sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Não é fácil envelhecer no Brasil

Por Vilma Bokany, na revista Teoria e Debate:


O Sesc-SP em parceria com o Núcleo de Estudos e Opinião Pública (Neop) da Fundação Perseu Abramo em meados de 2018 iniciaram uma série de conversas sobre a necessidade de uma segunda edição da pesquisa “Idosos no Brasil – Vivências, desafios e expectativas na 3ª idade”. Passados 13 anos de sua primeira edição, em 2005, ambas as instituições atentavam para a intensificação do aumento do envelhecimento da população, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.

No Brasil, em quase uma década e meia que separa as duas edições do estudo, o Brasil viu o índice de pessoas com mais de 60 anos crescer de 9,2% da população brasileira, em 2005, para atuais 34 milhões de cidadãos, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, o que representa 16,2% da população brasileira.

Assim como nos demais países, o crescimento no número de idosos no Brasil está diretamente relacionado a dois fenômenos: a queda da taxa de natalidade e a redução da taxa de mortalidade, levando a uma sociedade mais envelhecida. O crescimento desse segmento populacional, no entanto, não veio acompanhado da ampliação do Estado de bem-estar social.

Ao contrário, o que se observa nos últimos quatro anos, a partir do golpe de 2016, que tirou do governo a presidenta Dilma Rousseff, é a crescente perda de direitos promovida por reformas que sacrificam a população. Tais medidas se aprofundam com a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, cuja equipe econômica traz como meta a reforma da Previdência, medida que incide fortemente sobre a população idosa que necessita cada vez mais de auxílios previdenciários.

No âmbito da discussão sobre a perda de direitos imposta por projetos de lei, reformas e emendas constitucionais que retiram a prerrogativa constitucional de garantia de direitos sociais e em meio às discussões sobre a necessidade de reformas trabalhistas e das regras da Previdência Social, que afetam principalmente a população com idade mais avançada, o Sesc e o Neop-FPA foram a campo, em dezembro de 2019, para a realização de quarenta entrevistas em profundidade na fase qualitativa do estudo, com vista a ampliar o espectro de temas tratados na edição anterior. E, entre janeiro e março de 2020 para a fase quantitativa, realizaram 4.144 entrevistas, sendo 2.369 dessas com idosos (60 anos e mais) e 1.775 entrevistas com da população de 15 a 59 anos, em 234 municípios capitais e interiores (pequenos, médios e grandes), distribuídos nas cinco macrorregiões do país (Sudeste, Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste).

O objetivo que norteou este estudo, para além de atualizar as informações levantadas na pesquisa anterior, avaliando a evolução dos dados nessa última década, foi também levantar as novas demandas e compreender os desafios para garantia dos direitos e melhoria da qualidade de vida da população acima de 60 anos.

Para isso a pesquisa buscou mensurar aspectos objetivos da vida dos idosos, traçando seu perfil e os marcadores sociais de exclusão tais como acesso renda, previdência, trabalho, moradia, como e com quem vivem e como são suas relações familiares, identificando as ajudas que oferecem e que precisam e quem as supre.

A percepção dos direitos e o grau de conhecimento sobre a reforma da Previdência e suas opiniões sobre ela também foram mensurados bem como a necessidade de políticas públicas nas áreas de saúde, educação tradicional e digital, moradia e instituições de longa permanência.

Seus hábitos de lazer e fruição da produção cultural, entendendo como passam o tempo livre e suas expectativas em relação ao futuro, explorando seu campo dos desejos oferecem pistas para encontrar ferramentas que possibilitem construir uma sociedade mais inclusiva e menos discriminatória aos idosos.

Por fim, aspectos subjetivos associados à autoimagem do idoso, a percepção das relações intergeracionais, mudanças ocorridas na sociedade desde que eram jovens e como percebem o contexto social e particular de sua trajetória de vida permitem compreender a visibilidade dessa geração e os “papeis sociais” que lhe cabem, tanto de seu ponto de vista como aos olhos das demais gerações.

Nesse Dia Internacional do Idoso (1/10) há pouco ou quase nada a comemorar. Neste ano, marcado pela pandemia da Covid-19, que ceifou mais de 140 mil vidas de brasileiros, os idosos foram o grupo mais afetado, destacados como o principal “grupo de risco”, compondo cerca de 70% das vítimas do coronavírus.

Esse cenário potencializou o preconceito contra esse segmento da população, que já era alto e pouco amenizou em mais de uma década que separa as duas pesquisas, reconhecido por 84% da população brasileira em 2006 e 82%, agora em 2020.

Nesse momento da pandemia, vimos campanhas de isolamento social do idoso que, se de um lado ajudaram a poupar vidas, de outro deram vazão ao preconceito represado contra idosos com uma série de memes nas redes sociais, com comparações grotescas, que além do medo do vírus trouxeram ao idoso o medo de saírem as ruas, como se os espaços públicos não lhes pertencessem, tendo repreendido e suprimido seu direito de ir e vir.

Mais do que manifestações de cuidado, por ser considerado o grupo mais vulnerável, vimos se reproduzir e potencializar o preconceito que essa camada social sofre, além da privação de liberdade. Assim, os idosos acabaram forçados a um isolamento social ainda mais intenso do que para a população em geral e a solidão, eminente da população idosa e exaustivamente relatada na fase qualitativa desse estudo, ficou ainda mais latente. “Solidão, para mim, é uma das piores coisas”, diz uma das entrevistadas da pesquisa, 60 anos, moradora de Belém (PA). “Não é fácil viver sozinha, com os filhos longe, sem ninguém. Mas a gente vai tentando encontrar um jeito de se entrosar com as pessoas, sair de casa.” Mas sair de casa ficou mais difícil.

Entre a proteção e o controle, há a necessidade de compreender os verdadeiros motivos que fazem com que os idosos precisem estar nas ruas, ainda que, muitas vezes, isso contrarie sua própria vontade.

Ao longo desses anos as famílias se tornaram menores, em 2006, a média de pessoas por domicílio era 4,0 e atualmente reduziu para 3,5 pessoas por domicílio. Comparativamente, os idosos atualmente residem em domicílios com, em média, 2,9 pessoas (em 2006 era 3,3), enquanto os não-idosos residem em domicílios com em média 3,6 pessoas (em 2006 era 4,1). Atualmente, 17% dos idosos moram sozinhos e 33% com mais uma pessoa, em geral, o cônjuge (43%), o que na maior parte das vezes quer dizer alguém de sua mesma faixa etária, o que faz com que metade dos idosos brasileiros necessite sair de casa para resolver seus assuntos, ainda que saiba dos riscos que corre.

Para além das necessidades do dia-a-dia que exigem que os idosos saiam de casa, uma a cada quatro pessoas acima de 60 anos trabalha (25%), sendo que 14% não possuem o direito à aposentadoria e 11%, mesmo aposentados, ainda necessitam trabalhar. A taxa dos que trabalham mesmo já estando aposentados aumentou 3 p.p. em relação a 2006.

A maior parcela dos idosos que trabalha está no mercado informal (15%), trabalhando por conta própria, fazendo “bicos” (12%) e assalariados sem carteira assinada (2%). Há ainda 9% que estão no mercado formal, com 4% deles trabalhando com carteira assinada, 2% como funcionários públicos e outros 2% como MEI, além de 1% de proprietários de negócios próprios e o mesmo número de autônomos profissionais liberais.

As variáveis gênero e etnia/cor são diferenciais importantes entre os idosos que trabalham. Se 25% dos idosos trabalham, entre os homens 34% o fazem, mas os maiores percentuais estão entre os pardos (37%) e principalmente entre os negros (40%). O mesmo ocorre entre as mulheres, que na média 18% ainda trabalham, mas entre as negras chega a 20%. O mesmo se observa na formalização do trabalho, se 15% dos idosos que trabalham estão mercado informal, entre os homens negros, esse índice chega a 27%.



Sobre os idosos que não trabalham (75%), 53% são aposentados, 13% pararam de trabalhar e 7% nunca fizeram trabalho remunerado. Há também 5% que não possui qualquer tipo de renda. Nesse caso, a diferença mais significativa é entre gêneros (de 11 pontos percentuais). Enquanto 60% dos homens são aposentados, 49% das mulheres estão na mesma situação. Embora essa diferença tenha reduzido em relação a 2006 (era de 15 p.p.) ainda expressa a invisibilidade e ausência de direitos sobre o trabalho das mulheres. São essas também as que mais trabalharam e pararam de trabalhar (20%, contra 4% dos homens) ou nunca trabalharam (11% contra 1%). É o segmento que mais declara não ter qualquer tipo de renda (8%, enquanto entre os homens é de 1%).

A renda mensal das famílias brasileiras caiu sensivelmente nos últimos anos. A taxa dos que recebem até dois salários mínimos aumentou 8 pontos percentuais desde 2006, enquanto entre os que recebem acima de cinco salários mínimos regrediu 12 pontos. Na média, a renda dos idosos é inferior à dos não-idosos e as diferenças de gênero e raça também se evidenciam. As mulheres idosas possuem renda média de R$ 1.520,87, enquanto entre os homens a média é de R$ 2.052,21. Isso se agrava entre os idosos e, sobretudo, entre as mulheres pardas e negras, segmentos em que a maior parcela possui renda inferior a um salário mínimo.




No entanto a velhice é predominantemente feminina, há 56% de mulheres para 44% de homens acima de 60 anos e muito mais viúvas (42%) do que viúvos (14%) e, embora a grande maioria possua filhos (95%), esses são as pessoas mais próximas para 27% dos idosos. A responsabilidade pela família ainda recai sobre 68% dos idosos – 17% que moram sozinhos e 50% que se declaram como tal, além de mais 18% que atribui a chefia da família ao parceiro/a, em geral da mesma faixa etária, o que eleva a 86% o percentual de idosos que chefiam suas famílias, com 95% colaborando para a renda domiciliar.

A reforma da Previdência, aprovada no final do ano passado tende a prazer ainda mais dificuldades a essa população idosa, já bastante pauperizada. Com discussão superficial e pouco difundida na sociedade, a medida passou com alto grau de desinformação entre a população, com apenas 17% se dizendo bem informado, 47% mais ou menos informado e cerca de um terço (32%) desinformado sobre a reforma, índice ainda mais expressivo entre os idosos – 41%.

A maior parcela da população (44%) avaliou a reforma da Previdência como ruim para o país e um índice ainda maior, 61%, como ruim para a população. Entre os idosos esses índices foram relativamente mais baixos, (37% e 52%, respectivamente) porque o índice de desinformação foi maior, com mais de um quarto sem condições de avaliar.

Na percepção da maioria da população (69%), o tempo de contribuição vai aumentar (percepção de 59% entre os idosos) e cerca de um terço (36% da população e geral e 31% entre os idosos especificamente) pensam que o valor das futuras aposentadorias com a reforma da Previdência será menor. Mantidas as regras, uma próxima onda dessa pesquisa deve trazer um quadro ainda mais desolador para o envelhecimento no Brasil.

A despeito das situações objetivas adversas, metade (50%) das pessoas com mais de 60 anos não se sente idosa. Ainda que questionada sobre quando se pode dizer que uma pessoa chegou à velhice, a maioria relaciona a idade entre 60 e 65, com média de 60 anos, e vê nesse marco a idade ideal para se ter políticas para cuidado dos idosos.

Os que não se sentem idosos alegam mais referências positivas (70%) do que negativas (42%) quando questionadas como se sentem com a idade que têm, com destaque para o ânimo e vontade de viver (54%) e alegria, felicidade e satisfação com a vida (36%), sobretudo ente os idosos com menos de 70 anos. Do ponto de vista negativo, as doenças e debilidades é o que mais pesa, para 39%.

A percepção de que há mais coisas ruins em ser idoso caiu 6 pontos percentuais de 2006 (43%) para 2020 (37%) e entre os idosos equivale às coisas boas que vem com a idade (35%, ambas) e são também as doenças, debilidades e falta de saúde a pior coisa de envelhecer, segundo 74% dos entrevistados, visto da mesma forma entre idosos e não idosos, enquanto destaca-se entre as coisas boas do envelhecimento a vivência e experiência de vida (43%), mais mencionada entre os não idosos (44%) do que entre os idosos (37%).

No entanto, a percepção entre a população em geral de que a situação dos idosos está pior do que quando eram jovens aumentou 10 pontos percentuais de 2006 até hoje (de 37% para 47%), e é maior entre os não idosos (48%) do que entre os idosos (41%). Alegam como principais motivos para a situação dos idosos ter piorado a falta de respeito (24%), a queda na qualidade da saúde (23%) e nas aposentadorias (13%). Entre os que alegam que a situação dos idosos hoje está melhor, o motivo que sobressai é a conquista de direitos (24%), porém com queda expressiva de mais de 10 pontos percentuais em relação a essa mesma razão atribuída na pesquisa de 2006 (35%), quando havia uma expectativa de expansão de direitos, sobretudo trazidas pelo Estatuto do Idoso, em 2003.

Enfim, as questões aqui colocadas servem de subsídio para se pensar sobre que tipo de sociedade queremos e produzimos para que todas as pessoas possam viver e envelhecer dignamente. Há diferenças abissais que se estabelecem por condições diferentes enfrentadas ao longo da vida. A compreensão dessas desigualdades é o que torna possível a sociedade denunciar e combatê-las, mantendo o respeito à diversidade que a compõe.

É preciso que nossa sociedade reflita sobre a necessidade urgente de reformulação de políticas reparadoras, trazendo novas propostas de participação social e valorização do idoso e políticas públicas para a redução e superação de suas dificuldades.

Temos terreno fértil, mas falta vontade política dos governantes, voz deliberativa aos conselhos federais, estaduais e municipais e mobilização social. A sociedade precisa estar envolvida e ter poder de decisão, condições de exercer controle sobre as questões que envolvem o seu próprio envelhecimento.

* Vilma Bokany é doutoranda em Sociologia na PUC-SP, coordenou o Projeto Idosos no Brasil II e integra o Noppe da Fundação Perseu Abramo.

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