Por Afrânio Silva Jardim, no site Carta Maior:
Inicialmente, é preciso deixar bem claro que estou me referindo a uma pequena parcela do Ministério Público, o qual vejo como uma importante instituição do Estado moderno.
Pertenci aos quadros do Ministério Público de meu Estado por 31 anos e disso me orgulho muito. Entretanto, um corporativismo extremado faz com que a maioria dos membros do Parquet fique silente diante de alguns exageros persecutórios e até associações de classe hipotequem solidariedade a práticas irregulares abaixo apontadas, julgando estar fazendo bem para a instituição. Este corporativismo exagerado só prejudica a Instituição.
Há tempos passei a perceber que os acordos de cooperação premiada (delação premiada) estavam ocorrendo diante de circunstâncias artificialmente criadas. Em outras palavras, que prisões estivessem sendo decretadas com desvio de finalidade. Ademais, trouxeram para o processo penal o nefasto “negociado sobre o legislado”.
Na verdade, muitas prisões não estavam sendo decretadas para instrumentalizar e viabilizar a coleta de provas ou evitar a fuga dos indiciados, mas tinham como escopo oculto fragilizar os investigados e constrangê-los a delatar outras pessoas, mormente em se tratando de suspeitos de certa idade.
Prisões temporárias são decretadas para interrogar os indiciados, que têm o direito constitucional de ficarem calados. Nestas circunstâncias, ficam temerosos de ter o prazo prorrogado ou ser tal prisão convertida em prisão preventiva. Feita a delação, são os indiciados colocados em prisão domiciliar, com tornozeleiras, conforme prometido ou esperado.
Desta forma, estas “condenações domiciliares” são, na prática, um verdadeiro “faz de contas”. Por outro lado, mesmo soltos, os réus se sentem ameaçados por penas altíssimas, já que juízes punitivistas não estão reconhecendo as figuras do concurso formal e do crime continuado. A teoria de delito está sendo ultrajada.
Acho que tudo isto está acontecendo porque a Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário se irmanaram para o salutar combate à corrupção. Entretanto, não temos aqui o chamado Juizado de Instrução, motivo pelo que o juiz não tem de combater nada, mas sim prestar a jurisdição quando provocado, de forma imparcial e isenta, sem se deixar levar, até inconscientemente, por tendências políticas e ideológicas.
Por outro lado, o Ministério Público, pela Constituição Federal, tem por finalidade principal tutelar a ordem jurídica e defender o Estado Democrático de Direito. O Ministério Público não deve atuar no processo penal como se fosse um “advogado da acusação”. Ao Estado Democrático e ao membro do Ministério Público, não podem interessar a condenação de um inocente ou uma aplicação de pena imerecida.
O papel de um Ministério Público democrático é, em um primeiro momento, oferecer a necessária denúncia para a instauração do processo penal, dispondo de prova mínima do crime que vai imputar ao réu na sua peça acusatória (princípio da obrigatoriedade). Depois, em alegações finais, o Ministério Público deve substituir a sua “capa de acusador pela capa de fiscal da lei” (custos legis), opinando livremente, com isenção e a possível imparcialidade, pela condenação ou absolvição do réu, (art.385 do Cod. Proc. Penal).
Em outras palavras, na ação penal condenatória pública, o Ministério Público é parte no processo, pois manifesta uma pretensão punitiva em juízo. Entretanto, não está ele vinculado ao pedido que formulou na peça inicial, devendo, ao final da instrução, pronunciar-se como verdadeiro fiscal da correta aplicação da lei ao caso concreto, segundo o que entendeu provado. Tal “parecer” do membro do Ministério Público não tem caráter vinculatório, seja para o juiz, seja para os demais membros do Parquet que venham a atuar no mesmo processo.
Entretanto, não é isto que estamos vendo na chamada Lava Jato, pois os membros do Ministério Público Federal se sentem obrigados, perante a opinião pública que convocaram, a demonstrar que não fizeram acusações improcedentes. Não se apresentam como promovedores de justiça, mas sim como promotores de condenações!!! A politização do processo penal pode tirar do acusador o importante juízo de razoabilidade que deve nortear toda a acusação penal.
O Ministério Público Federal se transformou em um acusador sistemático e impiedoso. A sua falta de técnica jurídica é visível e gritante.
Em alguns textos anteriores, demonstrei abusos e equívocos técnicos ocorridos na “operação Lava Jato”, como buscas domiciliares genéricas e conduções coercitivas sem prévio descumprimento a anterior intimação, mormente quando o investigado tem direito de não ser interrogado. Se a Constituição Federal outorga ao investigado o direito de ficar calado, o artigo do Cod. Proc. Penal, que autoriza a sua condução coercitiva, não foi por ela recepcionado. Vale dizer, está revogado pela própria Constituição de 1988.
Houve também vazamentos seletivos, com o fim de jogar a opinião pública contra suspeitos, em detrimento de suas intimidades e dignidade, violando o princípio da presunção de inocência. Do “processo penal do espetáculo” passou-se ao “processo penal da humilhação”. Com tudo isso, alguns Procuradores da República se mostraram coniventes e se omitiram na luta em prol da legalidade.
Tudo isto ficou ainda mais evidente pela omissão do Ministério Público Federal diante da cena patética e absurda de conduzir o ex-governador Sérgio Cabral acorrentado pelas mãos e pernas, como se fosse um escravo no século XIX. Ao que se saiba, o Ministério Público desconheceu este abuso de autoridade, a que assistiu nossa população estarrecida. Lamentável.
Os fins não podem justificar meios incorretos. Como sempre disse, não é valioso punir a qualquer preço. No caso, o preço é muito alto, qual seja, abrir mão de garantias individuais previstas na Constituição Federal e retroceder a um verdadeiro “Estado Policial”, jogando na “lata do lixo” da história todo o evoluir do processo civilizatório, que nos outorgou a preciosa cultura de uma sociedade democrática.
Os chamados direitos fundamentais não podem ser “flexibilizados”, consoante está ocorrendo no Estado Pós-Democrático, segundo procedente denúncia do jurista Rubens Casara. Também neste particular, o Supremo Tribunal Federal tem sua parcela de culpa.
Enfim, não à corrupção. Não a um Ministério Público e a um Poder Judiciário messiânicos e “punitivistas”. Gritamos “NÃO” a qualquer tipo de ampliação de discricionariedades no processo penal. Sim a uma sociedade solidária, justa, democrática e fraterna.
O triste é perceber que tais sequelas são indeléveis e demorarão algumas gerações para serem removidas. Vale dizer, são imperdoáveis os danos que alguns poucos “deslumbrados” e “narcisistas” membros do Ministério Público Federal causaram à nossa Instituição e ao sistema de justiça criminal em geral.
* Afrânio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
Inicialmente, é preciso deixar bem claro que estou me referindo a uma pequena parcela do Ministério Público, o qual vejo como uma importante instituição do Estado moderno.
Pertenci aos quadros do Ministério Público de meu Estado por 31 anos e disso me orgulho muito. Entretanto, um corporativismo extremado faz com que a maioria dos membros do Parquet fique silente diante de alguns exageros persecutórios e até associações de classe hipotequem solidariedade a práticas irregulares abaixo apontadas, julgando estar fazendo bem para a instituição. Este corporativismo exagerado só prejudica a Instituição.
Há tempos passei a perceber que os acordos de cooperação premiada (delação premiada) estavam ocorrendo diante de circunstâncias artificialmente criadas. Em outras palavras, que prisões estivessem sendo decretadas com desvio de finalidade. Ademais, trouxeram para o processo penal o nefasto “negociado sobre o legislado”.
Na verdade, muitas prisões não estavam sendo decretadas para instrumentalizar e viabilizar a coleta de provas ou evitar a fuga dos indiciados, mas tinham como escopo oculto fragilizar os investigados e constrangê-los a delatar outras pessoas, mormente em se tratando de suspeitos de certa idade.
Prisões temporárias são decretadas para interrogar os indiciados, que têm o direito constitucional de ficarem calados. Nestas circunstâncias, ficam temerosos de ter o prazo prorrogado ou ser tal prisão convertida em prisão preventiva. Feita a delação, são os indiciados colocados em prisão domiciliar, com tornozeleiras, conforme prometido ou esperado.
Desta forma, estas “condenações domiciliares” são, na prática, um verdadeiro “faz de contas”. Por outro lado, mesmo soltos, os réus se sentem ameaçados por penas altíssimas, já que juízes punitivistas não estão reconhecendo as figuras do concurso formal e do crime continuado. A teoria de delito está sendo ultrajada.
Acho que tudo isto está acontecendo porque a Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário se irmanaram para o salutar combate à corrupção. Entretanto, não temos aqui o chamado Juizado de Instrução, motivo pelo que o juiz não tem de combater nada, mas sim prestar a jurisdição quando provocado, de forma imparcial e isenta, sem se deixar levar, até inconscientemente, por tendências políticas e ideológicas.
Por outro lado, o Ministério Público, pela Constituição Federal, tem por finalidade principal tutelar a ordem jurídica e defender o Estado Democrático de Direito. O Ministério Público não deve atuar no processo penal como se fosse um “advogado da acusação”. Ao Estado Democrático e ao membro do Ministério Público, não podem interessar a condenação de um inocente ou uma aplicação de pena imerecida.
O papel de um Ministério Público democrático é, em um primeiro momento, oferecer a necessária denúncia para a instauração do processo penal, dispondo de prova mínima do crime que vai imputar ao réu na sua peça acusatória (princípio da obrigatoriedade). Depois, em alegações finais, o Ministério Público deve substituir a sua “capa de acusador pela capa de fiscal da lei” (custos legis), opinando livremente, com isenção e a possível imparcialidade, pela condenação ou absolvição do réu, (art.385 do Cod. Proc. Penal).
Em outras palavras, na ação penal condenatória pública, o Ministério Público é parte no processo, pois manifesta uma pretensão punitiva em juízo. Entretanto, não está ele vinculado ao pedido que formulou na peça inicial, devendo, ao final da instrução, pronunciar-se como verdadeiro fiscal da correta aplicação da lei ao caso concreto, segundo o que entendeu provado. Tal “parecer” do membro do Ministério Público não tem caráter vinculatório, seja para o juiz, seja para os demais membros do Parquet que venham a atuar no mesmo processo.
Entretanto, não é isto que estamos vendo na chamada Lava Jato, pois os membros do Ministério Público Federal se sentem obrigados, perante a opinião pública que convocaram, a demonstrar que não fizeram acusações improcedentes. Não se apresentam como promovedores de justiça, mas sim como promotores de condenações!!! A politização do processo penal pode tirar do acusador o importante juízo de razoabilidade que deve nortear toda a acusação penal.
O Ministério Público Federal se transformou em um acusador sistemático e impiedoso. A sua falta de técnica jurídica é visível e gritante.
Em alguns textos anteriores, demonstrei abusos e equívocos técnicos ocorridos na “operação Lava Jato”, como buscas domiciliares genéricas e conduções coercitivas sem prévio descumprimento a anterior intimação, mormente quando o investigado tem direito de não ser interrogado. Se a Constituição Federal outorga ao investigado o direito de ficar calado, o artigo do Cod. Proc. Penal, que autoriza a sua condução coercitiva, não foi por ela recepcionado. Vale dizer, está revogado pela própria Constituição de 1988.
Houve também vazamentos seletivos, com o fim de jogar a opinião pública contra suspeitos, em detrimento de suas intimidades e dignidade, violando o princípio da presunção de inocência. Do “processo penal do espetáculo” passou-se ao “processo penal da humilhação”. Com tudo isso, alguns Procuradores da República se mostraram coniventes e se omitiram na luta em prol da legalidade.
Tudo isto ficou ainda mais evidente pela omissão do Ministério Público Federal diante da cena patética e absurda de conduzir o ex-governador Sérgio Cabral acorrentado pelas mãos e pernas, como se fosse um escravo no século XIX. Ao que se saiba, o Ministério Público desconheceu este abuso de autoridade, a que assistiu nossa população estarrecida. Lamentável.
Os fins não podem justificar meios incorretos. Como sempre disse, não é valioso punir a qualquer preço. No caso, o preço é muito alto, qual seja, abrir mão de garantias individuais previstas na Constituição Federal e retroceder a um verdadeiro “Estado Policial”, jogando na “lata do lixo” da história todo o evoluir do processo civilizatório, que nos outorgou a preciosa cultura de uma sociedade democrática.
Os chamados direitos fundamentais não podem ser “flexibilizados”, consoante está ocorrendo no Estado Pós-Democrático, segundo procedente denúncia do jurista Rubens Casara. Também neste particular, o Supremo Tribunal Federal tem sua parcela de culpa.
Enfim, não à corrupção. Não a um Ministério Público e a um Poder Judiciário messiânicos e “punitivistas”. Gritamos “NÃO” a qualquer tipo de ampliação de discricionariedades no processo penal. Sim a uma sociedade solidária, justa, democrática e fraterna.
O triste é perceber que tais sequelas são indeléveis e demorarão algumas gerações para serem removidas. Vale dizer, são imperdoáveis os danos que alguns poucos “deslumbrados” e “narcisistas” membros do Ministério Público Federal causaram à nossa Instituição e ao sistema de justiça criminal em geral.
* Afrânio Silva Jardim é professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J.
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