, identificar negócios ilícitos, enfim, colaborar com a promotoria em troca de leniência.
Neste sentido, pela longevidade no poder, Ricardo Teixeira tem muito a contar.
Tanto quanto o FBI, ele parece gostar de gravações.
Narramos em nosso livro um episódio intrigante, sobre o dia em que a blindagem de Teixeira no noticiário da TV Globo foi brevemente rompida:
Isso durou até 13 de agosto, um sábado. Nesse dia, 12 policiais civis de Brasília cumpriram mandado de busca e apreensão no apartamento de Vanessa Almeida Precht, no Leblon, no Rio de Janeiro. O endereço era a sede da Ailanto, a empresa de Vanessa e Sandro Rosell acusada de desviar dinheiro do amistoso entre Brasil e Portugal.
Diante de novas denúncias, a polícia obteve na Justiça autorização para vasculhar a empresa em busca de documentos e computadores. A busca foi noticiada no “Jornal Nacional”.
Teixeira enfureceu-se. Na quinta-feira subsequente, veio a vingança. O colunista Ricardo Feltrin publicou uma suposta ameaça de Teixeira ao diretor da Globo Esportes, Marcelo Campos Pinto. Segundo Feltrin, o dirigente estava disposto a revelar gravações, em seu poder, que mostrariam a forma como a Globo manipulou horário de partidas de clubes e da seleção. E mais: outras gravações evidenciariam a prepotência da cúpula da Globo Esportes e o desprezo por concorrentes. A pessoas próximas, Teixeira teria dito estar perplexo com “a cacetada da Globo” e se sentindo traído. Sua maior revolta se devia ao fato de, poucos meses antes, ter ajudado a Globo a manter os direitos de transmissão do futebol.
O recado de Teixeira, via imprensa, inibiu a Globo de avançar no noticiário. Mas o cartola percebeu que alguma coisa estava fora da ordem. Mesmo a contragosto, a Globo havia noticiado alguma coisa contra ele. Era o sinal mais claro de que a informação no Brasil não tinha mais dono.
Um fenômeno causado tanto pela disseminação do acesso à internet quanto pela redução relativa do alcance de veículos tradicionais. Em 1989, por exemplo, quando o cartola tomou posse na CBF, a média de audiência do Jornal Nacional era de 59 pontos. Em 2013, foi de 26. Ou seja, quase 6 em cada 10 telespectadores do Jornal Nacional mudaram de canal. E grande parte deles estava se informando sobre as denúncias contra Teixeira.
Agora, o ex-presidente da CBF perdeu seu refúgio na Flórida. Ele não obteve a cidadania definitiva que buscava no refúgio fiscal de Andorra, onde ficaria livre de extradição. Como definiu meu colega Leandro Cipoloni, Teixeira se parece com aquele rei que, no xadrez, anda de lado uma casa por vez, para escapar do xeque-mate que fatalmente virá.
Se for indiciado nos Estados Unidos e, consequentemente, acossado por autoridades brasileiras, vai respeitar a lei do silêncio?
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