domingo, 18 de abril de 2010

Estado, serviço público e mídia privada

Reproduzo a excelente exposição do professor Venício A. de Lima, apresentada no seminário “Liberdade de imprensa e democracia na América Latina” e publicada no sítio do Observatório da Imprensa:

As concessões do serviço público de rádio e televisão constituem uma das áreas de interface mais visível do Estado brasileiro com o amplo setor das comunicações.

A consolidação sistemática de normas legais e procedimentos burocráticos contraditórios e/ou desatualizados tornou possível que, ao longo dos anos, essas concessões se transformassem em locus privilegiado onde interesses do próprio Estado e interesses privados de pessoas ou grupos políticos, disfarçados de interesse público, fossem negociados, estabelecidos, reproduzidos e preservados.

Exemplo maior dessa interface é o que se convencionou chamar de coronelismo eletrônico, prática de barganha política que se mantém como uma das principais características da radiodifusão brasileira desde a metade do século passado.

Coronelismo e coronelismo eletrônico

O conceito de coronelismo tem sua origem no estudo clássico do jurista e professor Victor Nunes Leal sobre as práticas políticas no antigo Brasil rural – Coronelismo, Enxada e Voto – cuja primeira edição foi publicada pela Revista Forense, em 1949.

O status teórico do conceito tem sido, no entanto, objeto de aguda controvérsia nas ciências sociais e o seu derivado – coronelismo eletrônico – carece de reflexão conceitual, além de padecer freqüentemente de uma série de equívocos e imprecisões no campo da comunicação. Apesar disso, acreditamos que o fenômeno nomeado como coronelismo eletrônico ainda guarda características e mantém traços comuns com o sistema de dominação e de relações políticas originalmente estudado por Nunes Leal na República Velha que justificam seu uso.

O coronelismo

Desde o Império até a República, a estrutura agrária concentradora da propriedade da terra possibilitou o exercício do controle político do município por lideranças locais através de um complicado sistema de compromissos e troca de favores com as províncias (estados) e a União. O coronel era o chefe político local e recebia essa designação como oficial da Guarda Nacional criada ainda no século 19.

A moeda de troca básica dos velhos coronéis era o controle do voto – o chamado "voto de cabresto" – inicialmente aberto e depois, secreto. Como recompensa, eram eles que decidiam sobre a alocação dos recursos orçamentários estaduais e federais no município e faziam as indicações dos nomes que ocupariam os cargos de comando da máquina pública – juiz, delegado de polícia, coletor de impostos, agente dos Correios, professores do ensino público, dentre outros.

Como reafirmou Leal (1980): "O coronelismo era um aspecto local da dominação política, um aspecto local das lutas e dos entendimentos políticos, embora refletindo-se nos círculos mais amplos e contribuindo, por suas características, para dar uma tonalidade própria a toda a vida política do país".

Esse coronelismo da República Velha encontra suas condições ideais de funcionamento num país de população majoritariamente rural, no contexto do poder central do Estado fortalecido, de municípios isolados e tutelados e da introdução de instituições representativas na política.

O coronelismo eletrônico

O coronelismo eletrônico, por outro lado, é um fenômeno do Brasil urbano da segunda metade do século 20, que sofre uma inflexão importante com a Constituição de 1988, mas persiste e se reinventa depois dela. É também resultado da adoção do modelo de curadoria (trusteeship model), isto é, da outorga pela União a empresas privadas da exploração dos serviços públicos de rádio e televisão e, sobretudo, das profundas alterações que ocorreram com a progressiva centralidade da mídia no processo político, a partir do regime militar (1964-1985).

Emissoras de rádio e televisão – espalhadas por todo o território brasileiro; mantidas, em boa parte pela publicidade oficial e articuladas com as redes nacionais dominantes – dão origem a um tipo de poder agora não mais coercitivo, mas criador de consensos políticos. São esses consensos que facilitam (mas não garantem) a eleição (e a reeleição) de representantes – em nível federal, deputados e senadores – que, por sua vez, permitem circularmente a permanência do coronelismo como sistema.

Ao controlar as concessões de rádio e televisão, o novo coronel promove a si mesmo e aos seus aliados, hostiliza e cerceia a expressão dos adversários políticos e é fator importante na construção da opinião pública – cujo apoio é disputado tanto no plano estadual como no federal.

No coronelismo eletrônico, portanto, a moeda de troca continua sendo o voto, como no velho coronelismo. Só que não mais com base na posse da terra, mas no controle da informação, vale dizer, na capacidade de influir na formação da opinião pública.

A recompensa da União aos coronéis eletrônicos é de certa forma antecipada pela outorga e, depois, pela renovação das concessões do serviço de radiodifusão que confere a eles poder na barganha dos recursos para os serviços públicos municipais, estaduais e federais.

Um feliz resumo das diferenças entre o coronelismo e o coronelismo eletrônico pode ser encontrado em trabalho de Costa e Brener, publicado em 1997. Dizem eles:

"Se as raízes dos velhos coronéis remontam ao Império, os coronéis de agora emergiram principalmente a partir do regime militar. Os primeiros são expressão de um Brasil predominantemente rural, enquanto os novos coronéis são atores políticos de um país majoritariamente urbano. O coronel de hoje mantém práticas típicas do antigo coronel, como usar a sua influência junto ao governo para arranjar emprego para os apadrinhados ou levar obras e melhoramentos para as suas bases eleitorais, mas mudou muito a forma de fazer política. Se antes os métodos de cabala de votos se resumiam às instruções dadas aos cabos eleitorais e aos comícios, é inegável que a televisão [e o rádio] se tornaram um novo e decisivo cenário da batalha política estadual e municipal."

Não será coincidência, portanto, constatar que as oligarquias dominantes em vários estados e regiões do país (sobretudo, no Nordeste), a partir das últimas décadas do século passado, têm em comum o vínculo com a mídia. Em especial, o vínculo com as emissoras de rádio e televisão comerciais e suas retransmissoras (RTVs), mas também com as emissoras educativas. Seus membros são detentores de mandatos nos diferentes níveis de representação no Executivo e no Legislativo, mas, sobretudo, são governadores, deputados federais ou senadores.

Os mais conhecidos exemplos são as oligarquias regionais identificadas por nomes como Barbalho, Sarney, Jereissati, Garibaldi, Collor de Mello, Franco, Alves, Magalhães, Martinez e Paulo Octávio, dentre outros.

Como garantir a manutenção do coronelismo?

O que se pretende aqui é apresentar uma pequena lista comentada de algumas normas e procedimentos regulatórios das concessões de radiodifusão no país que, historicamente, têm contribuído para a perpetuação da prevalência de interesses privados na execução de um serviço público.

Considerando que a TV aberta e o rádio comerciais estão, respectivamente, presentes em 91,4% e 88% dos domicílios brasileiros e que abocanham, juntos, 63,5% do faturamento publicitário bruto do país (cerca de 5,2 bilhões em 2007) [Grupo de Mídia (2007)], tratarei apenas das normas e procedimentos legais referentes à concessão desses serviços públicos, não incluindo, portanto, as concessões para os serviços de radiodifusão educativa e/ou comunitária.

Primeiro: existem normas legais diferentes para a concessão dos serviços de televisão aberta e de televisão paga ou por assinatura.

A TV aberta é considerada radiodifusão, regida por legislação específica (Lei 4.117/62). Já a TV paga é tratada como telecomunicações e é regida por normas que dependem da tecnologia utilizada: a televisão via cabo obedece a uma lei (Lei 8977/95); e as televisões via microondas (MMDS), via satélite (DTH) ou chamadas de "serviço especial" (TVA) são reguladas por decreto (Decreto 2.196/97).

Essa assimetria regulatória tem, por óbvio, implicações legais e outras que chegam, até mesmo, a ser cômicas. Por exemplo: o mesmo telejornal (digamos, o Bom dia Brasil da Rede Globo) é legalmente considerado "radiodifusão" quando transmitido por uma TV aberta e "telecomunicações" quando retransmitido em canal de televisão a cabo (GloboNews da operadora NET).

Segundo: as emissoras de rádio e TV aberta são concessões de um serviço público outorgadas por contrato, pela União – com a participação do Congresso Nacional – por prazo determinado de 10 anos para as emissoras de rádio e de 15 anos para as de televisão.

A desmedida duração desses contratos tem contribuído, historicamente, para que as concessões sejam, na prática, transformadas e tratadas, por seus concessionários, como propriedade e não como concessão temporária.

Terceiro: apesar das emissoras de rádio e TV aberta serem concessões de um serviço público, outorgadas sob determinadas condições, as regras consagradas no texto Constitucional tanto para (i) a renovação quanto para (ii) o cancelamento dessas concessões criam uma grave assimetria em relação aos demais contratos de prestação de serviços públicos porque favorecem claramente aos concessionários.

(i) A não renovação precisa ser votada no Congresso Nacional por dois quintos dos seus membros, em votação nominal (§ 2º do artigo 223).

Considerando o papel chave da TV para a visibilidade da atividade política e sua centralidade na disputa de poder, é improvável que um processo de não renovação chegue a ser votado no plenário do Congresso Nacional, sobretudo em votação nominal aberta. Menos provável ainda é que seja aprovado por dois quintos do total de deputados e senadores que "dependem" da própria televisão para sua sobrevivência nas disputas eleitorais. Desde que a norma foi inserida na Constituição, em 1988, não há registro de qualquer processo de não renovação de concessão de radiodifusão que tenha sido sequer apresentado no Congresso Nacional.

Além disso, o Decreto 88.066, assinado pelo presidente-general João Batista Figueiredo, em 26 de janeiro de 1983, determina que se o concessionário do serviço requerer a renovação e não houver decisão dos órgãos competentes "até a data prevista para o término da concessão" (artigo 4º), a renovação será automaticamente deferida. Umas das conseqüências dessa norma é que há registro de emissoras de rádio e televisão que funcionam sem renovação formal por períodos iguais ou até mesmo superiores ao próprio prazo legal de concessão.

Registre-se a injustificável diferença de tratamento que o Ministério das Comunicações (MiniCom), a Anatel e a Polícia Federal praticam em relação a emissoras de rádio e televisão comerciais – que continuam a operar com suas concessões vencidas – e a emissoras de rádio comunitárias – que têm sido sistematicamente fechadas com a apreensão de equipamentos e a prisão de líderes comunitários, apesar de, muitas delas, possuírem pedidos de autorização para funcionamento tramitando no MiniCom, há anos, sem decisão final.

(ii) O cancelamento durante a vigência do contrato só pode ocorrer com decisão judicial (§ 4º do artigo 223).

O poder concedente, ao contrário do que ocorre em todas as outras concessões de um serviço público, não tem o poder de interromper os contratos de concessão quando julgar que houve descumprimento de normas que regem a prestação do serviço. É necessário que se abra um processo que será decidido não pelo poder concedente, mas pelo Judiciário.

Até recentemente não se tinha notícia de que houvesse sido aberto um único processo de cancelamento de concessão de radiodifusão durante a vigência do contrato. No entanto, em texto-resposta publicado em janeiro de 2008 no Observatório da Imprensa, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, afirma: "Só no final do ano passado, foram encaminhadas pela primeira vez cerca de 20 processos de outorga para cassação pelo Judiciário, como mais uma vez reza a Constituição. Esse fato é inédito e histórico”.

Quarto: apesar de a Constituição definir claramente os princípios que devem orientar a produção e a programação das emissoras de rádio e TV aberta, eles não são utilizados como critério para a outorga, cancelamento e/ou renovação das concessões.

De fato, o Artigo 221 reza que esses princípios são: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo a produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Quinto: apesar de a Constituição estabelecer que "os meios de comunicação não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio" (parágrafo 5º do Artigo 220) e mandar observar "o princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal" (Artigo 223) para a outorga e renovação de concessões de radiodifusão, essas normas não são utilizadas como critério.

Na verdade, desde os decretos que iniciaram a regulação da radiodifusão, ainda na década de 1930 – Decreto n. 20.047/1931 e Decreto n. 21.111/1932 – passando pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (Lei n. 4.137/62) e pelas normas mais recentes, como por exemplo, a Lei da TV a Cabo (Lei n. 8.977/95), não houve preocupação do legislador com a concentração da propriedade no setor. Não há qualquer norma eficaz que limite ou impeça a propriedade cruzada na mídia e, portanto, a sua concentração.

Um decreto do período autoritário, todavia, estabeleceu, sim, limites para as concessões de radiodifusão. O Decreto-Lei 236/1967, em seu artigo 12, reza que:

"Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (...)

I – estações radiodifusoras de som (rádio):

a) locais:

- ondas médias, 4;

- freqüência modulada, 6;

b) regionais:

- ondas médias, 3;

- ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado);

c) nacionais;

- ondas médias, 2

- ondas curtas, 2;

II – estações radiodifusoras de som e imagem (TV):

10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (...)

§ 7º – As empresas concessionárias ou permissionárias de serviço de radiodifusão não poderão estar subordinadas a outras entidades que se constituem com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única, através de cadeias ou associações de qualquer espécie".

A interpretação que o Ministério das Comunicações tem feito deste texto legal, todavia, considera entidade como significando "pessoa física" e, ademais, não leva em conta o parentesco. Da mesma forma, em relação ao parágrafo 7, o MiniCom não considera as "redes" – formadas com a "afiliação" contratual de emissoras – como constituindo subordinação "com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única". Assim, as limitações impostas pelo Decreto-Lei n. 236/67 à concentração na radiodifusão se tornaram historicamente inócuas.

O resultado dessa interpretação é a formação e a consolidação no Brasil de um sistema de mídia, protagonizado pela iniciativa privada comercial, que tem, desde as suas origens, a propriedade cruzada e a concentração como uma de suas principais características. Não há melhor exemplo que os Diários e Emissoras Associados e as Organizações Globo, os dois maiores grupos de mídia historicamente já existentes no país.

Por outro lado, só em abril de 2008, com a criação da Empresa Brasil de Comunicação – EBC (Lei 11.652), definida como empresa pública de comunicação, foi dado o primeiro passo para o eventual e distante equilíbrio entre os sistemas público, privado e estatal mandado observar pelo "princípio da complementaridade" do artigo 223 da Constituição. Até então, não havia sequer a positivação legal do conceito de sistema público e, muito menos, a possibilidade de sua utilização como critério na outorga e renovação das concessões de radiodifusão.

Sexto: o vínculo histórico de deputados federais e senadores com as concessões de rádio e TV, gerador do fenômeno do coronelismo eletrônico, cria uma situação absurda na qual o membro de um dos poderes concedentes – o Congresso Nacional – se confunde com o próprio concessionário.

Na verdade, existe uma controvérsia não resolvida em torno da legalidade de um político, no exercício do mandato eletivo, ser concessionário de radiodifusão.

O Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT, Lei nº. 4117/62) determina que quem esteja em gozo de imunidade parlamentar não pode exercer a função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão (parágrafo único do Artigo 38). Esta norma foi confirmada pelo Regulamento dos Serviços de Radiodifusão que exige, como um dos documentos necessários para habilitação ao procedimento licitatório, declaração de que os dirigentes da entidade "não estão no exercício de mandato eletivo" [n. 2, alínea d), § 5º do artigo 15 do Decreto 52.795/63].

A Constituição de 1988 também proibiu que deputados e senadores mantivessem contrato ou exercessem cargos, função ou emprego remunerado em empresas concessionárias de serviço público (letras a. e b. do item I do Artigo 54).

Apesar dessas normas, o Ministério Público Federal, ao ajuizar seis ações civis propostas na Justiça Federal, em julho de 2007, pela anulação das concessões de rádio a deputados federais que votaram nas sessões da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados e renovaram suas próprias concessões, interpretou que a Constituição "coíbe apenas a participação dos parlamentares na gestão das empresas concessionárias do serviço (de radiodifusão)", e permite, inclusive, "a celebração de contratos com o ente público, desde que obedeçam a cláusulas uniformes".

Da mesma forma, em resposta a uma consulta do site Congresso em foco, a Secretaria de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações afirmou em 29 de março de 2010: "A Constituição não veda a propriedade. O parlamentar só não pode ser gerente ou diretor de meio de comunicação neste caso como em outros casos, a família não está impedida. Não há previsão legal para esse impedimento".

Já em relação ao poder concedente, a Constituição de 1988, exige a realização de licitação para a concessão de serviços públicos. Diz o artigo 175: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos."

Regulamentada pela Lei 8.666/1993, a norma do artigo 175 foi estendida ao serviço público de radiodifusão pelo Decreto n. 1720 de 11 de novembro de 1995, que alterou o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (Decreto 52.795 de 31/10/1963). A partir de então, as outorgas de radiodifusão só poderiam ser feitas por meio de licitação.

Além disso, a Constituição de 1988 também determina no § 1º do seu artigo 223 que os atos de outorga e renovação de concessões de radiodifusão deverão agora ser apreciados pelo Congresso Nacional. O Poder Executivo passou, portanto, a compartilhar o seu poder de outorga com o Congresso Nacional, vale dizer com deputados e senadores.

Enquanto a controvérsia legal não se resolve, há registros da utilização de emissoras de rádio e televisão por políticos "no exercício de mandato eletivo", em seu benefício pessoal e interesse privado, pelo menos, desde o início da década de 1980 [ver Jornal do Brasil (1980)]. E não se pode ignorar que essa prática antidemocrática estabelece uma clara assimetria na disputa eleitoral entre aqueles que usam o rádio e a televisão em benefício próprio e aqueles que não têm acesso ou só tem acesso parcial a esses serviços públicos.

Observações finais

Existem várias outras normas e procedimentos relativos às concessões do serviço público de radiodifusão que mereceriam ser comentados. Lembro, por exemplo:

1- A duplicidade de outorgas proibida por Lei, mas fora da fiscalização pública de vez que o cadastro geral dos concessionários do serviço público de rádio e televisão não está disponível para acesso ao cidadão; e

2- A ausência de fiscalização adequada sobre as transferências (vendas) de concessões de rádio e TV para terceiros que pode tornar inútil todo o eventual rigor nos procedimentos de outorga e renovação de concessões.

É necessário lembrar também que estamos vivendo um importante período de transição tecnológica do sistema analógico para o sistema digital de radiodifusão. A digitalização representa a possibilidade concreta de significativo aumento no número de concessionários e o cumprimento do princípio democrático da máxima dispersão da propriedade (cf. Edwin Baker).

Durante anos, enormes esperanças foram alimentadas pelos movimentos sociais envolvidos na defesa da democratização do mercado das comunicações e confirmadas, temporariamente, pelo Decreto n. 4901/2003, que criou o SBTVD-T. O Decreto n. 5.820/2006, no entanto, não só confirmou a escolha do modelo japonês de TV Digital como criou a polêmica figura jurídica da "consignação" que outorga mais 6 MHz para cada uma das atuais empresas concessionárias de televisão aberta. Desta forma, foram perdidas as enormes potencialidades que a digitalização oferecia, sobretudo para a multiplicação plural dos concessionários.

Registre-se que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal a Arguição Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3944, apresentada pelo PSOL, em 2007, que argúi a inconstitucionalidade do Decreto n. 5.820/2006.

É importante registrar, por fim, indícios de que tem crescido a consciência do cidadão sobre a importância de sua participação nas questões relacionadas às políticas públicas de comunicações e, em particular, na definição dos critérios de concessão e renovação dos serviços públicos de radiodifusão.

Neste sentido, entidades da sociedade civil lançaram a Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV, sob o mote "Concessões de rádio e TV: quem manda é você", em outubro de 2007. Por outro lado, verificou-se importante participação de segmentos organizados da sociedade civil, em todos os estados da Federação, nos debates e encontros preparatórios da 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009.

Há, todavia, um obstáculo formidável a ser vencido na consolidação das políticas públicas de comunicações como tema da agenda pública. A instituição que exerce o maior poder de definir esta agenda – a grande mídia – não se interessa pelo debate e, mais do que isso, boicota a cobertura jornalística das iniciativas e eventos que tentam promovê-lo – como fez no caso da 1ª Confecom.

Dessa forma, no nosso país, permanece possível a utilização de um serviço público – as emissoras de rádio e televisão – para o benefício do próprio Estado e/ou de uns poucos interesses privados, contrariando a Constituição e perpetuando uma prática antidemocrática na sociedade brasileira.

Referências

- Costa, Sylvio e Brener, Jayme (1997); "Coronelismo eletrônico: o governo Fenando Henrique e o novo capítulo de uma velha história"; Comunicação&Política; Vol. IV, nº 2, NS, maio-agosto; pp. 29-53.

- Costa, Hélio; "A renovação de concessões das emissoras de TV" in Observatório da Imprensa n. 469 de 25 de janeiro de 2008.

- Grupo de Mídia de São Paulo, Mídia Dados – 2007.

- Jornal do Brasil, "No ar, a voz do dono"; 7 de dezembro de 1980.

- Leal, Victor N. (1949-1986), Coronelismo, Enxada e Voto; São Paulo: Editora Alfa-Omega.

- Leal, Victor N. (1980); "O Coronelismo e o Coronelismo de cada um" in Dados-Revista de Ciências Sociais, vol. 23, nº 1; pp. 11-14.

- Lima, Venício A. de; "Parlamentares e radiodifusão: relações suspeitas" in idem, Mídia: Crise Política e Poder no Brasil, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

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O MSM e o crime eleitoral do Datafolha

Reproduzo artigo de Eduardo Guimarães, publicado no blog Cidadania:

Faço saber, a quem possa interessar, que o Movimento dos Sem Mídia, organização não-governamental da sociedade civil constituída em 13 de outubro de 2007 em assembléia-geral integrada por 52 sócios fundadores e que conta com 137 filiados, ingressará na Justiça Eleitoral com pedido de investigação dos seguintes fatos:

Em 27 de março deste ano, foi divulgada pesquisa eleitoral do instituto Datafolha que versou sobre a intenção de voto do eleitorado para o cargo de presidente da República. A sondagem apontou diferenças de 9 e de 10 pontos percentuais entre os pré-candidatos José Serra e Dilma Rousseff, em favor do primeiro, nos dois cenários principais apresentados aos pesquisados.

Sete dias depois (em 3 de abril), houve divulgação de pesquisa Vox Populi que revelou quadro bem diferente, com diferença de 3 e de 5 pontos, de acordo com o cenário de postulantes ao cargo de presidente, em favor do candidato do PSDB. No mesmo dia, o jornal Folha de São Paulo, proprietário do instituto Datafolha, publica denúncia de que o “tipo de questionário” apresentado pelo instituto concorrente aos pesquisados “é conhecido por distorcer resultados”.

Nos dias seguintes, a diferença dos levantamentos estatísticos e a denúncia da Folha provocaram uma vastidão de matérias na imprensa, com acusações tanto ao Datafolha quanto ao Vox Populi, sendo que as acusações do maior jornal do país tiveram espaço quase exclusivo nos grandes meios de comunicação.

Em 13 de abril, o instituto Sensus divulgou nova pesquisa sobre a sucessão presidencial mostrando quadro diametralmente diferente do apurado pelo instituto Datafolha. Nessa pesquisa, a diferença entre os pré-candidatos Dilma e Serra reduziu-se dos 9 e 10 pontos percentuais detectados pelo Datafolha 10 dias antes, para 0,4 e 2,8 pontos nos dois respectivos cenários pesquisados.

A Folha de São Paulo, então, produziu acusações ainda mais sérias em sucessivas matérias largamente reproduzidas por toda a grande imprensa e que levaram o PSDB a entrar na Justiça Eleitoral contra o Sensus, requisitando as fichas das entrevistas da pesquisa para análise de especialistas contratados pelo partido. E, no último dia 16, a mesma imprensa e o mesmo partido político denunciaram supostas manobras protelatórias do instituto para fornecer os dados requeridos pela Justiça Eleitoral.

Finalmente, na última sexta-feira (16 de abril de 2010), o site da revista Veja divulgou, antes do jornal dono do instituto Datafolha, pesquisa deste instituto sobre a sucessão presidencial. A pesquisa mostrou resultado gravemente diferente do que foi apurado pelo Sensus e divulgado 3 dias antes. O Datafolha afirma que a diferença em favor de Serra seria, agora, de 10 e 12 pontos percentuais.

Não existe a menor dúvida de que um ou mais de um desses institutos de pesquisa (Datafolha, Sensus ou Vox Populi) cometeu um legítimo crime eleitoral. Existe até denúncia, amplamente comentada na imprensa, nesse mesmo sentido. Esse fato gera intranqüilidade social e tem um poder enorme de influir nos rumos da eleição.

A Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, Art.33, § 4º, reza que “A divulgação de pesquisa fraudulenta constitui crime, punível com detenção de seis meses a um ano e multa no valor de cinqüenta mil a cem mil UFIR”.

Diante destes fatos, informo que o Movimento dos Sem Mídia pedirá à Justiça Eleitoral investigação rigorosa dos fatos supra mencionados em benefício da ordem pública e da segurança da sociedade de que a eleição deste ano transcorrerá sob a égide da democracia e da justiça.

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As mentiras da Folha e a nova pesquisa

Reproduzo artigo do sociólogo Emir Sader, publicado no sítio Carta Maior:

As elites de um país, por definição, consideram que representam os interesses gerais do mesmo. A imprensa, com muito mais razão, porque está selecionando o que considera essencial para fazer passar aos leitores, porque opina diariamente em editoriais – e em matérias editorializadas, que não separam informação de opinião, cada vez mais constantes – sobre temas do país e do mundo.

A FSP, como exemplo típico da elite paulistana, é um jornal que passou a mentir abertamente, em particular desde o começo do governo Lula. Tendo se casado com o governo FHC – expressão mais acabada da elite paulistana –, a empresa viveu mal o seu fracasso e a vitória de Lula. Jogou-se inteiramente na operação “mensalão”, desatada por uma entrevista de uma jornalista tucana do jornal, que eles consideravam a causa mortis do governo Lula, da mesma forma que Carlos Lacerda, na Tribuna da Imprensa, se considerava o responsável pela queda do Getúlio.

Só que a história se repetiria como farsa. Conta-se que, numa reunião do comitê de redação da empresa, Otavio Frias Filho – herdeiro da empresa dirigida pelo pai –, assim que Lula ganhou de novo em 2006, dava voltas, histérico, em torno da mesa, gritando “Onde é que nós erramos, onde é que nós erramos”, quando o candidato apoiado pela empresa, Alckmin, foi derrotado.

O jornal entrou, ao longo da década atual, numa profunda crise de identidade, forjada na década anterior, quando FHC apareceu como o representante mor da direita brasileira, foi se isolando e terminou penosamente como o político mais rejeitado do país, substituído pelo sucesso de Lula. Um presidente nordestino, proveniente dos imigrantes, discriminados em São Paulo, apesar de construir grande parte da riqueza do estado de que se apropria a burguesia. Derrotou àquele que, junto com FHC, é o político mais ligado à empresa – Serra -, que sempre que está sem mandato reassume sua coluna no jornal, fala regularmente com a direção da empresa, aponta jornalistas para cargos de direção – como a bem cheirosa jornalista brasiliense, entre outros – e exige que mandem embora outros, que ele considera que não atuam com todo o empenho a seu favor.

O desespero se apoderou da direção do jornal quando constatou não apenas que Lula sobrevivia à crise manipulada pelo jornal, como saía mais forte e se consolidava como o mais importante estadista brasileiro das últimas décadas, relegando a FHC a um lugar de mandatário fracassado. O jornal perdeu o rumo e passou a atuar de forma cada vez mais partidária, perdendo credibilidade e tiragem ano a ano, até chegar à assunção, por parte de uma executiva da empresa, de que são um partido, confissão que não requer comprovações posteriores. Os empregados do jornal, incluídos todos os jornalistas, ficam assim catalogados como militantes de um partido (tucano, óbvio) político, perdendo a eventual inocência que podiam ainda ter. Cada edição do jornal, cada coluna, cada notícia, cada pesquisa cada editorial, ganharam um sentido novo: orientação política para a (debilitada, conforme confissão da executiva) oposição.

Assim, o jornal menos ainda poderia dizer a verdade. Já nunca confessou a verdade sobre a conclamação aberta à ditadura e o apoio ao golpe militar em 1964 – o regime mais antidemocrático que o país já teve -, do que nunca fez uma autocrítica. Menos ainda da empresa ter emprestado seus carros para operações dos órgãos repressivos do regime de terror que a ditadura tinha imposto, para atuar contra opositores. Foi assim acumulando um passado nebuloso, a que acrescentou um presente vergonhoso.

Episódios como o da “ditabranda”, da ficha falsa da Dilma, da acusação de que o governo teria “matado” (sic) os passageiros do avião da TAM, o vergonhoso artigo de mais um ex-esquerdista que o jornal se utiliza contra a esquerda, com baixezas típicas de um renegado, contra o Lula, a manipulação de pesquisas, o silêncio sobre pesquisas que contrariam as suas (os leitores não conhecem até hoje, a pesquisa da Vox Populi, que contraria a da FSP que, como disse um colunista da própria empresa, era o oxigênio que o candidato do jornal precisava, caso contrário o lançamento da sua candidatura seria “um funeral” (sic). Tudo mostra o rabo preso do jornal com as elites decadentes do país, com o epicentro em São Paulo, que lutam desesperadamente para tentar reaver a apropriação do governo e do Estado brasileiros.

Esse desespero e as mentiras do jornal são tanto maiores, quanto mais se aprofunda a diminuição de tiragem e a crise econômica do jornal, que precisa de um presidente que tenha laços carnais com a empresa e teria dificuldades para obter apoios de um governo cuja candidata é a atacada frontalmente todos os dias pelo jornal.

Por isso a Folha mente, mente, mente, desesperadamente. Mentirá no fim de semana com nova pesquisa, em que tratará de rebater, com cifras manipuladas – por exemplo, como sempre faz, dando um peso desproporcional a São Paulo em relação aos outros estados -, a irresistível ascensão de Dilma, que tratará de esconder até onde possa e demonstrar que o pífio lançamento de Serra o teria catapultado às alturas. Ou bastaria manter a seu candidato na frente, para fortalecer as posições do partido que dirigem.

Mas quem acredita na isenção de uma pesquisa da Databranda, depois de tudo o que jornal fez, faz e fará, disse, diz e dirá, como partido assumido de oposição? Ninguem mais crê na empresa da família Frias, só mesmo os jornalistas-militantes que vivem dos seus salários e os membros da oposição, com a água pelo pescoço, tentando passar a idéia de que ainda poderiam ganhar a eleição.

Alertemos a todos, sobre essa próxima e as próximas mentiras da Folha, partido da oposição, partido das elites paulistas, partido da reação conservadora que quer voltar ao poder no Brasil, para mantê-lo como um país injusto, desigual, que exclui à maioria da sua população e foi governado para um terço e não para os 190 milhoes de habitante.

Por isso a Folha mente, mente, mente, desesperadamente.

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Rodada de inutilidades do Datafolha

Reproduzo excelente artigo enviado pelo amigo Gilson Caroni:

Após nova rodada de pesquisa do Datafolha, tudo terminou como fora previsto. O instituto confirmou o desejo dos donos do jornal, os vaticínios de seus articulistas militantes e a vocação partidária da grande imprensa corporativa. Como era de se prever, o levantamento, sob geral e justificada descrença, revela um mero exercício de acrobacia. Uma inutilidade tão grande que é legítimo se perguntar a quem interessa a pantomima?

Ao justificar o motivo de pesquisas em intervalos tão curtos, o jornalista Fernando Rodrigues explica que "O Datafolha realizou esta pesquisa agora porque também havia feito um levantamento em 24 e 25 de fevereiro, cinco dias após o lançamento oficial da candidatura da petista Dilma Rousseff. Agora, a coleta dos dados se dá também cinco dias após a festa do PSDB para José Serra se lançar na disputa."

Nem o Barão de Itararé teria produzido melhor script. Nem o circo pegou fogo, nem os trapezistas caíram da corda bamba. Até os diversos palhaços já não conseguem provocar o riso. A platéia, outrora tão influenciável, faz parte do espetáculo e as feras, embora soltas, nada mais fazem senão aprofundar a crise de credibilidade de certos institutos e meios de comunicação. A arte da política comporta cálculos arriscados. Dependendo da estatura ética do atirador, qualquer disparo, só alveja o próprio pé.

Se a sondagem indica que há 54% de eleitores sem voto definido, qual a relevância da dobra superior da edição de sábado da Folha de S. Paulo que, em manchete, alardeia: “Serra mantém dianteira sobre Dilma"? O que significa, a crer na honestidade metodológica do Datafolha, uma vantagem de 10 pontos de um pré-candidato sobre o outro? Nada, rigorosamente nada. Salvo o que até o mundo mineral sabe: há uma tendência à polarização entre Dilma e José Serra, o filho dileto do bloco liberal-conservador. Para elegê-lo os recursos são variados. Vão de manchetes desmentidas no corpo da matéria à censura da imagem do presidente Lula nos telejornais da TV Globo.

Faltando seis meses para as eleições, e com tanta coisa indefinida (composição das chapas, alianças, montagem das candidaturas estaduais), as intenções de voto são muito fluidas para grande parte do eleitorado. Fazer pesquisas em intervalos reduzidos de tempo só interessa comercialmente aos institutos e, como espetáculo, às corporações midiáticas que, conforme seus objetivos político-partidários, dão maior ou menor destaque aos resultados das sondagens que lhe interessam.

Assim, se a pesquisa Sensus foi desqualificada e, posteriormente judicializada, Datafolha e Ibope devem ser “interpretados com maior rigor científico." Para isso são chamados os mesmos “cientistas políticos”, a maioria, por sinal, colaboradora ativa do Instituto Millenium, versão moderna do velho Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), um dos principais catalisadores do golpe contra João Goulart, em 1964.

O que pode ser mensurado é o fetichismo atávico de segmentos que, desde sempre, controlaram o aparelho do Estado e não se conformam em terem sido apeados de lá pelo voto popular. Entronizado no altar de devoção de suas lideranças orgânicas, a prestidigitação golpista é uma possibilidade renovada. Para isso, no caso do diário paulista, há sempre um funcionário de plantão na segunda página. Ora inventam epidemias e caos aéreos, ora legitimam sondagens que interessam à família Frias.

Eles já aprenderam que, terminada a temporada, a troupe mambembe avalia o prejuízo, amarra a lona e parte para a estrada, mais uma vez tentando distorcer a realidade, mais uma vez na contramão da democracia. As determinações de classe não falham.

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Lula está errado sobre o Irã?

Reproduzo artigo de Breno Altman, jornalista e diretor editorial do sítio Opera Mundi:

Não são poucas as matérias, na imprensa nacional e internacional, que tratam de apontar para suposto isolamento do governo brasileiro na discussão sobre sanções contra o país dirigido por Mahmud Ahmadinejad.

Mesmo setores progressistas torcem o nariz com a insistência do presidente Lula em defender uma saída negociada com os iranianos. Afinal, não se pode afirmar que o regime dos aiatolás corresponda aos paradigmas democráticos, humanistas e laicos que fazem parte dos valores de esquerda.

Mas a questão da qual não se pode fugir é a que propósitos servem os recentes movimentos de pressão contra o Irã, cuja vilanização já se assemelha aquela que precedeu a invasão do Iraque. Novamente uma nação que se opõe à hegemonia imperialista é acusada de estar desenvolvendo armas de destruição em massa. Outra vez começam a rufar os tambores de guerra.

O principal patrocinador da escalada contra a gestão Ahmadinejad são os Estados Unidos. Claro que os discursos de Obama e Hillary são recheados de alusões à liberdade. Não é novidade: o apoio aos golpes militares na América Latina e a guerra contra o Vietnã, para citar dois exemplos, também foram levados a cabo em nome da defesa do “mundo livre”.

Tampouco há surpresa nas razões efetivas que condicionam a política da Casa Branca. Foram-se os dias da destemperança bélica de Bush, mas sob a fala aveludada e cosmopolita de Barack Obama continuam vivos os mesmos pressupostos geopolíticos. Como diz a sabedoria popular: o lobo troca o pelo, mas não perde o viço.

O primeiro dos grandes motivos estratégicos é a velha disputa pelo controle das fontes de energia, na qual o Oriente Médio continua como principal teatro de operações. A desestabilização do Irã e sua eventual transição para a esfera de influência norte-americana, como se passou com o Iraque, significariam formidável aporte aos recursos petrolíferos sob tutela da grande potência.

Mais do que bloquear o acesso de Teerã à produção de energia nuclear, o que importa para Washington é asfixiar um governo hostil a seus interesses, seguindo a lógica político-militar que preside suas atitudes desde 2001. Os Estados Unidos, até então, delegavam sua presença naquele canto do mundo à máquina guerreira de Israel e às alianças com administrações árabes que lhes eram afáveis. Nos últimos dez anos, no entanto, trocaram essa política pela intervenção direta.

Essa nova orientação, contudo, não é o mesmo que abandonar ao léu os velhos amigos. Derrotar o regime islâmico da antiga Pérsia significaria sensível mudança no equilíbrio regional de forças. O Estado sionista deixaria de ter qualquer contendor militar à altura. As frações mais radicalizadas da resistência palestina perderiam seu principal aliado. Os governos árabes pró-americanos teriam maior tranqüilidade com o possível arrefecimento das correntes islâmicas internas. Pois aí está a segunda razão para a ofensiva contra Ahmadinejad.

A terceira, mas não menos relevante, tem alcance mundial. Diz respeito à ordem nuclear forjada após o final da União Soviética. Mais do que hegemonia econômica e cultural, o colapso do sistema socialista criou a chance de uma inédita supremacia militar para os Estados Unidos, cujo epicentro é o controle sobre o arsenal atômico e seus processos de fabricação.

O cerco contra o Irã é concomitante aos esforços da Casa Branca para rever o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP). Esse documento, datado de 1968, estabelece o monopólio das armas nucleares nas mãos de cinco países: EUA, Rússia, França, China e Grã-Bretanha. Os demais signatários renunciam ao desenvolvimento da energia atômica para fins militares. Entre essas assinaturas não estão as de Paquistão, Índia e Israel.

Os limites atualmente prescritos pelo TNP, porém, são insatisfatórios para os Estados Unidos e eventualmente outras nações, pois não coíbem o desenvolvimento completo da tecnologia nuclear ou a comercialização de urânio enriquecido pelos países que estão fora do clube da bomba. Esse desconforto levou à convocação da Cúpula sobre Segurança Nuclear, reunida em Washington dias 12 e 13 de abril.

Sua preparação foi marcada por dois eventos vendidos como “históricos” pela mídia. Um deles foi o novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start, em inglês), firmado no dia 8 de abril entre Rússia e EUA, pelo qual cada uma das potências reduziria para 1550, até o ano de 2017, suas ogivas nucleares operacionais. O acordo, no entanto, não estabelece cortes ou limites para milhares de bombas armazenadas, atendendo exigência da indústria militar norte-americana e seu lobby parlamentar. Não apenas é tímida a redução do arsenal nuclear, como permanece intacto seu processo de renovação e substituição.

O outro acontecimento, no dia 6 de abril, foi a divulgação, pelo governo norte-americano, de sua nova política de defesa nuclear. Apesar do alarde de que os Estados Unidos não reagiriam com ataques atômicos a agressões com armas convencionais, químicas ou biológicas, ou contra países que não possuem arsenal nuclear, ficou estampado no pronunciamento que seriam abertas exceções contra nações que não fossem signatárias do TNP ou que supostamente o estivessem violando.

Ambos movimentos foram calculados para criar um clima positivo na reunião de cúpula, embalando-a com promessas e gestos pacifistas. De quebra, a Casa Branca conseguiu a boa vontade da Rússia na questão iraniana, em troca do compromisso de manter desnuclearizados os países de seu entorno. O mesmo aceno é feito a China quanto à sua zona de influência, além de outras compensações econômicas.

São passos que têm como um de seus principais propósitos a conquista de adesões ao protocolo de revisão do TNP, que amplia os poderes da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A agência passaria a controlar o comércio mundial de urânio enriquecido, mesmo para fins pacíficos, além de ter o direito de visitas intrusivas, sem negociação prévia, a países suspeitos. O monopólio atômico, na prática, seria estendido também ao uso não-militar da energia nuclear, que estaria submetido a um sistema internacional de licenças e controles.

E o que tem o Brasil a ver com tudo isso?

O presidente Lula declarou que o país não será signatário desse protocolo, por considerar uma violação à soberania nacional e um obstáculo ao desenvolvimento do país. Também reafirmou sua convicção contra o caráter discriminatório do TNP, que em nome da paz preserva o desequilíbrio militar entre as nações.

Com viagem prevista para Teerã em maio, o mandatário brasileiro voltou a se pronunciar contra novas sanções aos iranianos. Essa postura não é ditada apenas pela agenda comercial, importante na estratégia de diversificação de mercados. Tem a ver, fundamentalmente, com uma razão de Estado.

A adoção de punições adicionais ao Irã, em uma escalada que a agressão militar como horizonte, significaria reforço à jurisprudência que considera a autodeterminação dos Estados nacionais um direito subordinado a hipotéticos e indivisíveis interesses mundiais, geralmente auto-representados pela principal potência militar. Por dentro ou por fora das instituições internacionais, a depender de suas possibilidades e conveniências.

Afinal, o Irã não está envolvido em nenhum conflito armado com seus vizinhos ou buscando sobrepujar, pela força, direitos de outros povos. Ao contrário de Israel, país nuclear clandestino, cuja política belicista e de opressão contra os palestinos desrespeita seguidos acordos e resoluções internacionais.

Não é preciso, de fato, muito tutano para calcular o alcance dessa concepção favorável à intervenção preventiva. A quais ameaças estaria submetido o Brasil, digamos, no caso de eventual escassez de água no hemisfério norte tornar esse bem um objeto de desejo e necessidade dos tais “interesses mundiais”? Ou que destino estaria reservado a América Latina se, por exemplo, viesse a constituir um bloco militar autônomo?

A posição do presidente Lula, sobre o Irã, pode até ser minoritária, mas expressa a resistência dos que defendem, contra a institucionalidade de um império, uma ordem mundial baseada na união soberana e igualitária de nações livres.

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