Nenhum vento ajuda quem não sabe aonde ir. Mal consolidou-se a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, e duas avaliações aparentemente opostas se apresentam. Para alguns, como Ricardo Kotscho, está drenada a cloaca de onde vazaram os miasmas políticos que turvam o século XXI; haverá, com certeza, a restauração virtuosa do passado recente. Outros, como Glenn Greenwald, pensam, ao contrário, que nada muda de fato, porque os interesses por trás do Partido Democrata e de Joe Biden são, em essência, tão oligárquicos quanto os que sustentaram Donald Trump. Estas visões falham ao não considerar o contexto de onde surgiu a ultradireita contemporânea; e a transformação deste cenário, a partir do início da pandemia. Por isso, escapa-lhes tanto a oportunidade perdida pela esquerda, há 12 anos, quando o surgimento de uma nova brecha, nos últimos meses – e o esforço que será necessário para aproveitá-la.
Este texto sustenta quatro hipóteses fundamentais:
a) Trump não é a causa, mas o efeito de uma crise do capitalismo que se abriu em 2008 e ainda não foi sanada. Porém, a importância do presidente agora caído não pode ser subestimada. Ele expressou, inclusive do ponto de vista simbólico, o movimento de pinça que a oligarquia financeira fez para safar-se da crise. Tal movimento implicou apostar ao mesmo tempo em dois blocos políticos: o neoliberalismo clássico e o neofascismo; e construir, por meio desta combinação, um jogo de ilusões que escondeu a ultra concentração de riquezas e o desmonte da democracia;
b) Esta trama só pôde se realizar por tirar proveito de um enorme déficit de imaginação política por parte da esquerda. Diante da crise do sistema, esta não foi capaz de formular uma perspectiva pós-capitalista. Atônita, aceitou a narrativa segundo a qual não havia outro caminho exceto salvar os bancos e impor às maiorias “austeridade” e “ajustes fiscais”. Ao fazê-lo, cometeu o erro trágico que marca os últimos dez anos, porque abriu caminho para que a ultradireita vestisse a máscara de antiestablishment e conquistasse apoio popular antes impensável.
c) A eclosão da pandemia de covid está embaralhando novamente as cartas, por dois motivos. Primeiro, porque ela escancara a incapacidade da ultradireita em oferecer proteção às maiorias, nos países que governa. Este fracasso, que pode ser mortal para um governo “populista”, deriva dos laços que os Trump e Bolsonaro mantém com oligarquia financeira, cada vez menos ocultáveis. Segundo, porque a pandemia – que agora entra em “segunda onda” – expõe a fragilidade da “solução” adotada em 2008 para enfrentar a crise financeira. Haverá, nos próximos meses, mais devastação econômica e social. Isso abrirá espaço, outra vez, para debater as duas formas opostas de enfrentar o drama.
d) Também no Brasil, o ambiente tenebroso dos dois últimos anos pode se alterar. A inexistência de oposição efetiva permitiu, até agora, que Bolsonaro se mantivesse blindado – ao contrário do que ocorreu, bem antes dos EUA, na Argentina, Chile, Equador e Bolívia, por exemplo. Mas o provável fracasso do presidente nas eleições municipais está demonstrando que o clima de confronto permanente suscitado por ele pode ter se tornado ineficaz. Além disso, ele terá de se deparar, logo após o pleito, com um conjunto de problemas graves – desemprego, empobrecimento, inflação da comida – para os quais seu programa ultraliberal não tem respostas. E, por fim, é muito possível que surja, das eleições, uma esquerda renovada, plural e menos propensa a aceitar a polarização artificial que o presidente provoca, como estratégia política.
Vale a pena examinar, em mais detalhes, cada uma destas hipóteses.
I. O ataque em pinça da oligarquia financeira
Estudadas com enorme interesse desde Karl Marx, as crises do capitalismo foram vistas, nos séculos XIX e XX, como momentos de oportunidade revolucionária. Nelas, desorganizam-se tanto a lógica de acumulação do sistema quanto sua capacidade de gerar consensos. As estruturas da dominação burguesa balançam. Surge a chance de transformações profundas ou mesmo de colapso da velha ordem.
Curiosamente, apenas a parte menos instigante destes fenômenos se repetiu na grande crise financeira que começa em 2008 e, em muitos aspectos, ainda não acabou. Nas economias ocidentais, a produção de riquezas e as taxas de investimento recuperaram-se muito lentamente. Ainda estão, em muitos casos, abaixo dos patamares pré-crise. Aumentaram o desemprego, a precarização e a pobreza. Mesmo nos Estados Unidos, lembra o antropólogo Wade Davis, num texto recente publicado por Outras Palavras, “quase um quinto das famílias tem patrimônio líquido zero ou negativo, e grande maioria das pessoas — brancos, negros e pardos — estão a apenas dois salários da falência”.
Porém, nesse período, a luta de classes – que Marx, Bakunin e Proudhon chegaram a ver como “motor da História” – desenvolveu-se no sentido oposto ao que eles haviam previsto. Uma ínfima minoria apropriou-se de uma fatia ainda maior da renda e da riqueza. Mas, em vez de despertar rebelião, este processo produziu o surgimento de uma ultradireita que celebra e propaga os valores mais rudes da dominação capitalista. Individualismo. Competição de todos contra todos. Afirmação da força bruta. Violência. Ódio ao diferente. Anticomunismo, misoginia e racismo. Desprezo pelas estruturas de solidariedade.
As razões que levaram a esta emergência serão melhor tratadas no próximo tópico, mas importa aqui notar que a oligarquia financeira, a classe do 0,1%, celebrou e apoiou a “novidade”. Os punhos de renda dos grandes banqueiros internacionais acolheram os punhos furiosos dos supremacistas brancos, ou os punhos armados dos milicianos brasileiros. Foi funcional, por múltiplos motivos. Em toda parte, o surgimento de uma polarização artificial (sistema versus ultradireita) atraiu a atenção das sociedades, evitando quem entrassem em debate as políticas que produziam desigualdade e empobrecimento. Em alguns países (como o Brasil), onde o conservadorismo tradicional mostrou-se desgastado e impopular, a classe dos bilionários não se incomodou de apoiar diretamente os protofascistas. Em outros (como a França), a ameaça da ultradireita (Marine Le Pen) foi providencial para que as sociedades optassem, como “mal menor”, por um banqueiro abertamente neoliberal (Emmanuel Macron).
E este movimento em pinça vai muito além das eleições: contamina todo o debate político. No Brasil, os meios de comunicação conservadores contribuíram ativamente para a ascensão de Bolsonaro, ou “normalizando” seu apoio à tortura e sua ligação com as milícias, ou apoiando-o de forma aberta. A depender das circunstâncias, poderão estar novamente a seu lado – por isso, nunca rompem com ele. Mas agora, quando se opõem a algumas de suas políticas, apresentam, como alternativa, a suposta “sensatez” da agenda ultraliberal de Rodrigo Maia, cujo eixo é manter a qualquer custo, e mesmo em pandemia, o congelamento dos gastos sociais.
Por isso, e por maiores que sejam os limites de Joe Biden, o fracasso de Trump é um fato de enorme relevância, com potência de mudar o cenário político internacional. Foi a campanha eleitoral do presidente norte-americano, a partir de 2015, que tirou a ultradireita das margens e lhe deu status de corrente política a ser levada em conta. Foi seu governo que sinalizou, a todo o mundo, o ressurgimento de um proto-fascismo com chances reais de poder. É sua derrocada, agora, que pode quebrar a ação em pinça da oligarquia financeira. No exato ponto em que a crise global voltará a recrudescer e exigir definições políticas; e em que há, nos Estados Unidos, um ambiente de mobilização social ainda sem projeto claro, mas com nítido caráter de crítica aguda ao capitalismo.
Estudadas com enorme interesse desde Karl Marx, as crises do capitalismo foram vistas, nos séculos XIX e XX, como momentos de oportunidade revolucionária. Nelas, desorganizam-se tanto a lógica de acumulação do sistema quanto sua capacidade de gerar consensos. As estruturas da dominação burguesa balançam. Surge a chance de transformações profundas ou mesmo de colapso da velha ordem.
Curiosamente, apenas a parte menos instigante destes fenômenos se repetiu na grande crise financeira que começa em 2008 e, em muitos aspectos, ainda não acabou. Nas economias ocidentais, a produção de riquezas e as taxas de investimento recuperaram-se muito lentamente. Ainda estão, em muitos casos, abaixo dos patamares pré-crise. Aumentaram o desemprego, a precarização e a pobreza. Mesmo nos Estados Unidos, lembra o antropólogo Wade Davis, num texto recente publicado por Outras Palavras, “quase um quinto das famílias tem patrimônio líquido zero ou negativo, e grande maioria das pessoas — brancos, negros e pardos — estão a apenas dois salários da falência”.
Porém, nesse período, a luta de classes – que Marx, Bakunin e Proudhon chegaram a ver como “motor da História” – desenvolveu-se no sentido oposto ao que eles haviam previsto. Uma ínfima minoria apropriou-se de uma fatia ainda maior da renda e da riqueza. Mas, em vez de despertar rebelião, este processo produziu o surgimento de uma ultradireita que celebra e propaga os valores mais rudes da dominação capitalista. Individualismo. Competição de todos contra todos. Afirmação da força bruta. Violência. Ódio ao diferente. Anticomunismo, misoginia e racismo. Desprezo pelas estruturas de solidariedade.
As razões que levaram a esta emergência serão melhor tratadas no próximo tópico, mas importa aqui notar que a oligarquia financeira, a classe do 0,1%, celebrou e apoiou a “novidade”. Os punhos de renda dos grandes banqueiros internacionais acolheram os punhos furiosos dos supremacistas brancos, ou os punhos armados dos milicianos brasileiros. Foi funcional, por múltiplos motivos. Em toda parte, o surgimento de uma polarização artificial (sistema versus ultradireita) atraiu a atenção das sociedades, evitando quem entrassem em debate as políticas que produziam desigualdade e empobrecimento. Em alguns países (como o Brasil), onde o conservadorismo tradicional mostrou-se desgastado e impopular, a classe dos bilionários não se incomodou de apoiar diretamente os protofascistas. Em outros (como a França), a ameaça da ultradireita (Marine Le Pen) foi providencial para que as sociedades optassem, como “mal menor”, por um banqueiro abertamente neoliberal (Emmanuel Macron).
E este movimento em pinça vai muito além das eleições: contamina todo o debate político. No Brasil, os meios de comunicação conservadores contribuíram ativamente para a ascensão de Bolsonaro, ou “normalizando” seu apoio à tortura e sua ligação com as milícias, ou apoiando-o de forma aberta. A depender das circunstâncias, poderão estar novamente a seu lado – por isso, nunca rompem com ele. Mas agora, quando se opõem a algumas de suas políticas, apresentam, como alternativa, a suposta “sensatez” da agenda ultraliberal de Rodrigo Maia, cujo eixo é manter a qualquer custo, e mesmo em pandemia, o congelamento dos gastos sociais.
Por isso, e por maiores que sejam os limites de Joe Biden, o fracasso de Trump é um fato de enorme relevância, com potência de mudar o cenário político internacional. Foi a campanha eleitoral do presidente norte-americano, a partir de 2015, que tirou a ultradireita das margens e lhe deu status de corrente política a ser levada em conta. Foi seu governo que sinalizou, a todo o mundo, o ressurgimento de um proto-fascismo com chances reais de poder. É sua derrocada, agora, que pode quebrar a ação em pinça da oligarquia financeira. No exato ponto em que a crise global voltará a recrudescer e exigir definições políticas; e em que há, nos Estados Unidos, um ambiente de mobilização social ainda sem projeto claro, mas com nítido caráter de crítica aguda ao capitalismo.
II. O grande déficit de imaginação política
Denunciar a ação em pinça da oligarquia financeira (e seu conluio com a ultradireita) sem investigar o que tornou isso possível é um exercício tolo de esperneio político. Pode aplacar corações amargurados por sucessivas derrotas, mas não cria as condições necessárias para superar estes reveses. O segundo fenômeno político global pós-2008 é o imenso déficit de imaginação política das esquerdas. Em todo este período, as ruas não deixaram de comparecer. Entre 2010 – quando eclodiu a Primavera Árabe, seguida pelos Indignados espanhóis e o Occupy Wall Street, nos EUA – e 2019, multiplicaram-se as revoltas populares contra a desigualdade. Foram quase sempre gigantescas e caóticas, como atesta 2013 no Brasil. Porém, os partidos que se dizem progressistas não souberam dar respostas — nem a elas nem, de forma mais ampla, à crise. Diante desta paralisia, a classe dos bilionários nadou de braçadas.
Ela obteve duas vitórias cruciais, nas disputas políticas dos últimos doze anos. A primeira foi promover, por meio da criação em massa de moeda, uma concentração monumental – porém silenciosa – de riquezas. Entre 2008 e o início da pandemia, os Bancos Centrais do centro do sistema (EUA, União Europeia, Reino Unido e Japão, especialmente) emitiram a partir do nada um volume de dinheiro que, segundo algumas estimativas, equivale a 40 trilhões de dólares, ou duas vezes o PIB norte-americano. Esta imensa massa de recursos (equivalente a R$ 30 mil por habitante do planeta) não foi, obviamente, distribuída de maneira equânime. Primeiro, os Estados salvaram os maiores bancos e corporações – comprando montanhas de “créditos podres”, aqueles que jamais seriam recuperados de outra forma. Em seguida, como a economia não se recuperasse, lançaram-se emissões maciças de dinheiro (“quantitative easing”) , para evitar ao menos que afundasse. Seguiam a lógica do “trickle-down”, “pingar em cima para escorrer para baixo”. Os trilhões foram criados para os possuidores de títulos públicos, ou seja, majoritariamente para o 0,1%.
Tudo foi feito sem alarde. As emissões dos bancos centrais dispensam as autorizações e os longos e desgastantes debates nos Parlamentos. Mas o efeito político foi dramático. Os bancos, cuja imprudência havia gerado a crise, safavam-se. Os Estados, que os salvaram, viram sua dívida explodir. Adotaram, na sequência, programas de “austeridade” que devastaram os serviços públicos. A oligarquia financeira ganhava, graças a sua ousadia, a primeira batalha. A emissão de dinheiro a partir do nada, nesta escala, era algo inteiramente novo. Porém, nenhum dos muitos governos de esquerda ousou fazer o mesmo em favor, por exemplo, da Saúde, da renovação da infraestrutura, da luta contra o aquecimento global ou da criação de programas de Renda Básica.
A segunda batalha que a direita venceu sem esforço foi a da construção de narrativas. As desigualdades ampliavam-se e a pobreza crescia desde a virada neoliberal, no final dos anos 1970. A crise aberta em 2008 acelerou este processo. Mas os governantes à esquerda – de Barack Obama, já em 2008 a Dilma Rousseff, em 2015 – nem o enfrentaram, nem o denunciaram. Engoliram-no.
Alguém iria buscar este capital político sem dono. Quem teve condições políticas de fazê-lo foi o proto-fascismo. Ao analisar os discursos de seus expoentes – Trump, Bolsonaro, o húngaro Orban, o italiano Salvini, a francesa Le Pen, o filipino Duterte –, percebe-se a repetição de um conjunto de fórmulas simplórias, criadas e aprimoradas em think tanks de direita e daí reproduzidas, com poucas novidades, em todo o mundo. Atacar “o establishment”, para capitalizar o justo ressentimento das maiorias. Confundi-lo, tirando proveito da baixa consciência política das maiorias. Apontar, como “elite”, o parlamentar ou o funcionário público qualificado (cujos privilégios estão expostos nos jornais); mas poupar os banqueiros, os acionistas das corporações, seus executivos e agregados (todos protegidos pelo silêncio da mídia). Identificar o líder de direita como o herói salvador, capaz de livrar as multidões da tirania do “sistema”. Rotular as opiniões em contrário (quer venham de políticos ou de cientistas) com parte de tramas conspiratórias.
Apesar de sua pouca sofisticação, estas narrativas tiveram notável eficácia até o início da pandemia. A contraposição a elas era escassa – embora bem-sucedida quando existente, como no caso do Chile. A derrota de Trump marca o possível início de uma virada global. Por isso, vale examiná-la melhor.
Denunciar a ação em pinça da oligarquia financeira (e seu conluio com a ultradireita) sem investigar o que tornou isso possível é um exercício tolo de esperneio político. Pode aplacar corações amargurados por sucessivas derrotas, mas não cria as condições necessárias para superar estes reveses. O segundo fenômeno político global pós-2008 é o imenso déficit de imaginação política das esquerdas. Em todo este período, as ruas não deixaram de comparecer. Entre 2010 – quando eclodiu a Primavera Árabe, seguida pelos Indignados espanhóis e o Occupy Wall Street, nos EUA – e 2019, multiplicaram-se as revoltas populares contra a desigualdade. Foram quase sempre gigantescas e caóticas, como atesta 2013 no Brasil. Porém, os partidos que se dizem progressistas não souberam dar respostas — nem a elas nem, de forma mais ampla, à crise. Diante desta paralisia, a classe dos bilionários nadou de braçadas.
Ela obteve duas vitórias cruciais, nas disputas políticas dos últimos doze anos. A primeira foi promover, por meio da criação em massa de moeda, uma concentração monumental – porém silenciosa – de riquezas. Entre 2008 e o início da pandemia, os Bancos Centrais do centro do sistema (EUA, União Europeia, Reino Unido e Japão, especialmente) emitiram a partir do nada um volume de dinheiro que, segundo algumas estimativas, equivale a 40 trilhões de dólares, ou duas vezes o PIB norte-americano. Esta imensa massa de recursos (equivalente a R$ 30 mil por habitante do planeta) não foi, obviamente, distribuída de maneira equânime. Primeiro, os Estados salvaram os maiores bancos e corporações – comprando montanhas de “créditos podres”, aqueles que jamais seriam recuperados de outra forma. Em seguida, como a economia não se recuperasse, lançaram-se emissões maciças de dinheiro (“quantitative easing”) , para evitar ao menos que afundasse. Seguiam a lógica do “trickle-down”, “pingar em cima para escorrer para baixo”. Os trilhões foram criados para os possuidores de títulos públicos, ou seja, majoritariamente para o 0,1%.
Tudo foi feito sem alarde. As emissões dos bancos centrais dispensam as autorizações e os longos e desgastantes debates nos Parlamentos. Mas o efeito político foi dramático. Os bancos, cuja imprudência havia gerado a crise, safavam-se. Os Estados, que os salvaram, viram sua dívida explodir. Adotaram, na sequência, programas de “austeridade” que devastaram os serviços públicos. A oligarquia financeira ganhava, graças a sua ousadia, a primeira batalha. A emissão de dinheiro a partir do nada, nesta escala, era algo inteiramente novo. Porém, nenhum dos muitos governos de esquerda ousou fazer o mesmo em favor, por exemplo, da Saúde, da renovação da infraestrutura, da luta contra o aquecimento global ou da criação de programas de Renda Básica.
A segunda batalha que a direita venceu sem esforço foi a da construção de narrativas. As desigualdades ampliavam-se e a pobreza crescia desde a virada neoliberal, no final dos anos 1970. A crise aberta em 2008 acelerou este processo. Mas os governantes à esquerda – de Barack Obama, já em 2008 a Dilma Rousseff, em 2015 – nem o enfrentaram, nem o denunciaram. Engoliram-no.
Alguém iria buscar este capital político sem dono. Quem teve condições políticas de fazê-lo foi o proto-fascismo. Ao analisar os discursos de seus expoentes – Trump, Bolsonaro, o húngaro Orban, o italiano Salvini, a francesa Le Pen, o filipino Duterte –, percebe-se a repetição de um conjunto de fórmulas simplórias, criadas e aprimoradas em think tanks de direita e daí reproduzidas, com poucas novidades, em todo o mundo. Atacar “o establishment”, para capitalizar o justo ressentimento das maiorias. Confundi-lo, tirando proveito da baixa consciência política das maiorias. Apontar, como “elite”, o parlamentar ou o funcionário público qualificado (cujos privilégios estão expostos nos jornais); mas poupar os banqueiros, os acionistas das corporações, seus executivos e agregados (todos protegidos pelo silêncio da mídia). Identificar o líder de direita como o herói salvador, capaz de livrar as multidões da tirania do “sistema”. Rotular as opiniões em contrário (quer venham de políticos ou de cientistas) com parte de tramas conspiratórias.
Apesar de sua pouca sofisticação, estas narrativas tiveram notável eficácia até o início da pandemia. A contraposição a elas era escassa – embora bem-sucedida quando existente, como no caso do Chile. A derrota de Trump marca o possível início de uma virada global. Por isso, vale examiná-la melhor.
III. Como a pandemia reembaralha o cenário
Gravado por Bernie Sanders na última sexta-feira, o vídeo abaixo é um sinal de enorme sabedoria tática – e da grande mudança de cenário que está se tornando possível, no Ocidente, nos últimos meses. Em aliança com uma vasta rede de movimentos sociais, Sanders postulou – e esteve próximo de obter – a candidatura à Casa Branca pelo Partido Democrata, tanto em 2016 quanto em 2020. Foi derrotado por Biden em abril, após articulações de bastidor da máquina partidária, que julgou suas ideias muito radicais. Perdeu a batalha, mas continuou no prumo. Graças a ele e a gente como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, grande parte dos movimentos que tomaram as ruas de seu país em junho e julho, nos protestos do Black Lives Matter, entraram na campanha para derrotar Trump. Sua ação, em especial entre a geração de eleitores mais jovens e críticos, foi incansável e extremamente efetiva. Sem eles, a vitória do Partido Democrata nas eleições presidenciais seria impossível.
Mas agora, Bernie Sanders volta à cena para lembrar que este apoio não era um cheque em branco. Ao contrário: ele, que é senador pelo estado de Vermont, anuncia que apresentará, “em algumas semanas”, sua própria agenda para o país. Ela é o oposto do déficit de imaginação política que marcou a esquerda nos últimos doze anos – e tem potência para deslocar o centro de gravidade do debate político. Inclui uma ampla transição para a lógica do Comum: Saúde como direito de todos, não mais mercadoria; alívio das dívidas dos estudantes; garantia de que qualquer filho de trabalhador poderá cursar a universidade sem endividar-se. Avança para os temas do Trabalho: combater os salários de fome e facilitar o direito à sindicalização. Incorpora os ideias centrais do Green New Deal, ou “virada sociambiental”: transitar para uma economia pós-carbono. Fazê-lo por meio da criação, no setor público, de milhões de empregos bem-remunerados, em atividades que vão da construção de ferrovias à substituição do petróleo por centrais eólicas e solares, à despoluição dos rios e à reconstituição das florestas originais.
Como esta agenda – tão radicalmente oposta ao “consenso” neoliberal pós-2008 – poderia migrar para o centro do debate político, mesmo nos EUA? Para compreender, vale olhar para as consequências da pandemia de covid-19. Do ponto de vista sanitário, ela escancarou a falsidade do discurso populista de direita. Um texto recente da cientista política Chantall Mouffe ajuda a compreender. Os líderes da ultradireita precisam vender a seus apoiadores a ideia de que oferecem proteção, num mundo marcado por desamparo, crise dos antigos valores e insegurança. Mas não podem cumprir a promessa, porque são incapazes de romper seus vínculos com a oligarquia financeira – e esta exige mercantilização (inclusive da Saúde), concentração de riquezas, redução do gasto social. A agenda da proteção, frisa Mouffe, precisa e pode ser bandeira de uma nova esquerda.
Além disso, do ponto de vista econômico, há adiante um enorme terreno de incertezas. Desde março, os bancos centrais lançaram uma nova rodada de quantitative easing, em velocidade ainda maior que a do pós-2008. Nos EUA, o Federal Reserve anunciou publicamente que a emissão de dinheiro seria “infinita” (infinite quantitative easing), sempre que necessário para evitar a quebra dos mercados financeiros. Inundadas de dinheiro, as bolsas de valores sobem e exultam.
Mas por quanto tempo poderão manter-se assim, se por todo o Ocidente crescem o desemprego, o endividamento, a quebradeira de pequenas empresas; se uma segunda onda da pandemia está se espalhando pelo mundo; e se vão se esvaindo os programas que garantiam, como no Brasil, auxílio temporário aos mais pobres?
Estranhos e tortuosos são os caminhos da luta de classes. Graças a Bernie Sanders, Joe Biden está eleito. Mas graças à eleição de um democrata conservador, a agenda pós-capitalista de Sanders pode estar a um passo de ocupar o centro do debate público.
Mas… e no Brasil?
Gravado por Bernie Sanders na última sexta-feira, o vídeo abaixo é um sinal de enorme sabedoria tática – e da grande mudança de cenário que está se tornando possível, no Ocidente, nos últimos meses. Em aliança com uma vasta rede de movimentos sociais, Sanders postulou – e esteve próximo de obter – a candidatura à Casa Branca pelo Partido Democrata, tanto em 2016 quanto em 2020. Foi derrotado por Biden em abril, após articulações de bastidor da máquina partidária, que julgou suas ideias muito radicais. Perdeu a batalha, mas continuou no prumo. Graças a ele e a gente como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, grande parte dos movimentos que tomaram as ruas de seu país em junho e julho, nos protestos do Black Lives Matter, entraram na campanha para derrotar Trump. Sua ação, em especial entre a geração de eleitores mais jovens e críticos, foi incansável e extremamente efetiva. Sem eles, a vitória do Partido Democrata nas eleições presidenciais seria impossível.
Mas agora, Bernie Sanders volta à cena para lembrar que este apoio não era um cheque em branco. Ao contrário: ele, que é senador pelo estado de Vermont, anuncia que apresentará, “em algumas semanas”, sua própria agenda para o país. Ela é o oposto do déficit de imaginação política que marcou a esquerda nos últimos doze anos – e tem potência para deslocar o centro de gravidade do debate político. Inclui uma ampla transição para a lógica do Comum: Saúde como direito de todos, não mais mercadoria; alívio das dívidas dos estudantes; garantia de que qualquer filho de trabalhador poderá cursar a universidade sem endividar-se. Avança para os temas do Trabalho: combater os salários de fome e facilitar o direito à sindicalização. Incorpora os ideias centrais do Green New Deal, ou “virada sociambiental”: transitar para uma economia pós-carbono. Fazê-lo por meio da criação, no setor público, de milhões de empregos bem-remunerados, em atividades que vão da construção de ferrovias à substituição do petróleo por centrais eólicas e solares, à despoluição dos rios e à reconstituição das florestas originais.
Como esta agenda – tão radicalmente oposta ao “consenso” neoliberal pós-2008 – poderia migrar para o centro do debate político, mesmo nos EUA? Para compreender, vale olhar para as consequências da pandemia de covid-19. Do ponto de vista sanitário, ela escancarou a falsidade do discurso populista de direita. Um texto recente da cientista política Chantall Mouffe ajuda a compreender. Os líderes da ultradireita precisam vender a seus apoiadores a ideia de que oferecem proteção, num mundo marcado por desamparo, crise dos antigos valores e insegurança. Mas não podem cumprir a promessa, porque são incapazes de romper seus vínculos com a oligarquia financeira – e esta exige mercantilização (inclusive da Saúde), concentração de riquezas, redução do gasto social. A agenda da proteção, frisa Mouffe, precisa e pode ser bandeira de uma nova esquerda.
Além disso, do ponto de vista econômico, há adiante um enorme terreno de incertezas. Desde março, os bancos centrais lançaram uma nova rodada de quantitative easing, em velocidade ainda maior que a do pós-2008. Nos EUA, o Federal Reserve anunciou publicamente que a emissão de dinheiro seria “infinita” (infinite quantitative easing), sempre que necessário para evitar a quebra dos mercados financeiros. Inundadas de dinheiro, as bolsas de valores sobem e exultam.
Mas por quanto tempo poderão manter-se assim, se por todo o Ocidente crescem o desemprego, o endividamento, a quebradeira de pequenas empresas; se uma segunda onda da pandemia está se espalhando pelo mundo; e se vão se esvaindo os programas que garantiam, como no Brasil, auxílio temporário aos mais pobres?
Estranhos e tortuosos são os caminhos da luta de classes. Graças a Bernie Sanders, Joe Biden está eleito. Mas graças à eleição de um democrata conservador, a agenda pós-capitalista de Sanders pode estar a um passo de ocupar o centro do debate público.
Mas… e no Brasil?
IV. Haverá esperança – até mesmo no Brasil?
A espantosa paralisia da esquerda brasileira, que até há pouco era debatida nos textos de poucos analistas, aparece agora de forma cada vez mais escancarada. Ricardo Kotscho, apoiador e amigo pessoal de Lula há décadas, lembrou no final de outubro que o PT chega ás eleições “envelhecido, sem votos e sem rumo”.
Aqui, não há apenas déficit de imaginação política mas, além disso, alienação desconcertante em relação aos dramas da maioria. Pense em três temas recentes – o fim iminente do Auxílio Emergencial de R$ 600, o aumento visível a olho nu do número de pessoas forçadas a viver nas ruas e a alta aguda dos preços da comida. Procure lembrar sobre quais deles você tomou conhecimento de ações de mobilização ou simples denúncia, por parte dos partidos progressistas institucionais. A reflexão trará constrangimentos. O espaço deste artigo não permite aprofundar o tema, mas parece evidente que, no Brasil, a extrema institucionalização da esquerda afastou-a tanto dos problemas reais da população que ela agora tem como pauta central sua própria volta ao poder. Daí boa parte de seu distanciamento – e do espaço que Bolsonaro encontra para prosseguir em sua trajetória criminosa.
Felizmente, as eleições de 2020 estão sugerindo que algo se move. Três tendências sobressaem. Primeira: ao menos nas capitais, o presidente tem sido incapaz de levar seus aliados à vitória. Em duas delas – São Paulo e Rio –, Celso Russomano e Marcelo Crivella derrapam e talvez sequer cheguem ao segundo turno. Mesmo em Fortaleza, onde o candidato do ex-capitão liderava há poucos dias, aumentam as chances de ser sobrepujado, no caso pelo postulante do PDT.
A segunda tendência é um sinal de que os candidatos de esquerda e centro-esquerda tendem a sair-se um pouco melhor do que era prever há poucos meses. Há chances claras de vitória pelo menos em Belém (Edmilson Rodrigues-PSOL), Recife (João Campos-PSB ou Marília Arraes-PT), Aracaju (Edvaldo Nogueira-PDT), Vitória (João Coser-PT) e Porto Alegre (Manuela Dávila-PCdoB). Há crescimento expressivo e possibilidades reais de passar ao segundo turno em São Paulo (Guilherme Boulos-PSOL), Rio de Janeiro (Marta Rocha-PDT ou Benedita Silva-PT) e Fortaleza (José Sarto-PT e Luizianne Lins-PT). É pouco, mas não é desprezível, — especialmente comparado aos desastres das eleições anteriores, em 2016.
Por fim, estes possíveis resultados projetam a emergência de uma esquerda mais plural e aberta. Caso os prognósticos se concretizem, ela será menos subordinada à centralidade de um só partido, cuja burocratização produziu tanta paralisia. Talvez seja, também, mais aberta a uma colaboração com os movimentos sociais.
Se esta hipótese esperançosa se concretizar, será importante que os resultados não passem em branco. A provável derrota de Bolsonaro precisa ser celebrada, para que não perdure a hipótese falsa de sua popularidade persistente. E, em meio ao risco de uma segunda onda de covid, os prefeitos recém-eleitos que se empenham pelo Comum poderiam – como contraponto à negligência e omissão do governo federal – articular formas imediatas de colaboração entre si. Melhor ainda se elas incluírem organizações que simbolizam o protagonismo da sociedade civil. Há muitas delas, por exemplo, no campo da Saúde pública.
As mudanças de cenário trazem, às vezes, oportunidades imprevistas. É possível que uma delas esteja se armando no Brasil, no próximo domingo. Será inteligente não desperdiçá-la…
A espantosa paralisia da esquerda brasileira, que até há pouco era debatida nos textos de poucos analistas, aparece agora de forma cada vez mais escancarada. Ricardo Kotscho, apoiador e amigo pessoal de Lula há décadas, lembrou no final de outubro que o PT chega ás eleições “envelhecido, sem votos e sem rumo”.
Aqui, não há apenas déficit de imaginação política mas, além disso, alienação desconcertante em relação aos dramas da maioria. Pense em três temas recentes – o fim iminente do Auxílio Emergencial de R$ 600, o aumento visível a olho nu do número de pessoas forçadas a viver nas ruas e a alta aguda dos preços da comida. Procure lembrar sobre quais deles você tomou conhecimento de ações de mobilização ou simples denúncia, por parte dos partidos progressistas institucionais. A reflexão trará constrangimentos. O espaço deste artigo não permite aprofundar o tema, mas parece evidente que, no Brasil, a extrema institucionalização da esquerda afastou-a tanto dos problemas reais da população que ela agora tem como pauta central sua própria volta ao poder. Daí boa parte de seu distanciamento – e do espaço que Bolsonaro encontra para prosseguir em sua trajetória criminosa.
Felizmente, as eleições de 2020 estão sugerindo que algo se move. Três tendências sobressaem. Primeira: ao menos nas capitais, o presidente tem sido incapaz de levar seus aliados à vitória. Em duas delas – São Paulo e Rio –, Celso Russomano e Marcelo Crivella derrapam e talvez sequer cheguem ao segundo turno. Mesmo em Fortaleza, onde o candidato do ex-capitão liderava há poucos dias, aumentam as chances de ser sobrepujado, no caso pelo postulante do PDT.
A segunda tendência é um sinal de que os candidatos de esquerda e centro-esquerda tendem a sair-se um pouco melhor do que era prever há poucos meses. Há chances claras de vitória pelo menos em Belém (Edmilson Rodrigues-PSOL), Recife (João Campos-PSB ou Marília Arraes-PT), Aracaju (Edvaldo Nogueira-PDT), Vitória (João Coser-PT) e Porto Alegre (Manuela Dávila-PCdoB). Há crescimento expressivo e possibilidades reais de passar ao segundo turno em São Paulo (Guilherme Boulos-PSOL), Rio de Janeiro (Marta Rocha-PDT ou Benedita Silva-PT) e Fortaleza (José Sarto-PT e Luizianne Lins-PT). É pouco, mas não é desprezível, — especialmente comparado aos desastres das eleições anteriores, em 2016.
Por fim, estes possíveis resultados projetam a emergência de uma esquerda mais plural e aberta. Caso os prognósticos se concretizem, ela será menos subordinada à centralidade de um só partido, cuja burocratização produziu tanta paralisia. Talvez seja, também, mais aberta a uma colaboração com os movimentos sociais.
Se esta hipótese esperançosa se concretizar, será importante que os resultados não passem em branco. A provável derrota de Bolsonaro precisa ser celebrada, para que não perdure a hipótese falsa de sua popularidade persistente. E, em meio ao risco de uma segunda onda de covid, os prefeitos recém-eleitos que se empenham pelo Comum poderiam – como contraponto à negligência e omissão do governo federal – articular formas imediatas de colaboração entre si. Melhor ainda se elas incluírem organizações que simbolizam o protagonismo da sociedade civil. Há muitas delas, por exemplo, no campo da Saúde pública.
As mudanças de cenário trazem, às vezes, oportunidades imprevistas. É possível que uma delas esteja se armando no Brasil, no próximo domingo. Será inteligente não desperdiçá-la…
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