Por Antônio Augusto de Queiroz, na revista Teoria e Debate:
O governo do presidente Jair Bolsonaro, sob qualquer perspectiva que se avalie, apresenta falhas, insuficiências ou descompromissos com as funções para as quais foi eleito: chefe de governo, chefe de Estado e líder da nação. Neste texto vamos analisar três dimensões da atuação governamental: na produção legislativa no primeiro ano de mandato, tendo como parâmetro o primeiro ano de quatro presidentes anteriores, na qualidade ou conteúdo das políticas públicas propostas nestes dois anos de governo e na relação intergovernamental com os entes subnacionais.
Mede-se a efetividade de um governo, entre outros critérios, pela capacidade de manter controle sobre sua agenda política, pela capacidade de atender às demandas da população, com políticas públicas de qualidade e inclusivas, e também pela capacidade de coordenação intergovernamental, na relação com os entes subnacionais – estados e municípios. E em todos esses quesitos o governo Bolsonaro falhou. Para medir o controle da agenda, consideramos o número de leis aprovadas, o número de medidas provisórias que perderam eficácia ou foram rejeitadas e a quantidade de vetos derrubados pelo Congresso Nacional, conforme segue.
Em levantamento realizado por mim sobre a quantidade de leis ordinárias que tiveram iniciativa no Poder Executivo no primeiro ano de mandato de quatro presidentes da República do Brasil, o governo Bolsonaro foi o único em que o número de leis de iniciativa do Poder Legislativo superou as de iniciativa do Poder Executivo, numa clara demonstração de incapacidade de relacionamento com o Congresso Nacional. Considerou-se o período de fevereiro a fevereiro e não de janeiro a dezembro porque, em começo de mandato, a sessão legislativa se inicia em fevereiro.
Como é possível notar na tabela [aqui], em relação à iniciativa das leis, enquanto no governo FHC a relação entre Executivo e Legislativo era de 210 para 61, no governo Lula de 145 para 45, no governo Dilma de 105 para 89, no governo Bolsonaro foi de 79 a 90, com o Poder Legislativo superando o Poder Executivo na produção legislativa de sua iniciativa.
Quanto ao número de Medidas Provisórias (MPV) convertidas em lei, considerando o período em que passou a ser proibida a reedição de MPV, foi também o governo Bolsonaro quem teve o pior desempenho. Embora na tabela abaixo apareça o governo FHC, mas no período dele era possível editar MPV e todas as reeditas foram tidas como se tivessem perdido a eficácia, o que distorce a estatística.
Como é possível notar na tabela [aqui], enquanto nos governos Lula e Dilma houve, respectivamente, uma e seis MPVs que perderam a eficácia, no governo Bolsonaro 26 deixaram de ser apreciadas dentro do prazo de 120 dias, caracterizando mais uma demonstração de descontrole da agenda legislativa de seu governo.
Em relação ao número de vetos derrubados pelo Congresso Nacional, igualmente, foi no governo Bolsonaro que houve a maior quantidade. Embora até 2012 não houvesse a obrigatoriedade de votação em 30 dias de vetos, matéria publicada no jornal Estado de Minas, edição de 14 de agosto de 2020, informa que no governo Bolsonaro houve perda de controle dos vetos presidenciais, conforme segue:
“Jair Bolsonaro se tornou, na quarta-feira, 13, o presidente da República com mais derrotas em votações de vetos no Congresso. Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, Bolsonaro teve 24 decisões revertidas pelos parlamentares, o que corresponde a um terço do total de projetos barrados pelo presidente e analisados pelo Legislativo no período. O número é maior do que a soma de todos os reveses sofridos pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, que permaneceram oito anos na Presidência.
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A comparação com governos anteriores mostra que a derrubada de um veto presidencial era algo raro. Na gestão Lula (PT), por exemplo, foram derrubados apenas dois dos 357 itens vetados (0,56%). Até então, Michel Temer (MDB), que ficou pouco mais de dois anos no cargo, era o presidente que mais registrava derrotas deste tipo, com 21 reveses (16,4% do total)”.
Nesse ponto sobre a relação com o Congresso, pelo menos no primeiro ano de mandato, o governo Bolsonaro foi um completo fracasso. Isso se deve, em grande medida, ao descompromisso com aquilo que propõe, ao descaso para com o Congresso, que até recentemente hostilizava, e principalmente à incapacidade de articulação política.
Quando se analisa o conteúdo das iniciativas legislativas do governo, nota-se claramente que se trata de um governo insensível socialmente, liberal economicamente, e fiscalista do ponto de vista da gestão, na medida em que busca, de um lado, abrir o Estado à iniciativa privada, e, de outro, controlar o gasto público apenas pelo lado da despesa, cortando direitos e gastos sociais, sem qualquer preocupação em melhorar a arrecadação para custear políticas públicas de interesse da população.
Em nível constitucional, por exemplo, as principais propostas do governo Bolsonaro se destinam a aprofundar o ajuste fiscal e o desmonte do serviço público, sempre pelo lado da despesa, buscando o corte de direitos, cuja consequência é a redução da presença dos mais pobres no orçamento. São exemplos: a PEC 6/2019, da reforma da Previdência, transformada na Emenda Constitucional nº 103, que aumentou a idade mínima e o tempo de contribuição e diminuiu o valor dos benefícios previdenciários; as PECs 186/2019 e 188/2019, conhecidas respectivamente como PEC Emergencial e do Pacto Federativo, apresentadas pelo líder do governo no Senado, com o propósito de ampliar o congelamento do gasto público; e mais recentemente a PEC 32/2020, da reforma administrativa, que desorganiza o serviço público.
Caso venham a ser aprovadas, essas três PECs (emergencial, do pacto federativo e da reforma administrativa), os governos federal, estadual e municipal ficam impedidos de criar novas políticas públicas que resultem em gasto permanente, na medida em que está previsto a suspensão automática de todas as despesas permanentes sempre que se configurar uma das seguintes situações: o teto de gasto for ultrapassado; a regra de ouro for descumprida; for ultrapassado o limite de gasto com pessoal; e a despesa corrente superar a receita corrente. Se qualquer dessas hipóteses vier a acontecer, será acionado um gatilho que congela os gastos, autoriza a redução de jornada com redução de salários do servidor público, além de proibir novos concursos e contratações na administração pública. Essa proibição de aumento de gasto também vale para os direitos sociais do artigo 6º da Constituição (educação, saúde, alimentação, moradia, lazer, segurança, Previdência Social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados), assim como para os benefícios previdenciários e assistenciais e os programas sociais mantidos pelos três níveis de governo, que também ficam proibidos de realizar novos concursos e contratações na administração pública.
Em nível de lei ordinária, podemos citar as Medidas Provisórias (MPV) n° 873/2019, que asfixiava financeiramente as entidades sindicais, proibindo o desconto em folha; nº 905/2019, destinada a instituir a Carteira Verde e Amarela, com a precarização de direitos trabalhistas e previdenciários; nº 922, que autorizava a contratação temporária, sem limite, de servidores públicos, burlando o princípio do concurso público; e nº 927/2020, que, entre outras propostas absurdas, permitia a redução de jornada e salário, inclusive a suspensão do contrato de trabalho, por acordo individual direta entre patrões e empregados. Felizmente, todas essas MPs perderam a eficácia.
Na relação intergovernamental, com os entes subnacionais – estados e municípios –, o governo Bolsonaro, igualmente, se relevou um fracasso no enfrentamento à Covid-19. Incapaz de coordenar e articular ações conjuntas, não apenas abandonou como também hostilizou os governos estaduais e municipais durante o período da pandemia, questionando o isolamento social decretado por prefeitos e governadores, além de se omitir no enfrentamento à maior crise sanitária e de saúde pública a que o país foi submetido. Não fosse o Congresso Nacional, de um lado, tomando iniciativas legislativas, como o Orçamento de guerra, a Lei Complementar 173/2020, com ajuda aos estados e municípios, e a lei ordinária de ajuda humanitária de R$ 600, e, de outro, as ações de combate à pandemia lideradas por prefeitos e governadores, a população teria sido largada à própria sorte.
Como se pode depreender desse pequeno balanço, o governo Bolsonaro se revela ineficaz do ponto de vista operacional, desastroso, do ponto de vista político, e insensível do ponto de vista social. Esperamos que a vitória de Joe Biden para a Presidência dos Estados Unidos, que impediu a reeleição de Donald Trump, um governante cujo estilo, o modus operandi, é imitado por Bolsonaro, sirva de exemplo aos brasileiros para que, caso não seja possível interromper o atual mandato, em 2022 se derrote nas urnas esse projeto antissocial e antinacional patrocinado por Bolsonaro e companhia.
* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV/DF, diretor de Documentação licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”
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