Por Luis Nassif, no Jornal GGN:
Ontem foi um jorrar de informações jornalísticas, boatos, rumores de toda ordem.
Juntando todos os elementos em uma narrativa lógica, é possível entender o que está por trás das loucuras e do recuo de Jair Bolsonaro.
Peça 1 – Bolsonaro perde os caninos
A peça central dessa ópera bufa são as investigações das fake news, conduzidas pelo Ministro Alexandre de Moraes. Elas continuaram avançando, aparentemente chegaram ao destino final – os financiadores – e colocaram na alça de mira o filho Carlos Bolsonaro e o próprio Jair.
É esse fato que gerou todos os desequilíbrios de Bolsonaro e induziu-o aos desafios à democracia, nos eventos de 7 de Setembro, e à sua tentativa de antecipar o golpe de Estado marcado para 2022.
No evento, Bolsonaro repetiu o valentão de todos os tempos.
Com os seguidores, sentiu-se fortalecido, bradou, blasfemou, ameaçou. No dia seguinte voltou à realidade, ele sozinho contra as instituições.
Os abusos do dia 7 provocaram riscos de ruptura em dois pontos de apoio de Bolsonaro: as Forças Armadas e o Centrão.
Há menção na mídia de recados que teriam sido passados pelo Alto Comando a Bolsonaro, sobre os riscos de jogar o país na anarquia.
Por outro lado, houve manifestações em defesa das instituições da parte do presidente da Câmara Arthur Lira, do Senado, Rodrigo Pacheco, e do Procurador Geral Augusto Aras.
Barroso não é Alexandre Moraes, capaz de correr riscos em pleno apogeu de Bolsonaro.
Barroso só caminha em terreno firme.
Aliás, o comportamento de Barroso lembra o clássico “O homem que matou o facínora”. James “Luís Roberto Barroso” Stewart desafia o pistoleiro Lee “Bolsonaro” Marvin. Mas quem atira, de fato, é John “Alexandre Moraes” Wayne.
Ontem, o duríssimo discurso do Ministro Luís Roberto Barroso claramente refletiu os novos tempos. Sem a garantia expressa de que Bolsonaro tinha perdido seus dois caninos – o que foi confirmado poucas horas depois – Barroso jamais avançaria na retórica daquele modo desafiador.
A única diferença é que, no filme, o advogado mocinho desafiou o pistoleiro de peito aberto, sem a garantia de que teria respaldo do outro mocinho.
Peça 2 – o fator Michel Temer
Se Barroso é basicamente um personagem de marketing, seu colega Gilmar Mendes é o conhecedor das entranhas do poder.
Provavelmente foi um dos tecelões do novo pacto que se está montando, tendo como parceiro Arthur Lira, presidente da Câmara, Ciro Nogueira, o PGR Augusto Aras e fontes militares confiáveis.
Como dissemos em outro Xadrez, Bolsonaro não tinha envergadura política, nem alcance intelectual, sequer para negociar uma anistia ampla pós-governo, para ele e sua família. Ele é um bruto, um tosco que só sabe resolver diferenças no braço.
No braço, no caso, foi organizar as manifestações de 7 de Setembro, estimular a participação de policiais armados e, depois, dar-se conta de que a fantasia se esfumaçou no dia 8.
Aí entrou em pânico.
Não foi de Bolsonaro a iniciativa de chamar Temer. Ele a aceitou como bóia de salvação e entrou no pacto pagando um alto preço.
Peça 3 – o falso pastor Jim Jones
O pacto acertado impôs a Bolsonaro sua mais dura derrota. Exigiu-se dele:
A carta à Nação, pedindo desculpas até o limite da humilhação.
O humilhante telefonema a Alexandre Moraes,
Não foi apenas um gesto de recuo tático.
Com sua decisão, Bolsonaro se queima com seus seguidores. Até então, os fanáticos eram a única arma com a qual ele contava.
Para manter esse ponto de apoio, valia tudo.
Logo após a divulgação da carta, youtubers bolsonaristas, líderes da quadrilha que invadiu o Planalto, das quadrilhas que atuaram nas rodovias, o próprio Zé Trovão, trataram de desautorizar o, até então, chefe maior.
Sem liderança, nem rumo, deram declarações confusas de que manteriam as manifestações contra o STF, e não de apoio a Bolsonaro, uma incongruência à altura do seu nível intelectual.
Nos próximos dias, assistirão, bestializados, as milícias que pararam as rodovias sendo caçadas pela Polícia Federal e pela Polícia Rodoviária Federal por todo o país.
O efeito do recuo de Bolsonaro sobre seus fiéis seria o mesmo que o reverendo Jim Jones, depois de induzir 900 seguidores ao suicídio coletivo, voltasse atrás e deixasse os fiéis estrebuchando.
A diferença é que Jim Jones era um fanático autêntico e Bolsonaro apenas um manipulador do fanatismo alheio.
O pacto não se resumiu a isso.
Há mais pontos de interesse unindo os principais personagens:
1. Ontem mesmo, Alexandre de Moraes determinou ao Conselho Nacional do Ministério Público a suspensão da análise de pedido de investigação contra o PGR Augusto Aras. Aliás, quem conhece Aras sabia, desde o início, que a blindagem a Bolsonaro era uma questão tática.
2. Arthur Lira está nas mãos de Gilmar Mendes. Três ações de improbidade administrativa contra Arthur Lira estão paradas no STF, suspensas pelo Ministro Gilmar Mendes. Outras ações, que o acompanham desde o início da década de 2010, também paradas no Supremo.
O pacto permitirá a Lira manter a presidência do Congresso e a articulação do Centrão; blindará Aras contra as ações judiciais que pipocariam em todas as instâncias, depois que ele deixasse o comando da PGR; garantirá algum tempo a mais para a concretização dos grandes negócios da privatização. E, principalmente, haverá uma reaglutinação da direita contra a ameaça Lula.
Peça 4 – a nova etapa do jogo
Bolsonaro sossegará o facho? Sossegará. Ele é mente primária, valentão de torcida organizada.
Terá outras recaídas, berrará, baterá a cabeça na parede, mas não assustará mais nem as emas do Palácio, nem avançará nos arroubos retóricos públicos.
Como malandro-que-se-faz-de-louco que é, sabe que Alexandre de Moraes continuará com a bala de prata, pronto para atirar no primeiro filho a qualquer novo exagero retórico.
Além disso, depois da enorme mobilização para os comícios de São Paulo e Brasília, para a invasão da praça dos Três Poderes, e de ver dois dias depois o chefe maior se humilhando perante os adversários, que seguidor repetirá o ato de solidariedade?
Definitivamente, Bolsonaro virou carta fora do trabalho, perdão, do baralho também.
A partir de agora, em cima do vácuo criado pelos episódios, haverá dois movimentos políticos relevantes.
Do lado dos Centrões – o político, o militar e o jurídico – a tentativa de reconstruir o pacto com Supremo e com tudo, para enfrentar o adversário comum: a candidatura Lula. E, principalmente, para terminar a obra de desconstrução nacional, consolidando o grande negócio da privatização.
A direita órfã, que provavelmente irá desaguar ou no PSDB – espelho mais sociável do bolsonarismo – ou nos DEMs da vida.
E se limitará a louquinhos de palanque.
Peça 5 – Brasil e sua melhor tradução
Agora, o Brasil velho de guerra volta a se manifestar. O pacto será a imagem de Michel Temer, a melhor tradução do país institucional.
O presidente que foi gravado indicando um intermediário para um encontro com o subornador; o intermediário gravado saindo do encontro com uma pasta com R $500 mil, o político pequeno, encantador do baixo clero, o deputado eleito pelo jogo de bicho, que passou toda sua vida política se alimentando do feudo do porto de Santos, voltará a frequentar o panteão dos grandes nomes nacionais.
Até a gloriosa Ordem dos Advogados do Brasil e seu aguerrido presidente, Felipe Santa Cruz, prestam loas a Temer, a cara do Brasil.
Só há um porém.
No meio do caminho há 650 mil vítimas da Covid e dos desmandos de Bolsonaro; políticas públicas essenciais desmontadas; retrocessos imensos em todos os campos, nas políticas sociais, na educação, na política econômica. enriquecimento explícito dos filhos. E há sócios nessa tragédia, por ação ou omissão: militares, políticos, magistrados.
Tudo terminará em pizza novamente, com Supremo e com tudo? Os 650 mil mortos serão apenas uma peça a mais do jogo político?
Por mais que tentem, em nossos olhos cansados haverá no meio do caminho, sempre a imagem de 650 mil mortos, de 120 mil crianças órfãs, de centenas de milhares de vulneráveis abandonados pelas políticas públicas.
Definitivamente, o Brasil não se suicidará novamente.
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