No dia 22 de dezembro de 2016, às vésperas do natal, o executivo federal enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória (MP) 759, que veio a ser sancionada pelo presidente Michel Temer no dia 11 de julho deste ano. Conforme a descrição do próprio texto da MP (agora Lei n. 13.465), “dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito na Amazônia Legal, institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União, e dá outras providências”.
Não à toa, foi apelidada como a MP da Grilagem.
A começar pelo rompimento dos regimes jurídicos de acesso à terra construídos com a participação popular, a MP deixa diversos itens para futuras regulamentações, que deverão ser disciplinadas por ‘atos’ do Poder Executivo. Em relação à regularização fundiária rural, estabelece a ampliação do prazo para a ‘regularização’ das invasões e grilagens das terras públicas, aceitando inclusive o desmatamento como prova de ocupação.
No que diz respeito à Amazônia, a MP 759 altera os critérios de regularização fundiária do Programa Terra Legal (Lei n. 11.952/2009) e passa a permitir a regularização de terras de proprietários com mais de um imóvel, bem como de ocupantes ao período posterior a 2004, sem cadeia possessória contínua. Outras medidas graves são a permissão da comercialização dos lotes da reforma agrária, medida essa que visa a ampliar – e aquecer – o mercado de terras, podendo gerar flutuações de preços com forte potencial gentrificador nos espaços rurais.
Está prevista ainda a desoneração do Incra das obrigações para com as famílias assentadas, por meio de alterações nas leis n. 8.629/1993 (Lei da Reforma Agrária) e n. 13.001/2014 (que trata dos créditos para assentados); e a transferência da seleção das famílias beneficiárias da reforma agrária para os municípios, enfraquecendo assim os movimentos sociais do campo e submetendo as populações rurais a pressões ainda maiores das oligarquias agrárias locais, adversárias históricas da política de reforma agrária.
No que se refere às áreas urbanas, a MP cria tratamento desigual entre ricos e pobres e flexibiliza a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão. Extingue critérios de definição da condição de áreas de interesse social e desobriga o poder público do investimento prioritário em infraestrutura e requalificação urbanística nessas áreas, bem como revoga as obrigações de loteadores irregulares e grileiros de terras públicas de adotarem medidas corretivas, repassando o encargo ao Estado. Ver a cartade movimentos e organizações sobre a MP.
Qual o sentido da urgência para um conjunto de medidas e alterações legais tão radical? A construção de nossa política fundiária rural e urbana levou décadas e a aprovação de novos marcos legais esteve sempre acompanhada de amplos debates públicos. Foi assim com o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964); com a Lei Agrária (Lei n. 8.629/1993), que regulamentou dispositivos constitucionais referentes à terra, sua função social e possibilidades de desapropriação; com a Lei n. 6.766/1979, conhecida como a lei do parcelamento do solo urbano, que abriu caminho para a regularização dos loteamentos populares das periferias urbanas; com o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), que regularizou o Capítulo da Política Urbana, da Constituição Federal de 1988; para citarmos somente algumas das legislações no campo fundiário.
Por que então uma proposta com conteúdos tão variados quanto drásticos via Medida Provisória – aprovada em menos de sete meses de tramitação no Congresso? Parece-nos que a resposta não pode ser outra que não avanço da agenda golpista no país. Cada vez mais, a caracterização golpista do processo de impeachment da presidenta Dilma torna-se mais evidente. O golpe está na mudança da agenda, na adoção do programa político derrotado nas urnas dos quatro últimos pleitos nacionais.
O caráter reacionário das contrarreformas propostas pelo novo governo e a forma avassaladora com que as mesmas tramitam no Congresso somente têm sido viáveis sob esta condição de exceção democrática na qual nos encontramos hoje. Nenhum governo eleito, com o mínimo de sensibilidade ou pretensão de reeleição, aceitaria impor tamanho retrocesso social à sua população. Vivemos uma situação em que o governo não apenas tolhe a discussão pública e democrática das contrarreformas, como parece ter perdido o pudor (ou o controle) em barganhá-las – aí sim, publicamente – com parlamentares em troca de sua sobrevivência política.
Nessa seara, a bancada ruralista, que compreende hoje mais de 200 deputados (são mais de 215 os integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária), tem sido a grande beneficiária desse processo. Há que se relembrar que naquele fatídico e patético 17 de abril de 2016, quando da votação do impeachment na Câmara, poucas foram as pautas políticas mobilizadas nos discursos favoráveis à saída da presidenta Dilma. A maior parte dos deputados evocou a população de seus estados e municípios, suas crenças, suas famílias e pets… mas o agro foi evocado, talvez a única pauta política – ao lado do discurso retórico do combate à corrupção.
De lá para cá, a atuação coesa da bancada ruralista tem lhes garantido a proposição e a aprovação de medidas há muito esperadas e de outras tantas que nem sequer estavam no horizonte dos ruralistas. Nos referimos aqui à própria MP 759, à lei da terceirização (que tem impactos sobre o trabalho a agricultura); à proposta de reforma da previdência, que, na prática, acaba com a previdência rural; à proposta de reforma trabalhista rural, que não teve constrangimento em autorizar a remuneração do trabalho na forma de habitação e comida; à extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; ao indiciamento de mais de 120 pessoas no relatório final de maio/2017 da CPI Funai/Incra, dentre elas antropólogos e professores universitários (12); procuradores federais (16); advogados da União (2); membro da Igreja Católica, em especial do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) (14); servidores da Funai e do Incra (13); trabalhadores rurais (4).
O presidente Temer tem conseguido se sustentar, a despeito de sua (aparente) fragilidade. Fragilidade essa que contrasta enormemente com a força da agenda conservadora que ele tem se empenhado em fazer avançar. Não sem custos políticos e principalmente financeiros altíssimos, que serão pagos pela mesma população trabalhadora e batalhadora que é prejudicada pelas medidas e contrarreformas em curso. Não sem custos à soberania nacional, à segurança alimentar, hídrica e energética do país e a despeito do aumento da concentração das terras, da pobreza e da desigualdade.
Até onde isso vai dependerá em grande medida de nossa capacidade de mobilização nas ruas e de formulação e viabilização de alternativas.
Não à toa, foi apelidada como a MP da Grilagem.
A começar pelo rompimento dos regimes jurídicos de acesso à terra construídos com a participação popular, a MP deixa diversos itens para futuras regulamentações, que deverão ser disciplinadas por ‘atos’ do Poder Executivo. Em relação à regularização fundiária rural, estabelece a ampliação do prazo para a ‘regularização’ das invasões e grilagens das terras públicas, aceitando inclusive o desmatamento como prova de ocupação.
No que diz respeito à Amazônia, a MP 759 altera os critérios de regularização fundiária do Programa Terra Legal (Lei n. 11.952/2009) e passa a permitir a regularização de terras de proprietários com mais de um imóvel, bem como de ocupantes ao período posterior a 2004, sem cadeia possessória contínua. Outras medidas graves são a permissão da comercialização dos lotes da reforma agrária, medida essa que visa a ampliar – e aquecer – o mercado de terras, podendo gerar flutuações de preços com forte potencial gentrificador nos espaços rurais.
Está prevista ainda a desoneração do Incra das obrigações para com as famílias assentadas, por meio de alterações nas leis n. 8.629/1993 (Lei da Reforma Agrária) e n. 13.001/2014 (que trata dos créditos para assentados); e a transferência da seleção das famílias beneficiárias da reforma agrária para os municípios, enfraquecendo assim os movimentos sociais do campo e submetendo as populações rurais a pressões ainda maiores das oligarquias agrárias locais, adversárias históricas da política de reforma agrária.
No que se refere às áreas urbanas, a MP cria tratamento desigual entre ricos e pobres e flexibiliza a regularização de loteamentos e condomínios fechados de alto padrão. Extingue critérios de definição da condição de áreas de interesse social e desobriga o poder público do investimento prioritário em infraestrutura e requalificação urbanística nessas áreas, bem como revoga as obrigações de loteadores irregulares e grileiros de terras públicas de adotarem medidas corretivas, repassando o encargo ao Estado. Ver a cartade movimentos e organizações sobre a MP.
Qual o sentido da urgência para um conjunto de medidas e alterações legais tão radical? A construção de nossa política fundiária rural e urbana levou décadas e a aprovação de novos marcos legais esteve sempre acompanhada de amplos debates públicos. Foi assim com o Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/1964); com a Lei Agrária (Lei n. 8.629/1993), que regulamentou dispositivos constitucionais referentes à terra, sua função social e possibilidades de desapropriação; com a Lei n. 6.766/1979, conhecida como a lei do parcelamento do solo urbano, que abriu caminho para a regularização dos loteamentos populares das periferias urbanas; com o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), que regularizou o Capítulo da Política Urbana, da Constituição Federal de 1988; para citarmos somente algumas das legislações no campo fundiário.
Por que então uma proposta com conteúdos tão variados quanto drásticos via Medida Provisória – aprovada em menos de sete meses de tramitação no Congresso? Parece-nos que a resposta não pode ser outra que não avanço da agenda golpista no país. Cada vez mais, a caracterização golpista do processo de impeachment da presidenta Dilma torna-se mais evidente. O golpe está na mudança da agenda, na adoção do programa político derrotado nas urnas dos quatro últimos pleitos nacionais.
O caráter reacionário das contrarreformas propostas pelo novo governo e a forma avassaladora com que as mesmas tramitam no Congresso somente têm sido viáveis sob esta condição de exceção democrática na qual nos encontramos hoje. Nenhum governo eleito, com o mínimo de sensibilidade ou pretensão de reeleição, aceitaria impor tamanho retrocesso social à sua população. Vivemos uma situação em que o governo não apenas tolhe a discussão pública e democrática das contrarreformas, como parece ter perdido o pudor (ou o controle) em barganhá-las – aí sim, publicamente – com parlamentares em troca de sua sobrevivência política.
Nessa seara, a bancada ruralista, que compreende hoje mais de 200 deputados (são mais de 215 os integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária), tem sido a grande beneficiária desse processo. Há que se relembrar que naquele fatídico e patético 17 de abril de 2016, quando da votação do impeachment na Câmara, poucas foram as pautas políticas mobilizadas nos discursos favoráveis à saída da presidenta Dilma. A maior parte dos deputados evocou a população de seus estados e municípios, suas crenças, suas famílias e pets… mas o agro foi evocado, talvez a única pauta política – ao lado do discurso retórico do combate à corrupção.
De lá para cá, a atuação coesa da bancada ruralista tem lhes garantido a proposição e a aprovação de medidas há muito esperadas e de outras tantas que nem sequer estavam no horizonte dos ruralistas. Nos referimos aqui à própria MP 759, à lei da terceirização (que tem impactos sobre o trabalho a agricultura); à proposta de reforma da previdência, que, na prática, acaba com a previdência rural; à proposta de reforma trabalhista rural, que não teve constrangimento em autorizar a remuneração do trabalho na forma de habitação e comida; à extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário; ao indiciamento de mais de 120 pessoas no relatório final de maio/2017 da CPI Funai/Incra, dentre elas antropólogos e professores universitários (12); procuradores federais (16); advogados da União (2); membro da Igreja Católica, em especial do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) (14); servidores da Funai e do Incra (13); trabalhadores rurais (4).
O presidente Temer tem conseguido se sustentar, a despeito de sua (aparente) fragilidade. Fragilidade essa que contrasta enormemente com a força da agenda conservadora que ele tem se empenhado em fazer avançar. Não sem custos políticos e principalmente financeiros altíssimos, que serão pagos pela mesma população trabalhadora e batalhadora que é prejudicada pelas medidas e contrarreformas em curso. Não sem custos à soberania nacional, à segurança alimentar, hídrica e energética do país e a despeito do aumento da concentração das terras, da pobreza e da desigualdade.
Até onde isso vai dependerá em grande medida de nossa capacidade de mobilização nas ruas e de formulação e viabilização de alternativas.
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