quarta-feira, 21 de maio de 2014

Venezuela e as manipulações da mídia

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Por Salim Lamrani, no site Opera Mundi:

Apesar de a violência mortífera que ataca o país desde fevereiro de 2014 ser resultado de ações da oposição, os meios de comunicação ocidentais insistem em acusar o governo democrático de Nicolás Maduro.

Desde 1998, a oposição venezuelana tem rejeitado os resultados das eleições democráticas, com uma exceção: reconheceu a legitimidade de sua vitória no referendo constitucional de 2 de dezembro de 2007, o qual ganhou com uma margem inferior a 1%. Assim, a direita se opôs resoluta aos governos de Hugo Chávez de 1999 a 2013 e ao de Nicolás Maduro desde abril de 2013. Utilizou todos os métodos para derrubá-los: golpe de Estado, assassinatos políticos, sabotagem petroleira, guerra econômica, convocações a revoltas e campanhas midiáticas de desprestígio.

Desde fevereiro de 2014, a Venezuela é vítima de uma violência mortífera que custou a vida de mais de 40 pessoas, entre elas 5 membros da guarda nacional e um promotor da República. Mais de 600 pessoas ficaram feridas, entre elas 150 policiais, e os danos materiais superam os 10 bilhões de dólares: ônibus queimados, estações de metrô saqueadas, uma universidade —a UNEFA — completamente destroçada pelas chamas, dezenas de toneladas de produtos alimentícios destinados aos supermercados públicos reduzidos a cinzas, edifícios públicos e sedes ministeriais saqueados, instalações elétricas sabotadas, centros médicos devastados, instituições eleitorais destruídas etc. [1].

Frente a essa tentativa de desestabilização destinada a provocar uma ruptura da ordem constitucional, as autoridades venezuelanas deram uma resposta enérgica e começaram a prender vários líderes da oposição que fizeram apelos à insurreição ou promoveram atos de vandalismo, e quase mil pessoas envolvidas com a violência [2]. Como todo Estado de Direito e no estrito respeito às garantias constitucionais, a Justiça venezuelana julgou os acusados e lhes aplicou as sanções previstas no Código Penal para atos semelhantes [3].

Os meios de comunicação ocidentais denunciam atentados contra os direitos humanos. Ao mesmo tempo, omitem cuidadosamente os assassinatos que os manifestantes cometeram, as apreensões, por parte da polícia, de armas e explosivos entre esses grupos apresentados como pacíficos e as destruições de propriedades públicas e privadas [4].

De fato, a indignação midiática tem dois pesos e duas medidas e não se aplica de modo universal. Efetivamente, a imprensa observa um surpreendente silêncio quando os países ocidentais tomam medidas muito mais draconianas por distúrbios muito menos graves que os que atacam a Venezuela.

O caso da França é revelador. No dia 27de outubro de 2005, estouraram revoltas urbanas nos bairros populares de Paris e das grandes cidades do país, depois da morte acidental de dois adolescentes perseguidos pela polícia. A importância da violência - que não causou nenhum morte - era menor que a que atingiu a Venezuela nas últimas semanas.

Entretanto, a partir de 8 de novembro de 2005, o presidente Jacques Chirac decidiu declarar o estado de exceção em todo o país e instaurar um toque de recolher mediante o decreto 2005-1386, durante vários meses, aplicando assim a lei de 3 de abril de 1955 adotada durante... a guerra da Argélia. Essa lei, que não era utilizada desde 1961, suspende as garantias constitucionais e atenta gravemente contra as liberdade públicas já que permite “proibir o trânsito de pessoas”, “instituir zonas de proteção ou de segurança onde se regulamenta a permanência de pessoas” e declara “prisão domiciliar em uma circunscrição territorial para toda pessoa que resida na zona determinada pelo decreto” [5].

Da mesma maneira, “o ministro do Interior, para todo o território onde está instaurado o estado de exceção, e o prefeito da província, podem ordenar o fechamento provisório de salas de espetáculos, bares, restaurantes e locais de reunião de todo tipo nas zonas determinadas pelo decreto previsto no artigo 2. Podem também proibir, a título geral ou particular, as reuniões cuja natureza possa provocar ou alimentar a desordem.” [6].

A lei de 3 de abril de 1955 confere “às autoridades administrativas apontadas no artigo 8 o poder de ordenar registros de domicílio dia e noite” e habilita “as mesmas autoridades a tomarem todas as medidas para assegurar o controle da imprensa, das publicações de toda índole, assim como dos programas de rádio, das projeções cinematográficas e das representações teatrais” [7].

Essa lei dá o poder à Justiça Militar de substituir a Justiça Civil. Assim, “pode autorizar a jurisdição militar a se encarregar de crimes, assim como dos delitos que lhe são conexos, que competem [normalmente] ao tribunal regional”, em detrimento da jurisdição de direito comum [8].

Para justificar semelhantes medidas que contrariam a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), Paris evocou o artigo 15 da CEDH que autoriza “em caso de guerra ou de perigo público que ameace a vida da nação”, suspender as obrigações às quais a França tinha se comprometido [9].

Em nenhum momento a Venezuela - atacada por uma violência mais severa que a de 2005 na França - instaurou o estado de exceção, nem suspendeu as garantias constitucionais, nem atentou contra as liberdades públicas, nem impôs a Justiça Militar em detrimento da Justiça Civil.

Um exemplo mais recente é também ilustrativo. Depois dos distúrbios que aconteceram na cidade de Amiens, no dia 14 de agosto de 2012 que causaram danos materiais (uma escola e vários edifícios públicos incendiados) e feriram 17 policiais, a Justiça francesa sancionou severamente os autores desses delitos. Seis pessoas foram condenadas a penas de um a cinco anos de prisão [10]. O tribunal de menores de Amiens, inclusive, condenou cinco adolescentes de 14 a 17 anos a penas de até 30 meses de prisão [11].

Seria fácil multiplicar os exemplos. Quando a polícia de Nova York prendeu arbitrariamente mais de 700 manifestantes pacíficos, os quais foram vítimas de brutalidades por parte das forças da ordem, os meios de comunicação não acusaram o governo de Barack Obama de violar os direitos humanos [12].

Da mesma maneira, quando a polícia brasileira reprimiu violentamente os manifestantes pacíficos em São Paulo e prendeu 262 pessoas em um único dia, agredindo ao mesmo tempo vários jornalistas, os meios de comunicação, com razão, não colocaram em julgamento a legitimidade democrática da presidenta Dilma Rousseff [13].

Os meios de comunicação ocidentais são incapazes de mostrar imparcialidade quando se trata de abordar a complexa realidade venezuelana. A imprensa se nega a cumprir seu dever, que consiste em difundir todos os fatos e zomba do Código de Ética Jornalística. Prefere defender uma agenda política bem precisa, a qual vai contra os princípios elementares da democracia e da vontade do povo venezuelano expressada múltiplas vezes nas urnas.

Notas:

1. Agencia Venezolana de Noticias, "Violencia derechista en Venezuela destruye 12 centros de atención médica y electoral", 27 de março de 2014.
2. Salim Lamrani, "Se a oposição venezuelana fosse francesa... ", Opera Mundi, 11 de abril de 2014. (site consultado no dia 20 de maio de 2014).
3. EFE, "Lilian Tintori expone el caso de Leopoldo López ante autoridades españolas”, 18 de maio de 2014.
4. Paulo A. Paranagua, « Leopoldo Lopez, prisonnier politique numéro un du président vénézuélien Maduro », Le Monde, 22 de abril de 2014. (site consultado no dia 20 de maio de 2014).
5. Loi n°55-385 du 3 avril 1955 relatif à l’état d’urgence. (site consultado no dia 20 de maio de 2014).
6. Ibid.
7. Ibid.
8. Ibid.
9. Convention européenne des droits de l’homme, article 15. (site consultado no dia 20 de maio de 2014). 

10. Le Monde, « Emeutes d’Amiens : jusqu’à cinq ans de prison ferme pour les violences », 16 de maio de 2014. (site consultado no dia 20 de maio de 2014). 

11. Le Monde, « Emeutes d’Amiens : jusqu’à 2 ans de prison ferme des mineurs », 13 de mayo de 2014. (site consultado no dia 20 de maio de 2014). 

12. Sandro Pozzi, "La policía detiene a 700 indignados por ocupar el puente de Brooklyn", El País, 2 de outubro de 2011. 

13. María Martin, "Ativistas denunciam brutalidade policial durante o ato contra a Copa de São Paulo”, El País, 14 de febrero de 2014. (site consultado el 20 de mayo de 2014).

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