Por Marco Weissheimer, no site Sul-21:
“Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política. Quando procuradores federais emitem juízos antecipados sobre pessoas que estão sendo investigadas, ficam alheios a vazamentos de provas e defendem a manutenção de prisões preventivas para forçar delações premiadas, indicam um novo modo de funcionamento do Estado de Direito que pende para o fascismo”. As declarações são do ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, ao comentar o andamento das investigações da Operação Lava Jato e alguns procedimentos que vem sendo adotados por seus promotores no campo jurídico.
Em entrevista ao Sul21, Tarso Genro sustenta que o que está ocorrendo envolve um processo mais complexo de ataque à política em geral, de criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram ou estão na base do Governo, mas que começa a atingir a própria oposição. Neste “novo modo de funcionamento do Estado de Direito”, afirma, a “ação faz o direito”, de forma alheia à Constituição. E acrescenta: “A situação se torna mais grave, quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta “exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura do Presidente Lula”.
Nas últimas semanas, o senhor tem se manifestado em artigos e nas redes sociais contra algumas práticas que vem marcando o andamento das investigações da Operação Lava Jato e o contexto que as cercam. Quais são suas preocupações centrais sobre o que vem acontecendo?
Várias informações que transitam pela grande imprensa, todas elas laudatórias, dão conta de que Procuradores Federais se movimentam para “refundar” o Estado, emitem juízos antecipados sobre pessoas e grupos de pessoas que estão sendo inquiridos ou processados, ficam alheios a vazamentos de provas e diligências que inculpam, sem o contraditório, pessoas que são submetidas à execração pública, defendem a manutenção de prisões preventivas para forçar delações premiadas nitidamente dirigidas, informam previamente a alguns meios de comunicação a respeito dos próximos atos sob sua jurisdição, integrando-os na processualística penal e, desta forma, privatizam e midiatizam o processo penal, consequentemente, a Justiça Penal como um todo. O Estado-espetáculo vem funcionando com todas as caldeiras em temperatura máxima.
Na sua opinião, essas movimentações e práticas são circunstanciais ou apontam para algo mais de fundo?
Se as vítimas deste processo complexo fossem apenas os criminosos, poderia se dizer que se trata de uma deformação momentânea, recuperável. Tudo indica, porém, que se trata de um processo mais complexo de ataque à política em geral, de criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram ou estão na base do Governo, o que indica um novo modo de funcionamento do Estado de Direito. Nele a própria “ação faz o direito”, de forma alheia à Constituição. O bem e a decência passam a ser monopólios de uma parte alta burocracia do Ministério Público e de alguns Juízes e a esfera da política passa ser o reinado da indecência. A parte da oposição, que vinha se refestelando com estas ilegalidades, também começa ser atingida pelos mesmos métodos, ainda que hoje de maneira residual.
O Estadão, publicou uma matéria no dia 13 de fevereiro, assinada pelos jornalistas Fausto Macedo e Ricardo Brandt, com o procurador regional da República Carlos Fernando Santos Lima, onde este explicita que as operações devem continuar de maneira indefinida, porque ele não tem dúvidas de que a força tarefa atingiu “grande esquema de compra de apoio político partidário através do loteamento de cargos públicos”, originado de “altas esferas do Governo Federal”. Trata-se, portanto, não da busca de indivíduos ou grupos que, exercendo funções públicas, cometerem ilegalidades e exerceram as suas funções de maneira delituosa, com a devida personalização de inquéritos ou processos, mas de uma inculpação prévia e abstrata, de altas esferas de Governo, que preencheram cargos para ter “apoio político”. A investigação, portanto, é do processo político e o seu objeto é provar a responsabilidade das altas esferas do Governo Federal. Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política. Foi isso que Mussolini disse no final da sua Marcha sobre Roma: “A ação enterrou a filosofia”.
Então, na sua opinião, corremos o risco de estar desenvolvendo algo parecido com isso no Brasil de hoje?
Venho fazendo uma série de considerações, sem generalizar de que esta seja a posição majoritária entre os Juízes e Procuradores, apontando uma movimentação política, tanto na Magistratura como nas Procuradorias, que traz sinais evidentes de uma “exceção” não declarada, em curso no nosso país. Essa situação preparatória de uma cultura fascista se configura quando, para realizar um ato jurisdicional, alguém que é competente para realizá-lo assume uma posição de tal forma fora da ordem constitucional, que a sua fundamentação torna-se predominantemente política, e não é fundamentada predominantemente na lei, portanto, vem de fora do sistema normativo que se origina da Constituição.
O “político” e o “jurídico”, é claro, estão sempre integrados na ordem constitucional, mas quando o fundamento político imediato anula o sistema de garantias, que está presente na Constituição, temos um exemplo flagrante do início da exceção. Carl Schmitt, o grande teórico da exceção e simpatizante explícito do nazismo, que é forma de fascismo elevada ao cubo, defendia isso de maneira bem clara. No seu ensaio “O Führer protege o Direito”, escreveu: “O Führer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do perigo cria o direito sem mediações, por força da sua liderança e enquanto juiz Supremo”. Ora, o Estado, no capitalismo, tanto pode ser uma Estado Democrático, como pode um Estado Ditatorial. A criação do direito, na democracia, se dá precisamente por aquelas mediações, de que nos fala Schmitt, que estão na Constituição e que o Fürher ignora. Criar direito, sem elas, é exceção, ainda que não declarada.
Poderia citar alguns exemplos de práticas que apontariam para a criação de um estado de exceção no Direito e na ordem jurídica do país?
Quando algum integrante do Poder Judiciário, por exemplo, estimula, tolera, ou permite vazamento ilegal de informações em inquéritos, que prejudicam o direito de defesa de qualquer investigado, de qualquer partido, de qualquer instância de Governo, ou quando qualquer integrante daquele Poder, faz interpretações de normas de garantia, baseadas na posição política, condição de classe ou “raça” dos indivíduos, que estão sofrendo uma ação penal, sejam eles trabalhadores ou empresário, negros ou judeus, esta autoridade está entrando no terreno da exceção. Está criando discriminações que a lei não faz, seja relativamente ao direito de defesa, seja em relação à necessidade de manter prisões preventivas para obter delações que são premiadas. Assim, esta autoridade cria direito, portanto, sem mediações, como dizia Schmitt, e o faz diretamente pela opinião de quem decide, não pelo processo legislativo. Logo após a ascensão de Hitler isso foi comum, na Alemanha, mesmo sem modificação das leis democráticas da República de Weimar, que foram depois sendo revogadas. Na Itália, ocorreu a mesma coisa. Não contra os judeus, preferencialmente, mas ali contra todos os democratas que se opunham ao fascismo de Mussolini. Depois, em ambos os países, a exceção tornou-se regra. E a exceção foi tornada declarada e permanente.
No mesmo ensaio que mencionei, Schmitt diz, falando do colapso da República de Weimar e do direito histórico de Hitler fundar uma nova ordem – “refundar a República” – criticando quem busca a conciliação na democracia: “Mas o Führer leva as advertências da história alemã a sério. Isso lhe dá o direito e a força para fundar um novo Estado e uma nova ordem.” Quando determinados integrantes do Poder Judiciário estabelecem uma relação privilegiada com setores da mídia que, como sabe, é altamente partidarizada aqui no Brasil, liquidando com vidas e reputações sem qualquer chancela de decisões transitadas em julgado, a luta meritória contra corrupção no Estado – que, de resto, é de interesse de todas as pessoas honestas de todas as facções políticas – torna-se puro elemento da luta política, da luta de facções. Esta luta, inclusive vai permear, em maior ou menor grau, o Próprio Poder Judiciário. Não é de graça, portanto, que Schmitt vai além e registra, dando coerência a sua visão fascista: “O verdadeiro líder (Führer) sempre é também juiz”. De onde as autoridades do Poder Judiciário tiram a sua força para torcer o bastão, em direção à exceção? Da mídia monocórdia que se soma à indiferença de instituições clássicas, como a OAB, que tem primado pela ausência de opinião em quaisquer assuntos que lhe ponham contra este senso comum, organizado pela própria mídia.
Quais as possíveis consequências desse tipo de relação entre as esferas do Direito e da Política para a democracia brasileira?
Veja a gravidade da cultura política que está se formando. O Procurador Federal do Paraná informa, não da continuidade das ações e operações, em busca de pessoas que cometeram crimes, ocupando cargos nas Estatais e nos Fundos de Pensão, mas informa que é o processo político que passa a ser investigado. Isso vem na esteira da refundação da República pelo Ministério Público, sem as mediações de um processo Constituinte ou de uma reforma constitucional profunda. Repito: a investigação prometida não é de indivíduos ou grupos delituosos. O preenchimento de cargos, nas democracias – mais, ou menos restritas, mais, ou menos maduras – é feito pelos partidos vencedores nas eleições, seja na Colômbia, na Argentina, na França, nos Estados Unidos e o seu objetivo é, precisamente, refletindo o processo eleitoral, manter e ampliar o apoio político dos vencedores, para aplicar o Programa de Governo vencedor nas eleições, seja nas instâncias parlamentares, seja na base institucional e social que dá suporte ao Governo.
Se o Estado tem cargos de mais, ou de menos, na estrutura estatal, se as pessoas não são aptas para ocupar os cargos, se as pessoas que foram nomeadas são incompetentes ou cometem ilegalidades, os que as nomearam respondem, politicamente pelos excessos que cometerem, nas eleições; e os nomeados, que cometerem crimes, respondem como indivíduos ou como quadrilhas, nas ações penais correspondentes. Só nos regimes de partido único, as pessoas são nomeadas sem interesse em apoio político, porque -nestes regimes- os nomeados pelo Partido, que se confunde com o Estado e com o Governo, são seus apoiadores obrigatórios, sem direito de dissentir dos seus rumos. É uma mera meritocracia da fidelidade, estabelecida pelo poder ditatorial. Esta visão, de investigação em abstrato da política, manifestada pelo Procurador, é profundamente equivocada e é uma visão que tende para o fascismo.
Há quem ache um exagero citar o fascismo e o nazismo para falar da realidade política brasileira hoje…
O fascismo e o nazismo não são idênticos. São formas diferentes de totalitarismo, que se adequam às respectivas histórias nacionais, embora tenham traços comuns. O ódio às mediações e a intolerância com a lentidão da democracia são traços de ambos. As ditaduras – e também as democracias – não são iguais. Uma semelhança incontornável entre as democracias, é a pluralidade dos partidos, a criação do Direito pelas instâncias formais, previstas na Constituição, e as eleições periódicas. Uma semelhança clássica, entre as ditaduras, é a criação de algo que insistem em nominar como direito, por um poder concentrado, que se origina principalmente da força e da manipulação, não do consenso obtido no espaço aberto da política. Melhor seria chamar, o que nas ditaduras chamam de direito, de sistema de normas arbitrárias. Mas, há outra semelhança entre as ditaduras, que também é importante para a criação da sua (falsa) legitimidade. É o convencimento público da existência de um inimigo em abstrato, ao qual ela, a ditadura, se reporta para defender o staus quo, pela repressão seletiva, pela desmoralização pública pelos meios de comunicação ou pela simples violência, na sua forma mais embrutecida. É um inimigo abstrato, que pode ser criminalizado, como indivíduo ou como grupo associado, quando isso for necessário. É uma comunidade diferente, internamente, cultural, religiosa ou racial; é uma ideologia política configurada num movimento ou num partido; é um grupo inimigo do Estado, a serviço de outro país; são os traidores da nação ou do Partido único; são os corruptos, em geral, normalmente identificados como “os políticos”. Todos eles justificam a exceção.
Quando falo de um perigo fascista, que ronda a sociedade brasileira, não quero dizer que há possibilidade de se repetir, aqui, rapidamente um Mussolini ou um Hitler. Nem que exista uma conspiração organizada de algum poder burocrático ou social, capaz de implementar uma forma de fascismo, hoje. O que estou dizendo – e acho que as forças políticas do país deveriam discutir isso sem medo – é que os sintomas iniciais estão aí. Tanto Hitler como Mussolini eram figuras grotescas, cheias de rancor, que foram apropriados pela direita mais autoritária, para debelar crises, “acabar com a corrupção”, enfrentar a “decadência da política” e “refundar o Estado”. A situação se torna mais grave, quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta “exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura do Presidente Lula. Não pelos seus defeitos, que todos temos, mas pelas suas virtudes, que começaram a dar uma identidade social ao estado de Direito no Brasil.
“Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política. Quando procuradores federais emitem juízos antecipados sobre pessoas que estão sendo investigadas, ficam alheios a vazamentos de provas e defendem a manutenção de prisões preventivas para forçar delações premiadas, indicam um novo modo de funcionamento do Estado de Direito que pende para o fascismo”. As declarações são do ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, ao comentar o andamento das investigações da Operação Lava Jato e alguns procedimentos que vem sendo adotados por seus promotores no campo jurídico.
Em entrevista ao Sul21, Tarso Genro sustenta que o que está ocorrendo envolve um processo mais complexo de ataque à política em geral, de criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram ou estão na base do Governo, mas que começa a atingir a própria oposição. Neste “novo modo de funcionamento do Estado de Direito”, afirma, a “ação faz o direito”, de forma alheia à Constituição. E acrescenta: “A situação se torna mais grave, quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta “exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura do Presidente Lula”.
Nas últimas semanas, o senhor tem se manifestado em artigos e nas redes sociais contra algumas práticas que vem marcando o andamento das investigações da Operação Lava Jato e o contexto que as cercam. Quais são suas preocupações centrais sobre o que vem acontecendo?
Várias informações que transitam pela grande imprensa, todas elas laudatórias, dão conta de que Procuradores Federais se movimentam para “refundar” o Estado, emitem juízos antecipados sobre pessoas e grupos de pessoas que estão sendo inquiridos ou processados, ficam alheios a vazamentos de provas e diligências que inculpam, sem o contraditório, pessoas que são submetidas à execração pública, defendem a manutenção de prisões preventivas para forçar delações premiadas nitidamente dirigidas, informam previamente a alguns meios de comunicação a respeito dos próximos atos sob sua jurisdição, integrando-os na processualística penal e, desta forma, privatizam e midiatizam o processo penal, consequentemente, a Justiça Penal como um todo. O Estado-espetáculo vem funcionando com todas as caldeiras em temperatura máxima.
Na sua opinião, essas movimentações e práticas são circunstanciais ou apontam para algo mais de fundo?
Se as vítimas deste processo complexo fossem apenas os criminosos, poderia se dizer que se trata de uma deformação momentânea, recuperável. Tudo indica, porém, que se trata de um processo mais complexo de ataque à política em geral, de criminalização dos partidos, especialmente daqueles que estiveram ou estão na base do Governo, o que indica um novo modo de funcionamento do Estado de Direito. Nele a própria “ação faz o direito”, de forma alheia à Constituição. O bem e a decência passam a ser monopólios de uma parte alta burocracia do Ministério Público e de alguns Juízes e a esfera da política passa ser o reinado da indecência. A parte da oposição, que vinha se refestelando com estas ilegalidades, também começa ser atingida pelos mesmos métodos, ainda que hoje de maneira residual.
O Estadão, publicou uma matéria no dia 13 de fevereiro, assinada pelos jornalistas Fausto Macedo e Ricardo Brandt, com o procurador regional da República Carlos Fernando Santos Lima, onde este explicita que as operações devem continuar de maneira indefinida, porque ele não tem dúvidas de que a força tarefa atingiu “grande esquema de compra de apoio político partidário através do loteamento de cargos públicos”, originado de “altas esferas do Governo Federal”. Trata-se, portanto, não da busca de indivíduos ou grupos que, exercendo funções públicas, cometerem ilegalidades e exerceram as suas funções de maneira delituosa, com a devida personalização de inquéritos ou processos, mas de uma inculpação prévia e abstrata, de altas esferas de Governo, que preencheram cargos para ter “apoio político”. A investigação, portanto, é do processo político e o seu objeto é provar a responsabilidade das altas esferas do Governo Federal. Uma das características do fascismo é a criação do seu próprio sistema de direito, através da ação, através do movimento, não importando o que dizem as leis, o que regem as normas, o que garante a Constituição política. Foi isso que Mussolini disse no final da sua Marcha sobre Roma: “A ação enterrou a filosofia”.
Então, na sua opinião, corremos o risco de estar desenvolvendo algo parecido com isso no Brasil de hoje?
Venho fazendo uma série de considerações, sem generalizar de que esta seja a posição majoritária entre os Juízes e Procuradores, apontando uma movimentação política, tanto na Magistratura como nas Procuradorias, que traz sinais evidentes de uma “exceção” não declarada, em curso no nosso país. Essa situação preparatória de uma cultura fascista se configura quando, para realizar um ato jurisdicional, alguém que é competente para realizá-lo assume uma posição de tal forma fora da ordem constitucional, que a sua fundamentação torna-se predominantemente política, e não é fundamentada predominantemente na lei, portanto, vem de fora do sistema normativo que se origina da Constituição.
O “político” e o “jurídico”, é claro, estão sempre integrados na ordem constitucional, mas quando o fundamento político imediato anula o sistema de garantias, que está presente na Constituição, temos um exemplo flagrante do início da exceção. Carl Schmitt, o grande teórico da exceção e simpatizante explícito do nazismo, que é forma de fascismo elevada ao cubo, defendia isso de maneira bem clara. No seu ensaio “O Führer protege o Direito”, escreveu: “O Führer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do perigo cria o direito sem mediações, por força da sua liderança e enquanto juiz Supremo”. Ora, o Estado, no capitalismo, tanto pode ser uma Estado Democrático, como pode um Estado Ditatorial. A criação do direito, na democracia, se dá precisamente por aquelas mediações, de que nos fala Schmitt, que estão na Constituição e que o Fürher ignora. Criar direito, sem elas, é exceção, ainda que não declarada.
Poderia citar alguns exemplos de práticas que apontariam para a criação de um estado de exceção no Direito e na ordem jurídica do país?
Quando algum integrante do Poder Judiciário, por exemplo, estimula, tolera, ou permite vazamento ilegal de informações em inquéritos, que prejudicam o direito de defesa de qualquer investigado, de qualquer partido, de qualquer instância de Governo, ou quando qualquer integrante daquele Poder, faz interpretações de normas de garantia, baseadas na posição política, condição de classe ou “raça” dos indivíduos, que estão sofrendo uma ação penal, sejam eles trabalhadores ou empresário, negros ou judeus, esta autoridade está entrando no terreno da exceção. Está criando discriminações que a lei não faz, seja relativamente ao direito de defesa, seja em relação à necessidade de manter prisões preventivas para obter delações que são premiadas. Assim, esta autoridade cria direito, portanto, sem mediações, como dizia Schmitt, e o faz diretamente pela opinião de quem decide, não pelo processo legislativo. Logo após a ascensão de Hitler isso foi comum, na Alemanha, mesmo sem modificação das leis democráticas da República de Weimar, que foram depois sendo revogadas. Na Itália, ocorreu a mesma coisa. Não contra os judeus, preferencialmente, mas ali contra todos os democratas que se opunham ao fascismo de Mussolini. Depois, em ambos os países, a exceção tornou-se regra. E a exceção foi tornada declarada e permanente.
No mesmo ensaio que mencionei, Schmitt diz, falando do colapso da República de Weimar e do direito histórico de Hitler fundar uma nova ordem – “refundar a República” – criticando quem busca a conciliação na democracia: “Mas o Führer leva as advertências da história alemã a sério. Isso lhe dá o direito e a força para fundar um novo Estado e uma nova ordem.” Quando determinados integrantes do Poder Judiciário estabelecem uma relação privilegiada com setores da mídia que, como sabe, é altamente partidarizada aqui no Brasil, liquidando com vidas e reputações sem qualquer chancela de decisões transitadas em julgado, a luta meritória contra corrupção no Estado – que, de resto, é de interesse de todas as pessoas honestas de todas as facções políticas – torna-se puro elemento da luta política, da luta de facções. Esta luta, inclusive vai permear, em maior ou menor grau, o Próprio Poder Judiciário. Não é de graça, portanto, que Schmitt vai além e registra, dando coerência a sua visão fascista: “O verdadeiro líder (Führer) sempre é também juiz”. De onde as autoridades do Poder Judiciário tiram a sua força para torcer o bastão, em direção à exceção? Da mídia monocórdia que se soma à indiferença de instituições clássicas, como a OAB, que tem primado pela ausência de opinião em quaisquer assuntos que lhe ponham contra este senso comum, organizado pela própria mídia.
Quais as possíveis consequências desse tipo de relação entre as esferas do Direito e da Política para a democracia brasileira?
Veja a gravidade da cultura política que está se formando. O Procurador Federal do Paraná informa, não da continuidade das ações e operações, em busca de pessoas que cometeram crimes, ocupando cargos nas Estatais e nos Fundos de Pensão, mas informa que é o processo político que passa a ser investigado. Isso vem na esteira da refundação da República pelo Ministério Público, sem as mediações de um processo Constituinte ou de uma reforma constitucional profunda. Repito: a investigação prometida não é de indivíduos ou grupos delituosos. O preenchimento de cargos, nas democracias – mais, ou menos restritas, mais, ou menos maduras – é feito pelos partidos vencedores nas eleições, seja na Colômbia, na Argentina, na França, nos Estados Unidos e o seu objetivo é, precisamente, refletindo o processo eleitoral, manter e ampliar o apoio político dos vencedores, para aplicar o Programa de Governo vencedor nas eleições, seja nas instâncias parlamentares, seja na base institucional e social que dá suporte ao Governo.
Se o Estado tem cargos de mais, ou de menos, na estrutura estatal, se as pessoas não são aptas para ocupar os cargos, se as pessoas que foram nomeadas são incompetentes ou cometem ilegalidades, os que as nomearam respondem, politicamente pelos excessos que cometerem, nas eleições; e os nomeados, que cometerem crimes, respondem como indivíduos ou como quadrilhas, nas ações penais correspondentes. Só nos regimes de partido único, as pessoas são nomeadas sem interesse em apoio político, porque -nestes regimes- os nomeados pelo Partido, que se confunde com o Estado e com o Governo, são seus apoiadores obrigatórios, sem direito de dissentir dos seus rumos. É uma mera meritocracia da fidelidade, estabelecida pelo poder ditatorial. Esta visão, de investigação em abstrato da política, manifestada pelo Procurador, é profundamente equivocada e é uma visão que tende para o fascismo.
Há quem ache um exagero citar o fascismo e o nazismo para falar da realidade política brasileira hoje…
O fascismo e o nazismo não são idênticos. São formas diferentes de totalitarismo, que se adequam às respectivas histórias nacionais, embora tenham traços comuns. O ódio às mediações e a intolerância com a lentidão da democracia são traços de ambos. As ditaduras – e também as democracias – não são iguais. Uma semelhança incontornável entre as democracias, é a pluralidade dos partidos, a criação do Direito pelas instâncias formais, previstas na Constituição, e as eleições periódicas. Uma semelhança clássica, entre as ditaduras, é a criação de algo que insistem em nominar como direito, por um poder concentrado, que se origina principalmente da força e da manipulação, não do consenso obtido no espaço aberto da política. Melhor seria chamar, o que nas ditaduras chamam de direito, de sistema de normas arbitrárias. Mas, há outra semelhança entre as ditaduras, que também é importante para a criação da sua (falsa) legitimidade. É o convencimento público da existência de um inimigo em abstrato, ao qual ela, a ditadura, se reporta para defender o staus quo, pela repressão seletiva, pela desmoralização pública pelos meios de comunicação ou pela simples violência, na sua forma mais embrutecida. É um inimigo abstrato, que pode ser criminalizado, como indivíduo ou como grupo associado, quando isso for necessário. É uma comunidade diferente, internamente, cultural, religiosa ou racial; é uma ideologia política configurada num movimento ou num partido; é um grupo inimigo do Estado, a serviço de outro país; são os traidores da nação ou do Partido único; são os corruptos, em geral, normalmente identificados como “os políticos”. Todos eles justificam a exceção.
Quando falo de um perigo fascista, que ronda a sociedade brasileira, não quero dizer que há possibilidade de se repetir, aqui, rapidamente um Mussolini ou um Hitler. Nem que exista uma conspiração organizada de algum poder burocrático ou social, capaz de implementar uma forma de fascismo, hoje. O que estou dizendo – e acho que as forças políticas do país deveriam discutir isso sem medo – é que os sintomas iniciais estão aí. Tanto Hitler como Mussolini eram figuras grotescas, cheias de rancor, que foram apropriados pela direita mais autoritária, para debelar crises, “acabar com a corrupção”, enfrentar a “decadência da política” e “refundar o Estado”. A situação se torna mais grave, quando se vê que a ampla maioria da mídia tradicional, que é de propriedade de poucas famílias muito ricas, dá um apoio praticamente incondicional a esta “exceção” não declarada, que tem, hoje, no seu centro, a destruição da figura do Presidente Lula. Não pelos seus defeitos, que todos temos, mas pelas suas virtudes, que começaram a dar uma identidade social ao estado de Direito no Brasil.
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