sábado, 10 de julho de 2010

O movimento perverso dos bancos

Reproduzo entrevista concedida à jornalista Natalia Aruguete e publicada no jornal argentino Página 12:

“Ao contrário do que aconteceu nos anos 90, quando se multiplicaram as crises nos mercados emergentes, a débâcle atual impacta o coração financeiro mundial. Os países em desenvolvimento mostram uma recuperação substancial e mais rápida que os Estados Unidos e a Europa”, assinala Carlos Marichal, historiador especializado em economia. Autor do recente livro “Nueva historia de las grandes crisis financieras”, Marichal é um reconhecido pesquisador mexicano, doutor pela Universidade de Harvard e professor visitante das Universidades de Stanford, Carlos III, Complutense de Madri e Autônoma de Barcelona.

Por que os atores chave desta crise não a anteciparam?

Paul Krugman, quando escreveu “O retorno da economia da depressão”, em 1999, antecipou este colapso financeiro. Naquele momento, o livro não teve sucesso porque todos estavam obcecados pelo auge de Wall Street, o maior de toda a história. Oito anos depois, com o Prêmio Nobel debaixo do braço e no meio da crise, fez uma atualização do livro [“A crise de 2008 e a economia da depressão”. Rio de Janeiro: Campus] com muito sucesso.

Mas, a análise focalizava os países periféricos.

Certo. A previsão era que as crises viriam da periferia. Não foram capazes de prever as fortes debilidades dos mercados financeiros mais importantes do mundo: Nova York e Londres.

A crise “ponto com” de 2001 não foi um aviso da débâcle de 2008?

Essa crise gerou um grande temor. Ao caírem todas as cotizações das empresas tecnológicas, o Federal Reserve reduziu imediatamente a taxa de juros de quase 6% para mais ou menos 1%. A mais baixa da história. Isto permitiu que a Bolsa reagisse apesar de ter sofrido a pior queda desde 1929. Além disso, havia um auge do mercado imobiliário, que não sofreu quedas com a crise “ponto com”, mas que seguiu um caminho ascendente. Nesse momento, os países em desenvolvimento, que haviam sofrido graves crises, estavam em processo de recuperação enquanto os países do centro experimentavam um auge enorme.

Em que medida a crise de 2001 influenciou no desenlace de 2008?

Entre 2002 e 2006 se formaram de forma simultânea as enormes bolhas, uma imobiliária e outra bursátil, nos Estados Unidos, Inglaterra e Espanha. Segundo as séries históricas, as bolhas bursáteis que houve entre 1990 e 2001 e entre 2003 e 2006 não têm precedentes. O mercado de capitais em Nova York cresceu de maneira extraordinária nesse período. Em 1990, o total de operações desse país ultrapassava os três bilhões de dólares. Tóquio tinha uma cifra próxima. França e Alemanha, um pouco menos. O mercado de capitais dos Estados Unidos era e é não apenas o maior do mundo, mas maior que todos os outros mercados juntos. E não prestaram muita atenção nisso.

Por quê?

Porque na época moderna, os Bancos Centrais não prestam muita atenção, enquanto capacidade de ação, aos valores bursáteis ou imobiliários. Não é propriamente seu campo de regulação. Têm como mandato, norma e regra a vigilância dos Bancos, a vigilância da situação monetária e a utilização do índice de preços como indicador da inflação. O que procuram é manter a estabilidade de preços e aventar um crescimento econômico mais ou menos estável e sustentável. Alan Greenspan defendia que do Federal Reserve não podia influir de maneira decisiva na Bolsa. Muitos autores dizem que, na realidade, Greenspan tendia a que o mercado se recuperasse e voltasse ao seu auge.

Acredita que foram adequados os resgates implementados pelos governos e os Bancos Centrais?

Caso esses resgates não tivessem sido feitos, o sistema financeiro teria afundado, já não em nível nacional, mas mundial. Os historiadores econômicos que comparam a crise de 1929 com a de 2008 demonstram que, na primeira etapa, esta última foi pior na queda dos valores bursáteis, do comércio internacional e, inclusive, da produção industrial. Quando o Lehman Brothers quebrou, no dia 15 de fevereiro de 2008, se tinha a sensação – e confessaram-no o presidente do FED de Nova York, Tim Geithner, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, e o presidente do FED, Ben Bernanke – de um desmoronamento total do sistema financeiro. Ao mesmo tempo, deve-se enfatizar que em nenhum país em desenvolvimento houve crises bancárias.

Contudo, os países em desenvolvimento sofreram as consequências desta crise.

Nestes países, inicialmente a crise teve um impacto na queda dos preços na Bolsa e no seu comércio. Contudo, a recuperação em ambas as esferas foi substancial e muito mais rápida que nos Estados Unidos e na Europa. Mas depende de quais grupos de países escolhemos.

Por exemplo?

Na China, a recuperação foi notória, similar à da Índia. A América do Sul conseguiu uma recuperação rápida. A tal ponto que, em alguns casos, é difícil falar de uma grande recessão. As taxas de desemprego inicialmente aumentaram, mas logo se reduziram e hoje na Argentina ou no Brasil se está conseguindo um aumento substancial do emprego.

Onde se situa a Grécia neste contexto?

No começo, os países do Mediterrâneo sofreram menos a crise, em parte, pelo escudo do euro. Se não tivessem tido o euro como moeda, teriam sofrido ataques especulativos muito fortes em 2008. Em épocas de crise, as empresas financeiras atacam as moedas que consideram mais frágeis.

Então, como se explica a crise na Grécia ou na Espanha?

Há ataques especulativos contra a dívida destes países. Há um movimento natural, ainda que também perverso, dos bancos e das empresas financeiras. Muitos deles são bancos dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, que foram resgatados e operam muito ativamente nos mercados monetários, e que apostaram na queda do euro, considerando que iriam ganhar dinheiro com isso. É um mecanismo perverso porque especulam contra uma das moedas de reserva fundamental em nível internacional, sem que haja motivos inteiramente razoáveis para isso. Sem dúvida, o euro estava sobrevalorizado e as dívidas públicas na Grécia, Espanha, Itália e Portugal são importantes. Mas a dívida da Espanha é muito menor, em termos relativos, que a da Inglaterra ou, inclusive, da Alemanha.

Que época se abre no cenário financeiro?

As grandes crises marcam mudanças na arquitetura financeira internacional. A primeira grande crise mundial de 1873 impulsionou o estabelecimento do padrão ouro, isto teve efeitos positivos. Depois da crise de 1929 se abandonou o padrão ouro, houve uma maior rivalidade entre países e menor cooperação econômica e monetária internacional. Isso levou à instabilidade dos anos 1930, acentuada pelas rivalidades militares. No final da Segunda Guerra Mundial se estabeleceu o sistema de Bretton Woods.

A Segunda Guerra Mundial é comparável às crises financeiras como a de 1873 ou a de 1929?

A Segunda Guerra Mundial teve as mesmas consequências ou piores que as de uma crise financeira. Os países vencedores decidiram estabelecer um novo sistema que pudesse garantir estabilidade. E se conseguiu estabelecer uma série de acordos, sob o desenho de Bretton Woods, que permitiram um crescimento continuado e poucas crises.

Por que houve poucas crises nos trinta anos que se seguiram à Segunda Guerra?

Havia regulações muito fortes. A nível da economia internacional, os movimentos de capitais estavam bastante regulados e havia controle por parte do governo e do Banco Central, que estavam mais sincronizados na administração das taxas de juro. Em 1971, começaram a se liberalizar os movimentos de capitais. Chegou-se a um endividamento muito forte nos países latino-americanos. Nos anos 1980 o processo se descontrolou.

Por quê?

Pelo Big-Bang em Londres, que implicou em liberalizar o mercado de maneira muito notável, mas também na aplicação de tecnologia nova. A eletrônica influenciou na globalização: permitiu realizar mais operações, em maior escala, em menos tempo e 24 horas por dia. Desde mediados dos anos 1990 se criaram instrumentos de investimentos de alto risco. Foi um dos fatores que geraram as condições da crise atual. Hoje se está repensando a regulação dos mercados financeiros.

Em que níveis?

Há discussões na Câmara de Representantes dos Estados Unidos para regular a banca e no final deste mês deve ser aprovada a lei. Será uma lei reformista, que imporá limites até certo ponto; por enquanto não sabemos qual será o seu alcance. Na Alemanha e na Hungria há uma norma sobre os lucros dos bancos. Ao mesmo tempo, nos Bancos Centrais se está discutindo o grau de regulação que se aplicará em cada país.

Dada a dimensão que a especulação financeira alcançou, é possível aplicar uma regulação efetiva neste setor?

Os que mais cresceram são os bancos globais. Os fundos de investimento e os bancos privados se viram muito debilitados pela crise. Nos Estados Unidos está havendo um processo de consolidação da banca. Essas entidades são maiores e seguirão crescendo. São bancos globais que operam em muitos mercados e se opõem a uma legislação que os regule. E, neste contexto, é muito difícil colocar em marcha uma legislação internacional. Depende muito do grau de coordenação que houver entre os países. Esta nova regulação deve ser estabelecida basicamente pelos Bancos Centrais. Atualmente, há uma tensão entre os Bancos Centrais e os grandes bancos comerciais.

Diferentes países da América do Sul participam de um debate conjunto sobre uma nova arquitetura financeira regional.

A economia mexicana está mais vinculada com a norte-americana. A sua incorporação na reforma do sistema monetário na América do Sul é problemática. Creio que a proposta mais interessante é a de coordenação monetária, na qual os Bancos Centrais participem de maneira mais ativa para manter e permitir o estabelecimento de um instrumento baseado em uma cesta de moedas.

Quais seriam os benefícios de tal coordenação?

Se reduziria o grau de volatilidade monetária, se asseguraria uma cooperação para que cada país ajude o outro em situações de crise e permitiria pouco a pouco estabelecer um certo balanço entre as moedas. Também a Ásia se propôs um maior grau de cooperação monetária regional.

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