domingo, 24 de janeiro de 2010

Guerrilha midiática na América Latina (6)

Com a fadiga neoliberal e aguçamento da luta de classes na América Latina, que desembocou na vitória de governantes progressistas, este papel concentrado e manipulador da mídia hegemônica passou a ser alvo de mais atenção das forças políticas e sociais de esquerda. Hoje há consenso de que não é possível avançar nas lutas emancipadoras sem investir no fortalecimento dos veículos próprios dos movimentos sociais e sem enfrentar a ditadura midiática. O sindicalismo brasileiro, por exemplo, produz mensalmente cerca de 10 milhões de exemplares de jornais e boletins [24]. As rádios comunitárias se multiplicaram na Venezuela, Equador e Bolívia e já ocupam um papel protagonista na mobilização, conscientização e organização dos setores populares.

A internet também possibilitou a criação de milhares de sítios e blogs progressistas que realizam a guerrilha informativa contra-hegemônica e já incomodam os barões da mídia. Em vários países do continente, jornalistas críticos, intelectuais engajados, estudantes e comunicadores populares hoje militam em entidades que priorizam a luta pela democratização dos meios de comunicação. As articulações contra a ditadura midiática, inclusive, já adquirem caráter regional. Em março de 2008, o 1º Encontro Latino-Americano contra o Terrorismo Midiático reuniu lutadores sociais de 14 países em Caracas. O documento final, além das duras críticas à mídia hegemônica, apresenta propostas para fortalecer os veículos alternativos e integração regional na área da comunicação.

“O terrorismo midiático somente poderá ser confrontado com o desenvolvimento de políticas públicas de comunicação. Se cada vez mais se constata a impossibilidade de recuperar, civilizar ou humanizar os meios privados prisioneiros da lógica do mercado, um esforço redobrado deve ser dirigido para construir o nosso sistema público de comunicação, tal como já está se fazendo na Venezuela, Brasil, Bolívia e Nicarágua. Partindo do raciocínio de Karl Marx, segundo o qual ‘a primeira liberdade de imprensa é não se tornar um negócio’, concluímos que somente meios comunitários livres da lógica capitalista poderão fazer uma comunicação libertária, humanista e solidária, e permitirão outro jornalismo, construtor da unidade latino-americana”, defendeu no encontro o jornalista brasileiro Beto Almeida, membro do conselho diretivo da Telesur [25].

Os avanços na construção dos veículos alternativos e das redes públicas são sensíveis nos países da região. Na Venezuela, após o traumático o “golpe midiático” de 2002, houve uma explosão de rádios e TVs comunitárias, de jornais e de sítios na internet. Esta comunicação popular é uma das bases de sustentação da revolução bolivariana [26]. Segundo o mais recente balanço, existem no país 167 rádios e 26 TVs comunitárias; a área de cobertura destes 193 veículos é de 116 das 335 cidades venezuelanas. “A população com acesso a estes meios é de 11,9 milhões de habitantes (46% do total)... Atualmente, também se editam 164 jornais e 117 meios digitais. Estudiosos têm qualificado esta proliferação de veículos populares na Venezuela de fenômeno inédito” [27].

Na Bolívia, além da explosão das rádios e TVs comunitárias, como a rede Erbol, ligada à igreja progressista, o governo iniciou em janeiro de 2009 a publicação do jornal Cambio, que se soma à rádio Pátria Nueva e ao Canal 7 de TV. “Agressões, humilhações e mentiras de alguns meios de comunicação nos obrigaram a criar este diário”, justificou Evo Morales no ato de lançamento do periódico [28]. Neste sofrido país, a mídia é controlada por latifundiários e pelo grupo espanhol Prisa, que dirige o segundo maior jornal e a emissora ATB, “a mais abertamente de oposição ao governo” [29]. No Equador, também ocorre a proliferação de rádios comunitárias, em especial nas comunidades indígenas, e o governo iniciou a construçao da sua rede pública [30].

Na Nicarágua, os jornais alternativos já concorrem com os jornalões tradicionais ligados à direita anti-sandinista, apesar das deficiências editoriais [31]. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo inaugurou em janeiro de 2009 a primeira agência de notícias do governo, afirmando que nela “os únicos ausentes serão a propaganda simulada e a manipulação midiática para fins sectários, que envenenam o exercício jornalístico”. O diretor da nova agência é Osmar Sostoa, ex-dirigente do Sindicato dos Jornalistas do Paraguai [32]. Já na Argentina, que teve o primeiro boom de rádios comunitárias em meados dos anos 1980, após o fim da ditadura militar, agora vive nova fase de florescimento, com cerca de 500 emissoras “criadas por organizações populares, escolas, grupos temáticos, associações de trabalhadores, movimentos camponeses e indígenas” [33].

Os maiores obstáculos ao avanço dos meios contra-hegemônicos ocorrem exatamente nos países governados por representantes do neoliberalismo, aliados de Washington. No México, em 2006, o parlamento aprovou a Lei de Rádio e Televisão, batizada de Lei Televisa em referência a maior rede de TV privada da América Latina. Ela tornava quase automática a renovação de concessões, ampliava sua validade para 20 anos e proibia “povos indígenas de adquirir, operar e administrar estações de rádio e televisão”. A lei foi aprovada nas vésperas da vitória fraudulenta de Felipe Calderon, com base em chantagem e suspeitas de corrupção [34]. Pouco depois, a Suprema Corte vetou os principais artigos desta vergonhosa lei [35]. Já na Colômbia, impera o terrorismo de Estado, com o assassinato de jornalistas e o desrespeito à verdadeira liberdade de expressão.

Redes públicas e mudanças legais

A realidade mostra que o novo ciclo político aberto na América Latina – com a eleição de vários governantes progressistas, com seus ritmos e visões diferenciadas, com posturas mais ousadas ou moderadas – tem impulsionado a luta pela democratização da comunicação e o florescimento dos meios alternativos. Os reflexos já começam a ser sentidos no reforço das redes pública e estatal e nas próprias legislações sobre o setor, apavorando os donos da mídia. Num livro recém-lançado, indispensável para se entender este novo quadro, o professor Dênis de Moraes faz um minucioso levantamento sobre as mudanças na área nos últimos anos [36]. Os avanços são surpreendentes.

Há um acelerado reforço das redes públicas e estatais de comunicação. A pesquisa confirma que a Venezuela é o país que mais avançou neste setor estratégico. “Chávez criou o mais abrangente esquema de comunicação estatal da região. Pela variedade de órgãos vinculados pode-se medir o volume dos investimentos: quatro canais televisivos (Vive TV, Venezolana de Televisíon-VTV, Ávila TV e Asamblea Nacional), duas cadeias radiofônicas (Nacional e Mundial AM), Agencia Venezolana de Noticias, Imprensa Nacional, Fundación Vicente Emilio Sojo (Instituto de Musicología) e Centro Nacional de Tecnologías de Información”. O governo também firmou um convênio com a China para o lançamento do satélite Simon Bolívar, em 29 de outubro de 2008, “que passou a transmitir os sinais das emissoras públicas e comunitárias venezuelanas”.

O sistema de comunicação da Bolívia também passa por rápidas transformações. Ele inclui hoje a Agência Boliviana de Informação, a cadeia radiofônica Patria Nueva e a televisão estatal Canal 7. No Equador, Rafael Correa obteve apoio do Banco de Desenvolvimento Econômico-Social da Venezuela para implantar o canal Ecuador TV, inaugurado em dezembro de 2007. “É a primeira emissora estatal da história do país”, enfatiza o autor. Já na Argentina, o governo Kirchner aumentou o orçamento do Sistema Nacional de Meios Públicos, que congrega a Rádio Nacional, com quatro emissoras AM e FM, a Agência Telam, o Canal 7 e o Canal Encuentro – que está no ar desde maio de 2007, produz 40% do que veicula e conquistou bons índices de audiência.

Dênis de Moraes também destaca os avanços na cooperação informativa na América Latina. A criação da Telesur, em 2005, com o slogan “Nosso Norte é o Sul”, representou expressivo passo nesta integração. A rede, sediada em Caracas, é financiada pelos governos da Venezuela (51% das cotas), Cuba, Argentina, Uruguai, Bolívia, Equador e Nicarágua. Em setembro de 2008, o presidente Fernando Lugo assinou a adesão do Paraguai. Mais de 80% da sua programação têm conteúdo informativo; os 20% restantes são ocupados por filmes e documentários independentes produzidos na região. Também aumentaram as permutas de notícias e imagens entre as agências oficiais da Venezuela, Argentina, Bolívia, Brasil e Telesur, o mesmo ocorrendo nas televisões.

Além da criação e fortalecimento das redes públicas, os países da região têm mudado os marcos regulatórios, enfrentando o poder concentrado da mídia privada. “O Equador é um dos países que mais avançou em termos de legislação antimonopólica. Na visão de Rafael Correa, leis severas devem impedir a ‘relação incestuosa’ entre meios de comunicação e poder econômico”. A nova Constituição, aprovada em agosto de 2008, define que os cidadãos têm o direito “à comunicação livre, equitativa, diversificada e includente”. Também determina que “o Estado deve garantir a concessão, através de métodos transparentes e em igualdade de condições, das freqüências do espectro radioelétrico, para a gestao das estações de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias”. Ela fixa que o controle social da imprensa será feito por ouvidorias públicas.

Na Venezuela, a Lei de Responsabilidade Social em Rádio e Televisão, a Lei Resorte, aprovada em dezembro de 2004, estabelece direitos e deveres das empresas concessionárias e do governo; institiu a classificação indicativa de programas; tipifica abusos da liberdade de expressão, proíbe a censura previa; protege a privacidade dos cidadãos e a honra das autoridades; e impõe sanções às violações cometidas. Em maio de 2008, o governo criou os primeiros comitês de usuários para acompanhamento dos canais sob concessão pública. “O objetivo é estimular a visão crítica dos ouvintes e telespectadores, em uma avaliação sistematizada dos conteúdos oferecidos”.

Na Bolívia, a Constituição aprovada em dezembro de 2007 assegura a liberdade de expressão e o direito à comunicação a todos os cidadãos, proíbe monopólios e exige que os veículos respeitem a pluralidade de idéias. O capítulo 7, que trata da comunicação social, prevê a universalização do acesso à informação, inclusive para as comunidades indígenas, e garante o direito à comunicação comunitária. Na Nicarágua, Daniel Ortega sancionou lei que amplia a “comunicação coletiva”. Na Argentina, Cristina Kirchner enviou um projeto de comunicação audiovisual que revoluciona o setor. Um dos artigos determina que “33% das licenças de TV e rádio serão para organizações sem fins lucrativos. Poderão ser licenciados cooperativas, igrejas, fundações e sindicatos”.

Caso surpreendente dos avanços no continente ocorre no Uruguai, com a aprovação de várias leis visando democratizar o acesso à informação e à cultura, como a Lei do Cinema e Audiovisual, de maio de 2008. Já a Lei de Radiodifusão Comunitária, sacionada pelo presidente Tabaré Vázquez em dezembro de 2007, “é considerada uma das mais avançadas do mundo”. O texto enquadra a rádio comunitária como terceiro setor, complementar às rádios privadas e estatais, e reserva-lhe um terço das freqüências disponíveis em AM e FM. Dênis de Moraes registra outras importantes conquistas legais na radiodifusão comunitária na Bolívia, Equador, Venezuela e até mesmo no Chile, onde a presidente Michelle Bachelet adota medidas ambíguas na área da comunicação.

O vibrante livro “A batalha da mídia” confirma, com farta documentação, os históricos avanços neste setor estratégico. “É precipitado asseverar que o atual horizonte de mudanças na América Latina levará a alterações definitivas nos sistemas de comunicação e cultura, até porque o destino dos projetos políticos e econômicos no continente ainda é incerto. Contudo, pela primeira vez na região, divisa-se um elenco de promissoras ações governamentais. As providências indicam ser perfeitamente possível assumir uma direção democratizadora e antimonopólica, a partir de interferências do poder público eleito pelo voto popular”, conclui Dênis de Moraes.


NOTAS

24- João Franzin. Imprensa sindical: comunicação que organiza. Editora Agência Sindical, SP, 2007.

25- Beto Almeida. “Fortalecer el campo público de la comunicación para combatir el terrorismo mediático”. Caracas, 2008.

26- Mônica Simioni. “Comunicação e disputa hegemônica na Venezuela no pós-golpe de abril de 2002”. Tese de mestrado em ciência política apresentada na PUC-SP, em 2007.

27- Yuri Pimentel. “Hay que construir um nuevo orden socialista mundial de la comunicación y la información”. Telesur, 27/05/07.

28- “Comienza a circular em Bolivia el periódico estatal Cambio”. Prensa Latina, 23/01/09.

29- Ricardo Bajo e Pascual Serrano. “Bolívia: quién controla los médios de comunicación?”. Le Monde Diplomatique, 06/01/09.

30- Eduardo Tamayo. “Ecuador: Medios públicos em etapa de construcción”. Alainet, 14/12/08.

31- Karla Jacobs. “Los medios corporativos em Nicaragua y sus contrapartidas del FSLN”. Rebelión, 16/01/09.

32- Oscar Serrat. “El presidente Lugo inauguró la primera agencia paraguaya de noticias”. Rebelión, 21/01/2209.

33- Dafne Sabanes. “Argentina: convergencia tecnologica y participación popular”. Alainet, 13/06/07.

34- Nildo Ouriques. “Hugo Chávez e a ‘liberdade de imprensa’”.

35- Raul Juste Lores. “Justiça do México derruba ‘Lei Televisa’”. Folha de S.Paulo, 07/07/09.

36- Dênis de Moraes. A batalha da mídia. Governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Editora Pão e Rosas, RJ, 2009.


- Extraído do segundo capítulo do livro “A ditadura da mídia”, publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para adquirir o livro, entrar em contato com Eliana Ada no endereço – livro@vermelho.org.br