Por Iara Moura, na revista CartaCapital:
A estreia da 9ª edição do reality A Fazenda, pela Record, emissora do bispo Edir Macedo, ocorreu nesta terça-feira (12). O burburinho já comum em torno do fato, alimentado por anúncios da própria emissora em seus veículos e por reportagens, artigos e discussões em fóruns da internet, foi potencializado pela notícia de que dois dos 16 participantes, Marcos Harter e Yuri Fernandes, protagonizaram episódios públicos de violência contra a mulher.
O primeiro chegou a ser expulso da casa, após diversas agressões contra sua parceira na edição deste ano do BBB que culminou com a intervenção da Polícia Federal. Yuri, por sua vez, foi detido sob acusação de bater na então namorada, Angela Sousa, na época dançarina do Domingão do Faustão.
No episódio que levou Marcos a ser expulso ressaltamos, neste blog, a necessidade de não só responsabilizar o agressor, mas também a própria TV Globo, que postergou a expulsão do participante, semana após semana, enquanto lucrava com a “polêmica” gerada pelo relacionamento abusivo, acompanhado todos os dias por milhares de brasileiras e brasileiros. A Rede Mulher e Mídia, articulação da qual o Intervozes faz parte, chegou a solicitar a intervenção do Ministério Público Federal na responsabilização da emissora neste e em outros casos.
A banalização da violência na televisão brasileira não é tema novo nem privilégio dos realities. Porém, tais programas, justamente por se basearem num jogo de “imitação da realidade”, são espaços por excelência de reprodução do machismo, do racismo, da LGBTfobia e de outras opressões. O problema, neste caso, reside justamente na maneira de lidar com estas questões.
Como era de se esperar, em sua busca incansável por audiência e lucro, as emissoras não têm tido uma atitude ativa no sentido de prevenir e combater violações de direitos humanos. E tal atitude não seria um favor ou uma ação de caridade cristã por da parte das empresas: é previsão claramente colocada na Constituição Federal e em diversos pactos e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
A própria Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8º, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.
Ao contrário, num jogo de regras próprias que operam a despeito dos princípios constitucionais e legais, as emissoras dão uma roupagem sensacionalista às opressões, alimentando uma atmosfera que explora a violência como “polêmica” e, pior, eleva agressores ao status de celebridade. É muito simbólico, e até jocoso, que a 9ª temporada de A Fazenda se intitule “Nova chance”. Que mensagem nada subliminar tal atitude da emissora contém?
Em A Fazenda, Marcos Harter tem encontrado espaço e audiência para se defender da acusação de agressão e ainda acusar a ex-parceira, Emilly, de tê-lo usado para vencer o BBB. O argumento é de que a mulher teria se vitimizado: “Fiquei com medo de ela inventar que eu a estuprei”, falou Marcos no episódio que foi ao ar nesta semana.
O pesquisador Bruno Campanella, em livro que trata do BBB, ressalta que há, por parte das emissoras, a produção de uma atmosfera de cotidiano nesse tipo de programas que mescla as ideias de realidade, ficção e jogo e que, em sua relação com as audiências, constituem valores morais muito caros à sociedade atual.
Entre eles, estão o esmaecimento da divisão entre a esfera pública e a privada, a valorização do comum, o desejo de retorno ao real e a premiação pelo mérito. Assim, conceder aos agressores uma segunda chance de acesso aos programas não diz respeito somente à possibilidade de ganhar o prêmio em dinheiro, mas simboliza uma nova oportunidade de que atuem e se visibilizem enquanto sujeitos políticos e midiáticos, legitimando atitudes de machismo e violência.
Nos diversos episódios em que a sociedade, os/as telespectadores/as e os movimentos feministas cobraram respostas das emissoras quando das violências vivenciadas e transmitidas nesses programas, em geral não houve retorno a contento. Por um lado, as emissoras buscam ignorar a todo custo as denúncias, os pedidos de direito de resposta, os escrachos online e offline e, por outro, seguem argumentando que não têm parcela de culpa nas violações de direitos humanos cometidas em seus estúdios e veiculadas por suas antenas.
Tais violações não se restringem aos direitos das mulheres. No reality A Casa, também da TV Record, assistimos a uma competição entre 100 participantes que são colocados numa casa de 120 metros quadrados, com infraestrutura e espaço para uma família de quatro pessoas e que devem sobreviver em condições degradantes e humilhantes com falta de lugar para dormir, comida escassa e sem condições mínimas de higiene.
Quando se fala desse “tirar o corpo fora” por parte das emissoras, experiências de outros países apontam no sentido contrário. Na França, por exemplo, em 2011, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), após realizar dezenas de audiências públicas sobre o tema, lançou um documento com recomendações às emissoras relacionadas à proteção dos direitos humanos no contexto dos realities.
O documento solicita aos produtores dos programas cuidados na seleção dos/as participantes que incluam acompanhamento médico e psicológico antes, durante e depois do programa; encoraja a identificação da faixa etária indicada; lembra que, qualquer que seja o conceito do programa, os/as participantes não deverão ser colocados em situações degradantes ou que os/as levem a adotar ou se submeter a atitudes humilhantes; pede que os contratos com os/as participantes fiquem sujeitos à análise do CSA nas questões de sua competência.
Além disso, solicita que “os produtores e diretores reflitam sobre a sua responsabilidade social e ética em relação aos valores que veiculam os reality shows, susceptíveis de serem assistidos pelo público jovem, qualquer que seja a faixa etária definida, e que podem encontrar eco particularmente forte na internet, notadamente nos espaços comunitários (fóruns, blogs, redes sociais...) onde os conteúdos são menos regulados”.
No Brasil, diante da ausência de um órgão regulador efetivo para analisar o conteúdo da programação veiculada nos meios de comunicação de massa – que, no caso do rádio e da TV são concessões públicas – a quem cabe definir junto às emissoras as regras do jogo? Vale tudo? A que situação extrema esperaremos chegar – além de um estupro presumido, da convivência forçada com um agressor e com um abusador de adolescente, da submissão a rotinas e provas humilhantes e degradantes – para tomar uma atitude?
* Iara Moura é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes.
A estreia da 9ª edição do reality A Fazenda, pela Record, emissora do bispo Edir Macedo, ocorreu nesta terça-feira (12). O burburinho já comum em torno do fato, alimentado por anúncios da própria emissora em seus veículos e por reportagens, artigos e discussões em fóruns da internet, foi potencializado pela notícia de que dois dos 16 participantes, Marcos Harter e Yuri Fernandes, protagonizaram episódios públicos de violência contra a mulher.
O primeiro chegou a ser expulso da casa, após diversas agressões contra sua parceira na edição deste ano do BBB que culminou com a intervenção da Polícia Federal. Yuri, por sua vez, foi detido sob acusação de bater na então namorada, Angela Sousa, na época dançarina do Domingão do Faustão.
No episódio que levou Marcos a ser expulso ressaltamos, neste blog, a necessidade de não só responsabilizar o agressor, mas também a própria TV Globo, que postergou a expulsão do participante, semana após semana, enquanto lucrava com a “polêmica” gerada pelo relacionamento abusivo, acompanhado todos os dias por milhares de brasileiras e brasileiros. A Rede Mulher e Mídia, articulação da qual o Intervozes faz parte, chegou a solicitar a intervenção do Ministério Público Federal na responsabilização da emissora neste e em outros casos.
A banalização da violência na televisão brasileira não é tema novo nem privilégio dos realities. Porém, tais programas, justamente por se basearem num jogo de “imitação da realidade”, são espaços por excelência de reprodução do machismo, do racismo, da LGBTfobia e de outras opressões. O problema, neste caso, reside justamente na maneira de lidar com estas questões.
Como era de se esperar, em sua busca incansável por audiência e lucro, as emissoras não têm tido uma atitude ativa no sentido de prevenir e combater violações de direitos humanos. E tal atitude não seria um favor ou uma ação de caridade cristã por da parte das empresas: é previsão claramente colocada na Constituição Federal e em diversos pactos e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
A própria Lei Maria da Penha, em vigor desde 2006, estabelece como tipos de violência contra a mulher a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. E determina, em seu artigo 8º, inciso III, “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.
Ao contrário, num jogo de regras próprias que operam a despeito dos princípios constitucionais e legais, as emissoras dão uma roupagem sensacionalista às opressões, alimentando uma atmosfera que explora a violência como “polêmica” e, pior, eleva agressores ao status de celebridade. É muito simbólico, e até jocoso, que a 9ª temporada de A Fazenda se intitule “Nova chance”. Que mensagem nada subliminar tal atitude da emissora contém?
Em A Fazenda, Marcos Harter tem encontrado espaço e audiência para se defender da acusação de agressão e ainda acusar a ex-parceira, Emilly, de tê-lo usado para vencer o BBB. O argumento é de que a mulher teria se vitimizado: “Fiquei com medo de ela inventar que eu a estuprei”, falou Marcos no episódio que foi ao ar nesta semana.
O pesquisador Bruno Campanella, em livro que trata do BBB, ressalta que há, por parte das emissoras, a produção de uma atmosfera de cotidiano nesse tipo de programas que mescla as ideias de realidade, ficção e jogo e que, em sua relação com as audiências, constituem valores morais muito caros à sociedade atual.
Entre eles, estão o esmaecimento da divisão entre a esfera pública e a privada, a valorização do comum, o desejo de retorno ao real e a premiação pelo mérito. Assim, conceder aos agressores uma segunda chance de acesso aos programas não diz respeito somente à possibilidade de ganhar o prêmio em dinheiro, mas simboliza uma nova oportunidade de que atuem e se visibilizem enquanto sujeitos políticos e midiáticos, legitimando atitudes de machismo e violência.
Nos diversos episódios em que a sociedade, os/as telespectadores/as e os movimentos feministas cobraram respostas das emissoras quando das violências vivenciadas e transmitidas nesses programas, em geral não houve retorno a contento. Por um lado, as emissoras buscam ignorar a todo custo as denúncias, os pedidos de direito de resposta, os escrachos online e offline e, por outro, seguem argumentando que não têm parcela de culpa nas violações de direitos humanos cometidas em seus estúdios e veiculadas por suas antenas.
Tais violações não se restringem aos direitos das mulheres. No reality A Casa, também da TV Record, assistimos a uma competição entre 100 participantes que são colocados numa casa de 120 metros quadrados, com infraestrutura e espaço para uma família de quatro pessoas e que devem sobreviver em condições degradantes e humilhantes com falta de lugar para dormir, comida escassa e sem condições mínimas de higiene.
Quando se fala desse “tirar o corpo fora” por parte das emissoras, experiências de outros países apontam no sentido contrário. Na França, por exemplo, em 2011, o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), após realizar dezenas de audiências públicas sobre o tema, lançou um documento com recomendações às emissoras relacionadas à proteção dos direitos humanos no contexto dos realities.
O documento solicita aos produtores dos programas cuidados na seleção dos/as participantes que incluam acompanhamento médico e psicológico antes, durante e depois do programa; encoraja a identificação da faixa etária indicada; lembra que, qualquer que seja o conceito do programa, os/as participantes não deverão ser colocados em situações degradantes ou que os/as levem a adotar ou se submeter a atitudes humilhantes; pede que os contratos com os/as participantes fiquem sujeitos à análise do CSA nas questões de sua competência.
Além disso, solicita que “os produtores e diretores reflitam sobre a sua responsabilidade social e ética em relação aos valores que veiculam os reality shows, susceptíveis de serem assistidos pelo público jovem, qualquer que seja a faixa etária definida, e que podem encontrar eco particularmente forte na internet, notadamente nos espaços comunitários (fóruns, blogs, redes sociais...) onde os conteúdos são menos regulados”.
No Brasil, diante da ausência de um órgão regulador efetivo para analisar o conteúdo da programação veiculada nos meios de comunicação de massa – que, no caso do rádio e da TV são concessões públicas – a quem cabe definir junto às emissoras as regras do jogo? Vale tudo? A que situação extrema esperaremos chegar – além de um estupro presumido, da convivência forçada com um agressor e com um abusador de adolescente, da submissão a rotinas e provas humilhantes e degradantes – para tomar uma atitude?
* Iara Moura é jornalista, mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense e integra o Conselho Diretor do Coletivo Intervozes.
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