Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena, no site Tutaméia:
“As principais instituições que possivelmente estarão comandando o Brasil de amanhã, se não houver reversão do ponto de vista das instituições tradicionais, são o crime organizado e as igrejas neopentecostais. Porque são as duas instituições que têm melhor clareza para que mundo estamos cada vez mais avançando”.
A análise é do economista Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, do PT, em entrevista ao Tutaméia. Para ele, esses dois grupos operam como instituições, preparam quadros para serem advogados, prestarem concurso público para carreiras de Estado, se tornarem candidatos às eleições. “Eles vão contaminando as instituições, vão entrando nas instituições, fazem parte do jogo”, diz.
No caso do movimento dos neopentecostais, afirma, “não dá para condenar e dizer que isso representa um retrocesso; depende do tipo de sentido vai ter no médio e longo prazo”, Ele lembra que a igreja católica era muito conservadora e chegou a apoiar o golpe de 1964. Depois, com a Teoria da Libertação, se tornou muito importante no processo de redemocratização, de derrubada da ditadura. As comunidades eclesiais de base foram essenciais para os movimentos de bairro, sindicais e até para a formação do PT.
Para Pochmann, o ritmo de crescimento do crime e da abertura de templos remete a dois países: México, no caso do crime, e Irã, na comparação com a expansão da religião. Haveria, assim, um cenário que poderia misturar ingredientes de México e Irã. Com esse desenho exposto, ele alerta:
“Há informações de que essas instituições [religiosas e criminosas] estão se combinando. Então podemos ter alguma coisa híbrida no brasil, nem México nem Irã, um ‘Irãmex’”.
São hipóteses, enfatiza o economista: “Não estamos condenados a essas duas possibilidades, mas quero ressaltar que essas possibilidades têm tido muito vigor”. Ele fala de como os templos conseguem atrair muitas pessoas nos finais de semana –mais do que sindicatos, partidos e outros movimentos, muitas vezes, conseguem agregar em suas reuniões.
Precarização e luta de classes
Na visão de Pochmann, “eles identificaram muito melhor o que é o desejo dessa sociedade de serviço, que não é tão hierarquizada como a sociedade industrial”. O pano de fundo é a desindustrialização precoce em curso no país. No modelo que força os serviços, a hierarquia da fábrica –que deixava mais transparente as contradições da luta de classes—é matizada. A precarização e as relações diluídas no mercado de trabalho são terreno fértil para a ideologia neoliberal, que enfatiza o mérito pessoal e demoniza o Estado.
Hoje em São Paulo, constata ele, os 50 shoppings da cidade concentram quase um quinto da força de trabalho (de forma direita e indireta). Nesses locais, chefes e gerentes de unidades, de lojas, fazem múltiplas tarefas, estimulando o pensamento em torno do empreendedorismo, da meritocracia. São atividades mais horizontalizadas, que turvam o conceito de luta de classes, de capital versus trabalho. Em contrapartida, o Estado (com seus impostos) é alardeado como adversário.
Segundo Pochmann, o trabalhador da periferia percebe a contradição entre o Estado que arrecada seus impostos e a falta de serviços que recebe –muito distante da realidade oferecida nos bairros ricos. Ao mesmo tempo, pondera, esses trabalhadores “sabem que, sem Estado, a vida deles piora muito. Querem um Estado, mas não esse Estado”. Para ele, há “dificuldade da esquerda de fazer essa conversa. Que Estado está defendendo?”.
Polarização e ódio
Sem entender esse novo mundo, “a esquerda tomou a posição de dirigir um automóvel olhando o retrovisor”, declara. Nos anos 1960, 1970, lembra, as lutas se organizavam nas ruas mais pelos locais de moradia. Por conta da ditadura, sindicatos e outras instituições estavam sob intervenção, manietadas. Depois, “se institucionalizou a luta”, diz. Foi quando aumentou o poder das entidades representativas (os sindicatos, por exemplo), deixando de lado as organizações por local de moradia.
Agora, aponta, com a precarização do trabalho, a pulverização dos processos produtivos, o local de moradia passa a ser o centro nervoso para as organizações políticas e reivindicativas. “E quem está organizando no local de moradia são as igrejas e o crime”, ressalta.
Esmiuçando as mudanças em curso, Pochmann ressalta que a família deixou de ser a âncora da sociabilidade. A tradicional conversa durante as refeições, com debate entre posições diferentes, faz parte do passado. Hoje tudo se concentra no celular, e a tendência é ficar dentro de um universo de posições muito parecidas.
Assim, assinala, se vive em “bolhas homogêneas, que têm dificuldade de dialogar” entre si. A resultante é uma sociedade “muito polarizada, em que o ódio vem rapidamente. Não estou acostumado a ouvir a ideia do outro, frequento o mesmo clube, as mesmas ideias”.
Por terem a sensibilidade de abrir espaço de diálogo, as igrejas também ganham relevo. Pochmann frisa a questão da rede de solidariedade das confissões religiosas num momento em que o desemprego atinge 28 milhões de brasileiros. A cada três brasileiros, um está desempregado, ressalta ele.
Campo enorme para a esquerda crescer
As mudanças fortes também são sentidas no topo. “Há 30 anos, tínhamos uma burguesia industrial aqui”, lembra ele, citando os casos de Antônio Ermírio de Moraes e José Mindlin. Hoje, o maior empresário brasileiro é Jorge Paulo Lemann (AB Inbev) –um dos seis que concentram, juntos, a mesma riqueza dos 100 milhões mais pobres do país (metade da população), de acordo com levantamento da Oxfam.
Lemann, segundo Pochmann, representa essa “burguesia de negócios, comercial”, que negocia ativos, e não tem perspectiva de um projeto nacional. Uma parte da burguesia virou rentista e/ou importadora. No conjunto, o que se verifica é uma desindustrialização precoce, assim como é precoce a entrada na sociedade de serviços.
Ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Pochmann, 56, coloca todo esse movimento num quadro de mudança: o fim da sociedade urbana industrial e a ascensão da sociedade de serviços. Nesse contexto, “as instituições, as formas de fazer política, as organizações são insuficientes quando não inadequadas”, diz.
Apesar dessas observações, ele afirma que “há campo enorme para a esquerda crescer. Mas precisa entender que sociedade é essa”. E assevera: “Estou otimista. Estamos vivendo oportunidade singular na história, a despeito dos problemas. O Brasil de hoje está redefinindo a história dos próximos 50 anos”.
Abolicionistas e tenentistas
Na sua visão, guardadas as proporções, em dois outros momentos o Brasil esteve diante de tamanho desafio de mudança: na década de 1880 e nos anos 1930. “Essas duas décadas redefiniram o Brasil”, analisa.
Na década de 1880, com a abolição da escravidão e a proclamação da República, “entramos numa sociedade do trabalho livre”. Na de 1930, “fomos de uma sociedade agrária para uma urbana e industrial”. Pochmann fala dos sonhos das gerações que impulsionaram esses dois momentos. No século 19, abolicionistas queriam também aceso a terras, educação e saúde para os mais pobres.
No início do século 20, conta, tenentistas se rebelaram contra a decrepitude das instituições, o voto fraudado sem participação popular. Alguns achavam que o lucro deveria ser valorizado, mas precisaria pagar impostos. Já a propriedade da terra deveria ser resguardada, mas precisaria cumprir sua função social.
Impostos para lucros e dividendos e função social da propriedade seguem na pauta de hoje. Pochmann fala de muito mais, da situação internacional, do trabalho na formulação do programa de governo de Lula, que, ele diz, será “mais ousado e radical”. Afastando ideias de depressão sobre o paí, o economista defende que “o momento exige a reafirmação de nossas vontades de transformação do país”. E arremata:
“Do ponto de vista histórico, este momento não poderia ser melhor. Não há receita pronta, como os tenentistas lá em 1930. Eles estavam fazendo, o esquema tático era jogo a jogo. [Agora], a partida não terminou. Levamos um gol, estamos perdendo. Mas não há nada que nos impeça de ter uma grande vitória em outubro e começar 2019 com muito mais experiência de quem já foi governo e muito mais vontade de organizar a população para uma nova maioria. Porque a questão central é formar uma nova maioria. Essa maioria já existe, mas está fragmentada. Essa capacidade de aglutinar e articular, como o presidente Lula tem essa sabedoria, é um grande ativo que nós temos no sentido de o Brasil dar um passo muito importante e firme”.
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