Por Cynara Menezes, no blog Socialista Morena:
Na tarde do dia em que iria assistir Que Horas Ela Volta?, fui ao supermercado. Na fila do caixa, observei que a moça que ia me atender conversava com uma senhora parecida com ela, ao mesmo tempo que fechava a conta de outro freguês. A caixa era uma jovem negra linda, de coque no cabelo, que chamou a minha atenção. A senhora com quem falava também tinha traços bonitos, embora mais velha e com aparência castigada. Reparei que a menina tratava a mulher pelo nome, mas achei que pareciam parentes. Tia e sobrinha, talvez?
Quando chegou a minha vez de pagar, perguntei: “Aquela senhora com quem você estava conversando era sua tia?” Ela respondeu: “Não, é minha mãe. É que ela trabalha como babá a semana toda, só vai para casa domingo de manhã. E a gente só se vê quando ela vem aqui no supermercado comprar alguma coisa.” Achei tão triste… “Puxa, que duro, né? Ela cuida dos filhos dos outros e mal vê os dela.” A mocinha concordou: “É, sim, uma vida difícil.”
Foi muito curioso ter vivido esta cena justo horas antes de ir ao cinema, porque o filme de Anna Muylaert trata exatamente disso: de uma babá que cuida, com todo amor e dedicação do mundo, do filho de outras pessoas em São Paulo enquanto a própria filha está sendo cuidada por parentes em um Nordeste distante. Conto essa história não porque tenha sido uma tremenda coincidência: as Val (a empregada vivida brilhantemente por Regina Casé) estão em toda parte Brasil afora, de preferência usando uniforme branquinho.
Esta, aliás, foi a primeira coisa que pensei ao assistir ao filme: o que será que um estrangeiro vai pensar ao descobrir este “segredo” brasileiro, o de que até hoje existe empregada doméstica vivendo em um quartinho dos fundos nas casas da burguesia? Que, em pleno século 21, mantemos este resquício da escravidão? Que ainda há doméstica sem o direito de nem mesmo ter sua própria casa, sua própria família e de poder cuidar dos próprios filhos?
Imaginem, este filme poderá ser indicado ao Oscar e visto por gente no mundo inteiro… O profundo sentimento de vergonha que dá de ser brasileiro diante destas cenas só não é maior do que a raiva de saber que, não faz muito tempo, houve uma revolta no País quando se deu às empregadas o direito de receber o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), como todo trabalhador. Esta gente esperneou por pagar direitos trabalhistas a pessoas que cuidam de seus filhos como se fossem delas! É um misto de ingratidão e descaramento que enoja. Pior ainda é lembrar que muitos destes patrões se sentirão incomodados se uma destas mulheres que criaram seus filhos sentar a seu lado em um avião.
No filme, os patrões de Val são aquele tipo de família paulistana pseudoprogressista, aparentemente moderninha, que “trata bem os empregados”. “Ela é quase da família” (atente para o “quase”), costumam dizer sobre a sua “Val”. Isto até a hora em que Val precisa receber, no quartinho onde vive, sua filha, que vem do Nordeste para prestar o vestibular –a filha dela, como a menina do supermercado, tampouco a chama de “mãe”. A fachada “humanista” dos donos da casa cai por terra na hora, ao ponto de mandarem desinfetar a piscina porque a adolescente pobre ousou entrar nela para brincar com o menino que Val criou enquanto a mãe dele se dedicava à carreira. “Que horas ela volta, Val?”
Não fosse por Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val, passaríamos o filme inteiro com este nó na garganta, de raiva e vergonha. Jéssica chega para abalar: inteligente, cheia de convicções, é a legítima representante da geração que foi incluída pelos programas sociais dos últimos anos. Não deixa pedra sobre pedra nem na cabeça do espectador nem na de Val. Lava a alma. E faz pensar sobre a importância da conscientização política da juventude, tão negligenciada pelo PT nestes 12 anos em que está no poder… Com mais Jéssicas, o Brasil seria outro. E a vida das Vals, também.
Excelente filme. Não deixem de assistir.
Na tarde do dia em que iria assistir Que Horas Ela Volta?, fui ao supermercado. Na fila do caixa, observei que a moça que ia me atender conversava com uma senhora parecida com ela, ao mesmo tempo que fechava a conta de outro freguês. A caixa era uma jovem negra linda, de coque no cabelo, que chamou a minha atenção. A senhora com quem falava também tinha traços bonitos, embora mais velha e com aparência castigada. Reparei que a menina tratava a mulher pelo nome, mas achei que pareciam parentes. Tia e sobrinha, talvez?
Quando chegou a minha vez de pagar, perguntei: “Aquela senhora com quem você estava conversando era sua tia?” Ela respondeu: “Não, é minha mãe. É que ela trabalha como babá a semana toda, só vai para casa domingo de manhã. E a gente só se vê quando ela vem aqui no supermercado comprar alguma coisa.” Achei tão triste… “Puxa, que duro, né? Ela cuida dos filhos dos outros e mal vê os dela.” A mocinha concordou: “É, sim, uma vida difícil.”
Foi muito curioso ter vivido esta cena justo horas antes de ir ao cinema, porque o filme de Anna Muylaert trata exatamente disso: de uma babá que cuida, com todo amor e dedicação do mundo, do filho de outras pessoas em São Paulo enquanto a própria filha está sendo cuidada por parentes em um Nordeste distante. Conto essa história não porque tenha sido uma tremenda coincidência: as Val (a empregada vivida brilhantemente por Regina Casé) estão em toda parte Brasil afora, de preferência usando uniforme branquinho.
Esta, aliás, foi a primeira coisa que pensei ao assistir ao filme: o que será que um estrangeiro vai pensar ao descobrir este “segredo” brasileiro, o de que até hoje existe empregada doméstica vivendo em um quartinho dos fundos nas casas da burguesia? Que, em pleno século 21, mantemos este resquício da escravidão? Que ainda há doméstica sem o direito de nem mesmo ter sua própria casa, sua própria família e de poder cuidar dos próprios filhos?
Imaginem, este filme poderá ser indicado ao Oscar e visto por gente no mundo inteiro… O profundo sentimento de vergonha que dá de ser brasileiro diante destas cenas só não é maior do que a raiva de saber que, não faz muito tempo, houve uma revolta no País quando se deu às empregadas o direito de receber o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), como todo trabalhador. Esta gente esperneou por pagar direitos trabalhistas a pessoas que cuidam de seus filhos como se fossem delas! É um misto de ingratidão e descaramento que enoja. Pior ainda é lembrar que muitos destes patrões se sentirão incomodados se uma destas mulheres que criaram seus filhos sentar a seu lado em um avião.
No filme, os patrões de Val são aquele tipo de família paulistana pseudoprogressista, aparentemente moderninha, que “trata bem os empregados”. “Ela é quase da família” (atente para o “quase”), costumam dizer sobre a sua “Val”. Isto até a hora em que Val precisa receber, no quartinho onde vive, sua filha, que vem do Nordeste para prestar o vestibular –a filha dela, como a menina do supermercado, tampouco a chama de “mãe”. A fachada “humanista” dos donos da casa cai por terra na hora, ao ponto de mandarem desinfetar a piscina porque a adolescente pobre ousou entrar nela para brincar com o menino que Val criou enquanto a mãe dele se dedicava à carreira. “Que horas ela volta, Val?”
Não fosse por Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val, passaríamos o filme inteiro com este nó na garganta, de raiva e vergonha. Jéssica chega para abalar: inteligente, cheia de convicções, é a legítima representante da geração que foi incluída pelos programas sociais dos últimos anos. Não deixa pedra sobre pedra nem na cabeça do espectador nem na de Val. Lava a alma. E faz pensar sobre a importância da conscientização política da juventude, tão negligenciada pelo PT nestes 12 anos em que está no poder… Com mais Jéssicas, o Brasil seria outro. E a vida das Vals, também.
Excelente filme. Não deixem de assistir.
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