Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Três anos depois que o craque Daniel Alves comeu uma banana para manifestar seu repúdio ao racismo durante um jogo de futebol na Espanha, a presidente do STF Carmen Lúcia deu uma preocupante marcha-a ré no esforço dos brasileiros e brasileiras para construir uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito", como define o artigo 5 da Constituição de 1988.
A ministra foi chamada a dar palavra final numa disputa particularmente instrutiva entre os organizadores do Enem, que defendiam nota zero para redações que "desrespeitem os direitos humanos" e uma ação do Ação Escola Sem Partido, para quem a regra não passa de uma tentativa de impor "aos candidatos, respeito ao politicamente correto". Numa concessão óbvia aos tempos de conservadorismo em alta, Carmen Lucia decidiu a favor da Escola Sem Partido e escreveu: "não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal".
Os aplausos da família Bolsonaro pela decisão da ministra não devem espantar ninguém.
Basta entender sobre o debate real. Chamada a dar sua opinião numa questão que envolve um ponto de passagem obrigatório na formação das novas gerações de brasileiros, que através da escola elaboram uma visão de mundo e de país que pretendem construir, em nome da liberdade de expressão a presidente do STF liberou manifestações de racismo e de preconceito contra mulheres e gays.
Também é absurdo uma ministra do STF justificar a decisão pelo receio em estimular a "intolerância estatal" contra manifestações de preconceito. O problema brasileiro nessa matéria é oposto. Envolve um comportamento excessivamente tolerante por parte do Estado.
Num país onde a lei 9459/97 prevê pena de 1 a 3 anos de prisão pelo "crime de praticar, induzir, ou incitar o preconceito de raça, cor, etnia ou procedência nacional", as denúncias de racismo costumam perder-se num labirinto de má vontade e impunidade. Todos sabemos que, quando envolve o massacre de jovens pobres e pretos pela violência das Polícias Militares, o panorama é ainda mais grave e atinge o nível escabroso.
Alvo de um esforço legislativo particular na última década, que incluiu a classificação do feminicídio como crime hediondo, a violência e o preconceito contra a mulher permanecem em seu drama e sua dor. Ao liberar a intolerância nas redações de nossa juventude -- na disputa por uma vaga nas faculdades, o que já indica um posição de influência em nossa hierarquia social no futuro -- a ministra deu um péssimo exemplo. Embora tenha sido aprovada em 1997, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a lei 9459 possui um agravante que pode ser de grande utilidade nos dias atuais, onde o discurso do ódio dá o braço à intolerância política. Caso o discurso do preconceito utilize a "cruz suástica para fins de propaganda nazista", e for praticado "por meios de comunicação social ou publicidade de qualquer espécie," a reclusão prevista sobe para 2 e 5 anos.
Com sua decisão, a presidente do STF flexibilizou noções que não podem ser enfraquecidas. Na dúvida, imagine o estudante que, capaz de articular frases e palavras, consegue tirar nota 10 num texto racista. Ou num elogio ao estupro.
Não se trata de proibir o aluno de escrever -- nem de censurar, o que seria uma afronta à Constituinte. A nota zero não tem caráter eliminatório. Pode implicar, no máximo, numa perda de 200 pontos num total de 1000. Uma punição instrutiva e necessária, vamos concordar.
Estamos falando de um exame oficial, num país onde a democracia deixou de ser uma questão em discussão. Não pode ser vista como um debate em aberto nem uma opinião entre tantas outras, ainda mais num momento de crise como o atual. O zero, assim, afirma uma verdade sempre necessária, sobre a importância de respeitar os direitos do outro como um igual -- base do mundo em que o país decidiu viver na Constituição de 1988. Alguém vai negar que esta é uma discussão essencial de nosso tempo?
Como percurso político, decisão do STF equivalente a uma vingança do ator pornô Alexandre Frota.
O conteúdo geral sobre a liberação ou não dos preconceitos na redação do Enem começou a ser desenhado numa tenebrosa audiência do Ministro da Educação Mendonça Filho, logo após o golpe, com a presença de Frota, em companhia de integrantes do grupelho Revoltados on line. Eles entregaram ao ministro o projeto "Escola Sem Partido", que prevê um comportamento "neutro" dos professores, como oposição ao que classificam "doutrinação ideológica nas escolas".
Surrealista por motivos óbvios, a presença de Frota no encontro produziu um episódio colateral: uma reação indignada de Eleonora Minecucci, ministra dos Direitos da Mulher no governo Dilma. "Receber esse senhor, que não só já assumiu ter estuprado, mas também faz apologia do estupro, me passa uma credencial péssima de quem está dirigindo a educação", disse Eleonora. Acusada pelo ator pornô num processo por danos morais, Eleonora obteve uma vitória na segunda instância, que muitos observadores julgavam improvável.
Até dias atrás, a nota zero parecia seguir na mesma direção -- da proteção a um ponto de vista democrático. A clausula foi mantida no Enem, organizado na gestão de Mendoncinha. No debate que ocorreu a seguir, o desembargador Carlos Moreira Alves deu apoio a tese da Escola Sem Partido. Mas tanto a Procuradoria Geral da União e da Advocacia Geral da União se alinharam no campo oposto, pela manutenção do zero.
Coube a Carmen Lúcia lembrar ao jovens do país os tempos estranhos que estamos vivendo.
Três anos depois que o craque Daniel Alves comeu uma banana para manifestar seu repúdio ao racismo durante um jogo de futebol na Espanha, a presidente do STF Carmen Lúcia deu uma preocupante marcha-a ré no esforço dos brasileiros e brasileiras para construir uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito", como define o artigo 5 da Constituição de 1988.
A ministra foi chamada a dar palavra final numa disputa particularmente instrutiva entre os organizadores do Enem, que defendiam nota zero para redações que "desrespeitem os direitos humanos" e uma ação do Ação Escola Sem Partido, para quem a regra não passa de uma tentativa de impor "aos candidatos, respeito ao politicamente correto". Numa concessão óbvia aos tempos de conservadorismo em alta, Carmen Lucia decidiu a favor da Escola Sem Partido e escreveu: "não se combate a intolerância social com maior intolerância estatal".
Os aplausos da família Bolsonaro pela decisão da ministra não devem espantar ninguém.
Basta entender sobre o debate real. Chamada a dar sua opinião numa questão que envolve um ponto de passagem obrigatório na formação das novas gerações de brasileiros, que através da escola elaboram uma visão de mundo e de país que pretendem construir, em nome da liberdade de expressão a presidente do STF liberou manifestações de racismo e de preconceito contra mulheres e gays.
Também é absurdo uma ministra do STF justificar a decisão pelo receio em estimular a "intolerância estatal" contra manifestações de preconceito. O problema brasileiro nessa matéria é oposto. Envolve um comportamento excessivamente tolerante por parte do Estado.
Num país onde a lei 9459/97 prevê pena de 1 a 3 anos de prisão pelo "crime de praticar, induzir, ou incitar o preconceito de raça, cor, etnia ou procedência nacional", as denúncias de racismo costumam perder-se num labirinto de má vontade e impunidade. Todos sabemos que, quando envolve o massacre de jovens pobres e pretos pela violência das Polícias Militares, o panorama é ainda mais grave e atinge o nível escabroso.
Alvo de um esforço legislativo particular na última década, que incluiu a classificação do feminicídio como crime hediondo, a violência e o preconceito contra a mulher permanecem em seu drama e sua dor. Ao liberar a intolerância nas redações de nossa juventude -- na disputa por uma vaga nas faculdades, o que já indica um posição de influência em nossa hierarquia social no futuro -- a ministra deu um péssimo exemplo. Embora tenha sido aprovada em 1997, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a lei 9459 possui um agravante que pode ser de grande utilidade nos dias atuais, onde o discurso do ódio dá o braço à intolerância política. Caso o discurso do preconceito utilize a "cruz suástica para fins de propaganda nazista", e for praticado "por meios de comunicação social ou publicidade de qualquer espécie," a reclusão prevista sobe para 2 e 5 anos.
Com sua decisão, a presidente do STF flexibilizou noções que não podem ser enfraquecidas. Na dúvida, imagine o estudante que, capaz de articular frases e palavras, consegue tirar nota 10 num texto racista. Ou num elogio ao estupro.
Não se trata de proibir o aluno de escrever -- nem de censurar, o que seria uma afronta à Constituinte. A nota zero não tem caráter eliminatório. Pode implicar, no máximo, numa perda de 200 pontos num total de 1000. Uma punição instrutiva e necessária, vamos concordar.
Estamos falando de um exame oficial, num país onde a democracia deixou de ser uma questão em discussão. Não pode ser vista como um debate em aberto nem uma opinião entre tantas outras, ainda mais num momento de crise como o atual. O zero, assim, afirma uma verdade sempre necessária, sobre a importância de respeitar os direitos do outro como um igual -- base do mundo em que o país decidiu viver na Constituição de 1988. Alguém vai negar que esta é uma discussão essencial de nosso tempo?
Como percurso político, decisão do STF equivalente a uma vingança do ator pornô Alexandre Frota.
O conteúdo geral sobre a liberação ou não dos preconceitos na redação do Enem começou a ser desenhado numa tenebrosa audiência do Ministro da Educação Mendonça Filho, logo após o golpe, com a presença de Frota, em companhia de integrantes do grupelho Revoltados on line. Eles entregaram ao ministro o projeto "Escola Sem Partido", que prevê um comportamento "neutro" dos professores, como oposição ao que classificam "doutrinação ideológica nas escolas".
Surrealista por motivos óbvios, a presença de Frota no encontro produziu um episódio colateral: uma reação indignada de Eleonora Minecucci, ministra dos Direitos da Mulher no governo Dilma. "Receber esse senhor, que não só já assumiu ter estuprado, mas também faz apologia do estupro, me passa uma credencial péssima de quem está dirigindo a educação", disse Eleonora. Acusada pelo ator pornô num processo por danos morais, Eleonora obteve uma vitória na segunda instância, que muitos observadores julgavam improvável.
Até dias atrás, a nota zero parecia seguir na mesma direção -- da proteção a um ponto de vista democrático. A clausula foi mantida no Enem, organizado na gestão de Mendoncinha. No debate que ocorreu a seguir, o desembargador Carlos Moreira Alves deu apoio a tese da Escola Sem Partido. Mas tanto a Procuradoria Geral da União e da Advocacia Geral da União se alinharam no campo oposto, pela manutenção do zero.
Coube a Carmen Lúcia lembrar ao jovens do país os tempos estranhos que estamos vivendo.
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