quinta-feira, 27 de maio de 2010
A Conclat e os desafios do sindicalismo (1)
Na próxima terça-feira, 1º de junho, mais de 30 mil sindicalistas de todo país estarão reunidos na Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), no Estádio do Pacaembu (SP), para aprovar uma plataforma com vistas à sucessão presidencial. Numa modesta contribuição ao debate, publico quatro artigos analisando a conjuntura internacional e nacional e os desafios do sindicalismo na atualidade:
I- O fantasma da crise internacional
Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do salário são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização do trabalho. No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia.
Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da ex-poderosa GM foi o caso mais emblemático. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
16 milhões sumariamente demitidos
No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos; inúmeros sindicatos assinaram acordos de redução salarial; vários governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de flexibilização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de empregos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram o seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, também rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os maiores culpados pela eclosão da crise. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar os avarentos capitalistas. Os governos de George Bush e Barack Obama saquearam do cofre público mais de 1,5 trilhão de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
Novos repiques da crise mundial
A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar da completa falência. No auge da crise, em meados do ano passado, muitos analistas previram uma profunda reforma do sistema, com formas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu.
O capitalismo mantém sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista. A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas também ainda não foi superada, como os apologistas do capital bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua gerando instabilidade política e insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, os efeitos da brutal recessão ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
Socorro às poderosas corporações
Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito.
Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União, revela o jornal Valor (20/4/10). Na Europa, a situação é ainda mais dramática. A Grécia faliu e outros primos pobres da região, como Portugal e Espanha, caminham para o mesmo desfiladeiro. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”, alerta o jornal O Estado de S.Paulo (16/4/10). “Nós podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
Desenvolvimento desigual e os Bric
Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China. Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 5%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas.
Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% em fevereiro.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento utilizado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais belicista e expansionista.
A fascistização da Europa
Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra.
A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos. Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu destruído pelo tsunami capitalista e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
A resistência dos trabalhadores
Diante deste cenário dantesco, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As cinco greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão de direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas duas greves gerais neste ano. Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, uma greve geral parou o país no final de março contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Cerca de 3 milhões de franceses participaram de passeatas e atos de protesto. Como resultado da crescente rebeldia, Sarkozy colheu sua primeira derrota eleitoral no pleito regional de março. Na Itália, Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório internacional das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A quebradeira, porém, não durou muito tempo.
A guinada à esquerda no continente
De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério. Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas.
Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina. Os novos governos também perceberam que precisam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida foi ganhando contornos com a retomada do Mercosul, a criação da Unasul e a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul, entre outras medidas integradoras do continente.
Nova ofensiva do imperialismo
Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério, ameaçando os governos progressistas da região e a descoberta do pré-sal. Em maio passado, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o mortífero terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
A experiência mais emblemática, no entanto, se deu na eleição do Chile. Apesar da popularidade da presidente Michele Bachelet, ela não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana.
Brasil decide o destino da região
Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem as conspirações golpistas; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico no continente. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem profundamente das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o influente Guardian.
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I- O fantasma da crise internacional
Os trabalhadores do mundo inteiro acompanharam, tensos e temerosos, a crise que se abateu sobre a economia capitalista desde a falência do banco Lehman Brothers em setembro de 2008. Afinal, em todas as recessões econômicas, sejam nas mais suaves ou nas mais profundas, os que vivem do salário são sempre as principais vítimas, com a explosão do desemprego, o arrocho dos salários e a precarização do trabalho. No caso desta crise, ela teve um agravante. Ela começou no coração do sistema capitalista, nos EUA – e não na sua periferia.
Detonada a partir do estouro da bolha especulativa no setor imobiliário, o chamado subprime, ela logo atingiu o setor financeiro, levando à falência centenas de bancos. Na sequência, indústria e comércio sentiram seu impacto, cuja concordata da ex-poderosa GM foi o caso mais emblemático. Diferente das crises cíclicas anteriores, esta foi e ainda é uma crise estrutural e sistêmica, cujos efeitos deverão ser mais prolongados e destrutivos.
16 milhões sumariamente demitidos
No rastro devastador da crise, que logo contaminou as economias “avançadas” da Europa e do Japão, cerca de 16 milhões de trabalhadores foram sumariamente demitidos; inúmeros sindicatos assinaram acordos de redução salarial; vários governos reduziram investimentos nas áreas sociais e impuseram leis de flexibilização trabalhista. Estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que apenas nas 20 maiores economias do planeta o desemprego ceifou 6 milhões de empregos na indústria, 3 milhões na construção civil e 2,3 milhões no comércio.
Culpados pela crise, os capitalistas novamente jogaram o seu ônus nas costas dos assalariados. Numa prova de cinismo, também rasgaram os dogmas neoliberais, que pregavam o desmonte do Estado, da nação e do trabalho e que foram os maiores culpados pela eclosão da crise. O poder público, antes satanizado e reduzido a “estado mínimo”, foi acionado para salvar os avarentos capitalistas. Os governos de George Bush e Barack Obama saquearam do cofre público mais de 1,5 trilhão de dólares para socorrer bancos, indústrias e comércio. Para os ricaços, tudo e com urgência; para os trabalhadores, o brutal ônus da crise – como sempre ocorreu no sistema de exploração capitalista.
Novos repiques da crise mundial
A grave retração mundial confirmou que o capitalismo é um sistema de crises periódicas. Elas fazem parte da sua dinâmica, com todas suas chagas sociais. Mas também revelou que o sistema não cai de maduro. Ele desenvolveu mecanismos para se safar da completa falência. No auge da crise, em meados do ano passado, muitos analistas previram uma profunda reforma do sistema, com formas de controle de agiotagem financeira e de maior justiça social. Mas isto não ocorreu.
O capitalismo mantém sua dinâmica de exploração do trabalho, de concentração das riquezas nas mãos de uma minoria e de especulação rentista. A crise não foi terminal, como muitos previam. Mas também ainda não foi superada, como os apologistas do capital bravateiam. Nas potências capitalistas, ela continua gerando instabilidade política e insegurança para os trabalhadores. Na maior parte da periferia do sistema, os efeitos da brutal recessão ainda são sentidos, inclusive nos países da América Latina mais dependentes do mercado externo. Os sinais de novos repiques da crise mundial ainda assombram os povos, como um fantasma que ronda o mundo capitalista.
Socorro às poderosas corporações
Nos EUA, epicentro da crise, o desemprego alcançou o recorde histórico de 10% em 2009 – o dobro de 2008. O déficit público, decorrente do salvamento aos poderosos, já engoliu US$ 12,36 trilhões do erário e o Orçamento para 2011 prevê cortes de US$ 1,6 trilhão nos gastos sociais – o que agravará o drama de milhões de miseráveis deste país símbolo do capitalismo. O socorro até agora dispensado às poderosas corporações ainda não surtiu efeito.
Em abril último, a comissão de valores mobiliários dos EUA (SEC) acusou os 19 maiores bancos do país de usarem artifícios contábeis para desviar fortunas dos cofres públicos. Já a auditoria federal teme pela capacidade de sobrevivência da GM, apesar dos US$ 13,4 bilhões que garfou da União, revela o jornal Valor (20/4/10). Na Europa, a situação é ainda mais dramática. A Grécia faliu e outros primos pobres da região, como Portugal e Espanha, caminham para o mesmo desfiladeiro. Para o Banco Central Europeu, há forte risco de “novas turbulências econômicas”, alerta o jornal O Estado de S.Paulo (16/4/10). “Nós podemos já ter entrado na próxima fase da crise”, afirma Jürgen Stark, executivo do BCE. Algumas economias inclusive já ameaçam abandonar a moeda única da região, o Euro.
Desenvolvimento desigual e os Bric
Como em outros momentos históricos, a grave crise das maiores economias capitalistas abriu espaço para o crescimento de alguns países da periferia do sistema – o que reforça a tese de que, na lógica do desenvolvimento combinado e desigual do capitalismo, a crise pode se tornar uma janela de oportunidades. Isto é que explicaria a situação distinta do chamado Bric, que reúne as economias do Brasil, Rússia, Índia e China. Segundo previsões do Banco Mundial para 2010, a China terá um crescimento de quase 10% no seu PIB; a Índia pode beirar os 7%; e o Brasil deve superar os 5%. A Rússia, que foi destruída pela restauração capitalista, é que apresenta maiores dificuldades – mesmo assim, ela está em melhores condições do que várias potências capitalistas.
Um dos segredos desta situação favorável dos Bric é que estas nações não seguiram o receituário neoliberal imposto pela ditadura financeira – de desmonte do estado, da nação e do trabalho. Elas ainda possuem empresas estatais fortes, bancos públicos de peso, maior capacidade dos governos de regulação e indução econômica e mercados internos protegidos. A negação do neoliberalismo foi decisiva para que estes países fossem os últimos a entrar em crise e os primeiros a sair dela.
II- Instabilidade política e ofensiva belicista
A grave crise promoveu alterações no quadro político mundial, o que tem reflexos na luta dos trabalhadores. Nos EUA, a retração econômica e a agressiva política externa de George W. Bush foram responsáveis pela eleição do primeiro presidente negro desta nação racista. Barack Obama foi eleito com a promessa de mudança, mas até agora só causou decepção. Tanto que seu índice de popularidade já despencou – de 72% na posse para menos de 50% em fevereiro.
Vacilante, ele não enfrentou o poderoso complexo financeiro/industrial/militar, bancou trilhões de dólares para os rentistas e abrandou até a sua reforma do sistema de saúde. No campo externo, Obama segue os passos genocidas de Bush. Ele reforçou a ocupação militar do Afeganistão, apóia Israel contra os palestinos e, o mais preocupante, dá fortes sinais de uma nova escalada militar – com o risco de guerras contra Irã e Coréia do Norte, o que pode lançar a humanidade numa completa barbárie de conseqüências desastrosas. Historicamente, as guerras sempre foram um instrumento utilizado pelo capitalismo para superar suas graves crises econômicas. Obama vai virando um refém dos setores mais direitistas dos EUA, alojados no Partido Republicano, que ameaçam desestabilizar o seu governo e exigem uma política mais belicista e expansionista.
A fascistização da Europa
Já a Europa, continente envelhecido, presencia o crescimento de forças nitidamente fascistas, que utilizam o discurso xenófobo para jogar a sociedade contra os imigrantes. A maior parte dos governos do continente está sob controle de partidos de direita, que promovem contra-reformas da Previdência, impõem medidas de precarizaçao do trabalho, arrocham brutalmente os salários e desmontam o estado de bem-estar social construído no pós-guerra.
A situação dos trabalhadores europeus é de acelerada regressão dos direitos. Ângela Merkel (Alemanha), Nicolas Sarkozy (França) e Silvio Berlusconi (Itália) estão na linha de frente desta onda direitista na Europa. Seus governos também reforçam os traços imperialistas e belicistas, almejando principalmente maior expansão no Leste Europeu destruído pelo tsunami capitalista e no sofrido continente africano. A Europa, sob a hegemonia de forças de caráter fascista, abandona a bandeira da paz e reforça o discurso guerreiro dos EUA, o que agrava a situação de instabilidade no mundo atual.
A resistência dos trabalhadores
Diante deste cenário dantesco, os trabalhadores europeus resistem, mas ainda numa correlação de forças adversa. As cinco greves gerais na Grécia são a resposta às tentativas de regressão de direitos trabalhistas e previdenciários. Em Portugal, prestes a cair no desfiladeiro, também foram realizadas duas greves gerais neste ano. Na França, que sofre a pior recessão desde o pós-guerra – o PIB recuou 2,2% em 2009 –, uma greve geral parou o país no final de março contra o pacote de maldade do governo direitista de Nicolas Sarkozy, que visa congelar salários e elevar o tempo de aposentadoria dos franceses. Cerca de 3 milhões de franceses participaram de passeatas e atos de protesto. Como resultado da crescente rebeldia, Sarkozy colheu sua primeira derrota eleitoral no pleito regional de março. Na Itália, Berlusconi é hostilizado devido ao seu projeto regressivo de reforma da Previdência Social. Na Inglaterra, a ocupação de fábricas falidas prossegue. A luta de classes deve se aguçar na Europa, que vive a tensa disjuntiva: progresso social ou fascismo!
III- Riscos de retrocesso na América Latina
Na América Latina, o cenário também não é dos mais tranqüilos. Após a heróica luta contra as ditaduras militares, o continente oprimido virou o principal laboratório internacional das políticas neoliberais. A partir do Consenso de Washington, firmado pelas elites empresariais em 1989, um tsunami devastou os países da região com a privatização das empresas estatais, redução do papel do estado, abertura de fronteiras contrária à soberania nacional, corte de investimentos públicos e retirada de direitos trabalhistas.
A taxa de desemprego bateu recordes históricos; a informalidade superou os índices de trabalho formal; os salários perderam peso no Produto Interno Bruto (PIB); a miséria e a barbárie se alastraram na América Latina. O neoliberalismo se tornou hegemônico, elegendo e reelegendo presidentes comprometidos com os seus dogmas, afinados com a ditadura financeira e alinhados servilmente com os EUA. Uma parcela dos trabalhadores, inclusive, foi seduzida pelos slogans midiáticos contra os servidores públicos, os direitos previdenciários e trabalhistas e a soberania das nações. A quebradeira, porém, não durou muito tempo.
A guinada à esquerda no continente
De continente laboratório das políticas neoliberais, a América Latina se transformou, a partir do final da década de 1990, na vanguarda da luta contra o neoliberalismo. Apesar da devastação do trabalho, que fragmentou e tornou mais complexa a classe trabalhadora, o sindicalismo não se curvou e resistiu à brutal ofensiva do capital. Novos movimentos sociais passaram a jogar papel de maior protagonismo no hemisfério. Fruto desta resistência ativa, onze presidentes neoliberais foram depostos e os candidatos identificados com esse receituário destrutivo e regressivo foram rechaçados nas urnas.
Com concepções distintas e ritmos diferenciados, reflexos da realidade da luta de classes em cada país, novos governantes passaram a adotar políticas de fortalecimento do estado, de reversão do processo de privatização, de maior investimento em programas sociais e de diálogo mais democrático com os movimentos sindicais e populares. A hegemonia neoliberal deu lugar a uma guinada à esquerda na América Latina. Os novos governos também perceberam que precisam investir na integração regional; divididos diante do império estadunidense, estes países se desintegrariam. Em curto espaço de tempo, o sonho de uma América Latina mais unida foi ganhando contornos com a retomada do Mercosul, a criação da Unasul e a constituição do Conselho de Defesa Militar do Sul, entre outras medidas integradoras do continente.
Nova ofensiva do imperialismo
Estes expressivos avanços, porém, não estão imunes a risco. Ainda campeia a desigualdade social nesta região devastada pelo colonialismo, ditaduras e neoliberalismo. As experiências em curso também revelam limitações, não conseguindo enfrentar os seus problemas estruturais. Para agravar o cenário, os EUA tentam retomar a ofensiva no seu “quintal”, após uma fase de sensível perda de influência política e econômica. Não dá para subestimar a agressividade deste império, que tem muitos interesses em jogo na região.
Um breve balanço confirma que ele obteve recentes vitórias e recupera terreno no continente, seja através de golpes, ocupações militares e até mesmo pela via eleitoral. Ainda na gestão de George Bush, os EUA reativaram a 4ª Frota, composta por navios nucleares que vigiam os mares do hemisfério, ameaçando os governos progressistas da região e a descoberta do pré-sal. Em maio passado, o empresário direitista Ricardo Martinelli venceu as eleições no Panamá; em junho, o “democrata” Barack Obama foi cúmplice do golpe em Honduras, o que fez ressurgir o fantasma das ditaduras; no mesmo período, os EUA anunciaram a criação de seis bases militares na Colômbia; já no Haiti, o mortífero terremoto serviu de pretexto para o envio de milhares de soldados ianques.
A experiência mais emblemática, no entanto, se deu na eleição do Chile. Apesar da popularidade da presidente Michele Bachelet, ela não conseguiu transferir votos para o seu candidato Eduardo Frei. A direita saiu unificada e as forças de centro à esquerda apresentaram três candidaturas. Resultado: o barão midiático Sebastián Piñera, totalmente servil à política externa dos EUA, venceu o pleito para o delírio da direita latino-americana.
Brasil decide o destino da região
Estes reveses indicam que a guinada progressista na América Latina corre perigo. A opção por programas sociais distributivos, pela retomada do papel indutor do estado e pela integração latino-americana, entre outros avanços, pode ser abortada com o regresso de gestores neoliberais, que pregam o “alinhamento automático” com os EUA. Há sinais de alerta na Argentina, onde a direita ruralista e rentista joga na desestabilização do governo Cristina Kirchner; na Venezuela, onde ressurgem as conspirações golpistas; na Bolívia, sempre sob a ameaça da divisão territorial; e principalmente nos países da América Central, agora sob o espectro assustador do retorno dos golpes e ditaduras militares.
Mas, como apontou recente artigo do jornal britânico Guardian, a aposta decisiva para os rumos da América Latina se dá no Brasil devido ao seu peso geopolítico no continente. “Embora as autoridades do Departamento de Estado sob Bush e Obama tenham mantido postura amigável, é obvio que se ressentem profundamente das mudanças na política externa brasileira que aliaram o país a outros governos social-democratas do hemisfério e se ressentem da posição independente do Brasil em relação ao Oriente Médio, ao Irã e a outros lugares”. O destino da América Latina será decidido no Brasil, garante o influente Guardian.
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TV digital e o drible na Constituição
Reproduzo artigo de João Brant, Jonas Valente e Eloísa Machado, publicado na coluna Tendências/Debates da Folha de S.Paulo:
No meio da Copa do Mundo de 2006, quando ainda achávamos que o Brasil bateria a França e iria rumo ao hexa, o governo federal publicou o decreto nº 5.820, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital. Na mesma semana, duas decepções: o Brasil foi eliminado da Copa e decidiu abrir mão das possibilidades que a TV digital trazia para democratizar as comunicações. Quatro anos depois, temos chance de superar as duas coisas, pelo menos em parte. Uma depende de Dunga e dos 23 jogadores.
A outra depende do Supremo Tribunal Federal, que tem em sua pauta a Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PSOL em 2007. A Adin contesta o fato de o decreto ter entregue, por meio de consignação, mais um canal para os atuais concessionários de TV.
O argumento da Adin foi reforçado pelas entidades Intervozes, Conectas e Pro Bono, que entraram como "amici curiae" na ação e veem aí duas inconstitucionalidades. Para compreendê-las, é preciso saber que a TV digital não é apenas uma evolução da TV analógica.
Além de melhorar a qualidade de áudio e vídeo das transmissões, a digitalização cria uma nova plataforma, viabilizando interatividade (colocando a TV em diálogo com a internet), recepção portátil (em celulares e pequenos aparelhos) e multiprogramação, ou seja, a transmissão de até 8 programações usando o mesmo canal.
Esse novo serviço deveria ser regulamentado e passar pelo processo de novas concessões, respeitando os artigos 175 e 223 da Constituição Federal, que preveem, inclusive, a apreciação das outorgas pelo Congresso Nacional.
Além de passar por cima desse procedimento, o decreto, ao entregar às emissoras o mesmo espaço que já ocupavam no espectro analógico (6 MHz), deixa de promover o pluralismo e a ampliação da liberdade de expressão, preceitos fundamentais de nossa Constituição.
A proibição a monopólios e oligopólios em rádio e TV, expressa no artigo 220, deveria ser uma diretriz para o ato que instituiu a TV digital.
Mas o decreto deixou de observá-la e privilegiou as atuais concessionárias, que já configuram um oligopólio de fato - as quatro emissoras líderes concentram 83,3% da audiência e 97,2% da receita publicitária. No caso da televisão, esse não é apenas um problema econômico, mas uma ameaça à democracia.
A TV digital poderia significar verdadeira revolução democrática, mas o modelo adotado no Brasil aprofunda as desigualdades, com a manutenção da concentração e ausência de competição. A continuar assim, nem deveríamos falar em TV digital - é a velha TV analógica transmitida em outra tecnologia.
Alguns dirão que, dois anos após o início das transmissões, qualquer tentativa de reconfigurar esse cenário irá afetar investimentos milionários feitos pelas emissoras. Há, na verdade, várias saídas para aproveitá-los. O mais importante, porém, é compreender que está em jogo a possibilidade de ampliar a liberdade de expressão e fortalecer a democracia. E liberdade de expressão e democracia não podem ser reféns de fatos consumados.
Ainda mais quando estes são flagrantemente inconstitucionais.
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No meio da Copa do Mundo de 2006, quando ainda achávamos que o Brasil bateria a França e iria rumo ao hexa, o governo federal publicou o decreto nº 5.820, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital. Na mesma semana, duas decepções: o Brasil foi eliminado da Copa e decidiu abrir mão das possibilidades que a TV digital trazia para democratizar as comunicações. Quatro anos depois, temos chance de superar as duas coisas, pelo menos em parte. Uma depende de Dunga e dos 23 jogadores.
A outra depende do Supremo Tribunal Federal, que tem em sua pauta a Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo PSOL em 2007. A Adin contesta o fato de o decreto ter entregue, por meio de consignação, mais um canal para os atuais concessionários de TV.
O argumento da Adin foi reforçado pelas entidades Intervozes, Conectas e Pro Bono, que entraram como "amici curiae" na ação e veem aí duas inconstitucionalidades. Para compreendê-las, é preciso saber que a TV digital não é apenas uma evolução da TV analógica.
Além de melhorar a qualidade de áudio e vídeo das transmissões, a digitalização cria uma nova plataforma, viabilizando interatividade (colocando a TV em diálogo com a internet), recepção portátil (em celulares e pequenos aparelhos) e multiprogramação, ou seja, a transmissão de até 8 programações usando o mesmo canal.
Esse novo serviço deveria ser regulamentado e passar pelo processo de novas concessões, respeitando os artigos 175 e 223 da Constituição Federal, que preveem, inclusive, a apreciação das outorgas pelo Congresso Nacional.
Além de passar por cima desse procedimento, o decreto, ao entregar às emissoras o mesmo espaço que já ocupavam no espectro analógico (6 MHz), deixa de promover o pluralismo e a ampliação da liberdade de expressão, preceitos fundamentais de nossa Constituição.
A proibição a monopólios e oligopólios em rádio e TV, expressa no artigo 220, deveria ser uma diretriz para o ato que instituiu a TV digital.
Mas o decreto deixou de observá-la e privilegiou as atuais concessionárias, que já configuram um oligopólio de fato - as quatro emissoras líderes concentram 83,3% da audiência e 97,2% da receita publicitária. No caso da televisão, esse não é apenas um problema econômico, mas uma ameaça à democracia.
A TV digital poderia significar verdadeira revolução democrática, mas o modelo adotado no Brasil aprofunda as desigualdades, com a manutenção da concentração e ausência de competição. A continuar assim, nem deveríamos falar em TV digital - é a velha TV analógica transmitida em outra tecnologia.
Alguns dirão que, dois anos após o início das transmissões, qualquer tentativa de reconfigurar esse cenário irá afetar investimentos milionários feitos pelas emissoras. Há, na verdade, várias saídas para aproveitá-los. O mais importante, porém, é compreender que está em jogo a possibilidade de ampliar a liberdade de expressão e fortalecer a democracia. E liberdade de expressão e democracia não podem ser reféns de fatos consumados.
Ainda mais quando estes são flagrantemente inconstitucionais.
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Do contracíclico ao antissocial
Reproduzo artigo de Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado no jornal Valor Econômico:
A crise internacional iniciada em 2008 tem sido comparada à Grande Depressão de 1929. Atualmente, contudo, percebe-se que ela se aproxima mais da Depressão de 1873 a 1896, tendo em vista a perspectiva de consolidação de nova hegemonia mundial frente à postergação na adoção de respostas de caráter estrutural à crise, sobretudo nas nações desenvolvidas. Por conta disso, observa-se pela primeira vez desde a década de 1930 que o centro do capitalismo mundial não se mostra capaz de liderar a retomada sustentada do crescimento econômico mundial, abrindo nova possibilidade de ascensão do protagonismo em países não desenvolvidos.
Recorda-se que, durante a depressão econômica do último quartel do século 19, a liderança inglesa no mundo começou a dar lugar à disputa de novas hegemonias nacionais, especialmente entre os Estados Unidos e a Alemanha, que completavam o ciclo retardatário de industrialização. Nos dias de hoje, alguns países de industrialização tardia se apresentam cada vez mais como possíveis portadores do futuro, a exemplo daqueles com grande potencial de expansão via mercado interno, como China, Índia e Brasil.
Ainda que a crise internacional tenha colocado por terra mais de duas décadas de predomínio do ideário neoliberal, em que o Estado era apresentado como parte fundamental dos problemas da sociedade, constata-se que as recentes medidas de ajuste adotadas pela Grécia e Espanha terminam por, novamente, reativar a ortodoxia antissocial neoliberal. Como não poderia deixar de ser, as medidas de forte corte no gasto público saudadas pelo mercado financeiro correm o sério risco de se transformar nas adicionais doses de morfina que postergam a decisão final a respeito das dívidas de 1 trilhão e aumentam o sacrifício humano especialmente dos mais vulneráveis.
O vazio da governança global, expresso pelo anacronismo das instituições multilaterais vigentes e pela ausência de lideranças no norte do hemisfério à altura do desafio de reconstrução de um novo padrão de desenvolvimento mundial, faz regredir a formação da convergência nacional gerada em torno do resgate das políticas anticíclicas comandadas pelo revigoramento do Estado logo no último trimestre de 2008. Essa convergência, todavia, não produziu resultados idênticos entre as distintas nações, uma vez que, nos países ricos, por exemplo, o papel governamental direcionou fundamentalmente ao estancamento da crise internacional por intermédio da defesa dos interesses das matrizes das grandes corporações transnacionais, com a alocação de imensa quantidade de recursos públicos para liquidar dívidas decorrentes do processo de financeirização de riqueza a que se encontravam contaminadas. A corporação transnacional se tornou tão grande que não mais poderia quebrar, sob o risco de impor a bancarrota todo o sistema capitalista mundial, o que exigiu associação inédita das políticas fiscais e monetárias em torno da salvação do setor privado.
Em virtude disso, a ampliação dos gastos públicos nas operações de solvência financeira dos grandes empreendimentos financeiros e não financeiros não foi orientada ao reativamento direto do setor produtivo. Ao contrário, trouxe a elevação do grau de endividamento público com a manutenção da asfixia no crescimento das economias ricas.
No caso das nações não desenvolvidas, o reposicionamento do Estado durante a crise internacional foi diferenciado, mais voltado à defesa da produção e do emprego nacional. Em geral, os recursos públicos terminaram sendo alocados em apoio a novos investimentos em infraestrutura, energia e habitação, capazes, em geral, de fazer frente ao desestímulo decorrente da queda das exportações e retraimento do setor privado prisioneiro do processo de financeirização da riqueza. Também teve importância o manejo da política fiscal e monetária orientada à redução de custos de produção ao mercado interno, com apoio de mais crédito e redução da carga tributária para ampliação da renda interna ao consumo. Além disso, teve importância a aplicação das políticas de renda, capazes de compensar parte significativa do ônus da crise sobre os segmentos mais vulneráveis da população nos países não desenvolvidos. Nesse sentido, as respostas dos países periféricos permitiram a saída mais rápida da crise do que o observado nas economias do centro do capitalismo mundial.
É claro que a retirada das medidas anticíclicas precisa ser acompanhada de muito cuidado para não gerar novo ciclo de políticas antissociais, conforme verificado atualmente em alguns países europeus. A recente elevação de juros no Brasil não pode ser descartada disso, inclusive porque a recuperação econômica ocorre com ganhos de produtividade crescendo apenas sete vezes mais que a elevação do salário médio real. Com isso, os salários podem perder participação na renda nacional, e o circuito vicioso da financeirização da riqueza tende a receber um novo alento.
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A crise internacional iniciada em 2008 tem sido comparada à Grande Depressão de 1929. Atualmente, contudo, percebe-se que ela se aproxima mais da Depressão de 1873 a 1896, tendo em vista a perspectiva de consolidação de nova hegemonia mundial frente à postergação na adoção de respostas de caráter estrutural à crise, sobretudo nas nações desenvolvidas. Por conta disso, observa-se pela primeira vez desde a década de 1930 que o centro do capitalismo mundial não se mostra capaz de liderar a retomada sustentada do crescimento econômico mundial, abrindo nova possibilidade de ascensão do protagonismo em países não desenvolvidos.
Recorda-se que, durante a depressão econômica do último quartel do século 19, a liderança inglesa no mundo começou a dar lugar à disputa de novas hegemonias nacionais, especialmente entre os Estados Unidos e a Alemanha, que completavam o ciclo retardatário de industrialização. Nos dias de hoje, alguns países de industrialização tardia se apresentam cada vez mais como possíveis portadores do futuro, a exemplo daqueles com grande potencial de expansão via mercado interno, como China, Índia e Brasil.
Ainda que a crise internacional tenha colocado por terra mais de duas décadas de predomínio do ideário neoliberal, em que o Estado era apresentado como parte fundamental dos problemas da sociedade, constata-se que as recentes medidas de ajuste adotadas pela Grécia e Espanha terminam por, novamente, reativar a ortodoxia antissocial neoliberal. Como não poderia deixar de ser, as medidas de forte corte no gasto público saudadas pelo mercado financeiro correm o sério risco de se transformar nas adicionais doses de morfina que postergam a decisão final a respeito das dívidas de 1 trilhão e aumentam o sacrifício humano especialmente dos mais vulneráveis.
O vazio da governança global, expresso pelo anacronismo das instituições multilaterais vigentes e pela ausência de lideranças no norte do hemisfério à altura do desafio de reconstrução de um novo padrão de desenvolvimento mundial, faz regredir a formação da convergência nacional gerada em torno do resgate das políticas anticíclicas comandadas pelo revigoramento do Estado logo no último trimestre de 2008. Essa convergência, todavia, não produziu resultados idênticos entre as distintas nações, uma vez que, nos países ricos, por exemplo, o papel governamental direcionou fundamentalmente ao estancamento da crise internacional por intermédio da defesa dos interesses das matrizes das grandes corporações transnacionais, com a alocação de imensa quantidade de recursos públicos para liquidar dívidas decorrentes do processo de financeirização de riqueza a que se encontravam contaminadas. A corporação transnacional se tornou tão grande que não mais poderia quebrar, sob o risco de impor a bancarrota todo o sistema capitalista mundial, o que exigiu associação inédita das políticas fiscais e monetárias em torno da salvação do setor privado.
Em virtude disso, a ampliação dos gastos públicos nas operações de solvência financeira dos grandes empreendimentos financeiros e não financeiros não foi orientada ao reativamento direto do setor produtivo. Ao contrário, trouxe a elevação do grau de endividamento público com a manutenção da asfixia no crescimento das economias ricas.
No caso das nações não desenvolvidas, o reposicionamento do Estado durante a crise internacional foi diferenciado, mais voltado à defesa da produção e do emprego nacional. Em geral, os recursos públicos terminaram sendo alocados em apoio a novos investimentos em infraestrutura, energia e habitação, capazes, em geral, de fazer frente ao desestímulo decorrente da queda das exportações e retraimento do setor privado prisioneiro do processo de financeirização da riqueza. Também teve importância o manejo da política fiscal e monetária orientada à redução de custos de produção ao mercado interno, com apoio de mais crédito e redução da carga tributária para ampliação da renda interna ao consumo. Além disso, teve importância a aplicação das políticas de renda, capazes de compensar parte significativa do ônus da crise sobre os segmentos mais vulneráveis da população nos países não desenvolvidos. Nesse sentido, as respostas dos países periféricos permitiram a saída mais rápida da crise do que o observado nas economias do centro do capitalismo mundial.
É claro que a retirada das medidas anticíclicas precisa ser acompanhada de muito cuidado para não gerar novo ciclo de políticas antissociais, conforme verificado atualmente em alguns países europeus. A recente elevação de juros no Brasil não pode ser descartada disso, inclusive porque a recuperação econômica ocorre com ganhos de produtividade crescendo apenas sete vezes mais que a elevação do salário médio real. Com isso, os salários podem perder participação na renda nacional, e o circuito vicioso da financeirização da riqueza tende a receber um novo alento.
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Liberdade de imprensa: farsa e tragédia
O professor Venício A. de Lima, um dos maiores especialistas no estudo da mídia, está lançando o seu novo livro: “Liberdade de expressão vs. liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia”, pela Editora Publisher. Reproduzo o prefácio do professor Fábio Konder Comparato:
Mais uma vez, Venício de Lima, ao fazer a crítica aguda da "desorganização" dos meios de comunicação de massa, contribui apreciavelmente para a reforma do nosso sistema político.
A Constituição de 1988 abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Acontece que nenhum desses três magnos princípios é adequadamente obedecido neste país. Não somos uma verdadeira república, porque o bem comum do povo, que os romanos denominavam exatamente res publica, não prevalece sobre os interesses particulares dos ricos e poderosos. Não somos uma autêntica democracia, porque o poder soberano não pertence ao povo, mas a uma minoria de grupos ou pessoas abastadas; o que é a própria definição de oligarquia. Tampouco constituímos um Estado de Direito, porque, com escandalosa frequência, as pessoas investidas em cargos públicos – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – exercem um poder sem controle, e logram pôr sua vontade e seus interesses próprios acima do disposto na Constituição e nas leis.
Em suma, vivemos um regime político de dupla face. Para efeitos externos, a nossa República, como declara a Constituição, é um Estado Democrático de Direito. Para efeitos internos, porém, como todos sabem, a realidade é bem outra.
O povo brasileiro tem sido regularmente impedido de exercer o poder soberano. De um lado, por falta de adequada informação sobre as questões de interesse público; de outro, pela impossibilidade em que se encontra o conjunto dos cidadãos de manifestar publicamente suas opiniões ou protestos.
Liberdade pública
Na democracia ateniense, a comunicação cívica era presencial: o povo reunia-se na ágora, para discutir e votar as grandes questões de interesse da pólis. Nas sociedades de massas do presente, a comunicação dos cidadãos entre si exige a mediação da imprensa, do rádio, da televisão, ou da internet. Ora, no Brasil e em vários outros países, esses meios de comunicação de massa, com a só exceção (por quanto tempo?) da internet, foram ocupados e apropriados por particulares, que deles se servem em proveito próprio, ou das classes e entidades a que estão ligados.
Em verdade, nas sociedades contemporâneas os veículos de comunicação pública exercem função semelhante à do sistema de circulação sanguínea nos organismos animais. Trata-se de levar fatos, opiniões, ensinamentos, propostas ou espetáculos ao conjunto dos cidadãos, com a suposição de que estes saberão reagir a tais estímulos. É sempre o duplo movimento de sístole e diástole.
Ora, ninguém ignora que o sistema de comunicação de massa, aqui e alhures, tem funcionado com obstruções e insuficiências, semelhantes à manifestação de uma aterosclerose. Pior: na maioria esmagadora dos casos, não existe propriamente comunicação, no sentido original da palavra. Na língua matriz, communicatio, com o verbo correlato communico, -are, significava o ato de pôr algo em comum, de partilhar. Não é o que acontece hoje no campo das transmissões radiofônicas e televisivas, nem no da imprensa periódica: as mensagens são unilateralmente transmitidas ao público, e a este, salvo em hipóteses excepcionais, não é reconhecido o direito de contestá-las, e, menos ainda, o de abrir uma discussão a respeito delas.
Venício de Lima opõe com razão, desde o título da obra, os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa (transformada, no sistema capitalista, em liberdade de empresa).
A partir das declarações de direitos do final do século 18, estabeleceu-se a distinção entre liberdade pública, com o sentido político de autogoverno ou autopoder, e liberdades privadas, como contrapoderes; vale dizer, instrumentos de defesa do cidadão perante os poderes oficiais.
Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, em 1819, sustentou que, enquanto os gregos e os romanos só se preocupavam com a liberdade pública, isto é, a participação do cidadão no exercício do poder político, e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado, praticamente, uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma, quanto as outras.
Hoje, é preciso compreender que entre liberdade pública e liberdades privadas não há oposição, mas sim complementaridade. A liberdade pública é o quadro de organização das liberdades privadas. Tomemos, por exemplo, a liberdade de voto em eleições populares. Durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, a Constituição garantia a liberdade de voto, mas as eleições não eram livres: só podiam existir partidos autorizados pelo governo, e os candidatos a postos eletivos eram submetidos a severa triagem ideológica.
Agenda setting
Esse foi um caso emblemático, em que as liberdades individuais deixaram de existir, em razão do excesso de restrições regulamentares.
Mas pode também ocorrer que as liberdades privadas sejam prejudicadas pela ausência de regulamentação. É o que vemos hoje, em nosso país, no campo da comunicação de massa. A Constituição declarou livre a manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV), mas deixou a regulamentação do quadro geral de exercício dessa liberdade individual à legislação ordinária. Sucede que até hoje, passados mais de vinte anos da entrada em vigor da Constituição, as suas principais disposições sobre a matéria ainda não foram regulamentadas. O Congresso Nacional é sistematicamente paralisado pela pressão dominante das empresas de comunicação.
Se, numa sociedade de massas, as opiniões, idéias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.
O vale-tudo empresarial nesse campo, aliás, não é próprio do Brasil. Ele se espalhou pelo mundo todo com o movimento de globalização capitalista, a partir do último quartel do século 20. Não há dúvida, porém, que fomos dos primeiros a aderir à nova moda. Nos Estados Unidos, bastião inconteste do capitalismo, a desregulamentação dos mass media somente ocorreu com a lamentável lei de 1996 [cf. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly, Bacon Press books, 2004, pp. 137/138; C. Edwin Baker, Media Concentration and Democracy – Why ownership matters, Cambridge University Press, 2007, pp. 1, 12 e ss]. Aqui, nem precisamos de lei para deitar abaixo a regulamentação mínima do setor. Neste ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, manifestando completa desinteligência dos princípios jurídicos em relação à realidade hodierna dos meios de comunicação de massa, julgou revogada a Lei de imprensa de 1967. O fundamento dessa decisão "libertária" foi o fato de que ela fora editada durante o regime militar. Os empresários rejubilaram, exclamando como o velho sertanejo: a onça fugiu, o mato é nosso.
Nunca é demais repetir que público opõe-se a próprio. Público é o que pertence a todos. Próprio, o que pertence exclusivamente a um ou alguns. A comunhão ou comunidade é o exato contrário da propriedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, não pode ser objeto de propriedade de ninguém, pois ela é um atributo essencial da pessoa humana, um direito comum a todos. Ora, se a liberdade de expressão se exerce atualmente pela mediação necessária dos meios de comunicação de massa, estes últimos não podem, em estrita lógica, ser objeto de propriedade empresarial no interesse privado.
É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco [cf. Ben H. Bagdikian, op. cit., pág. 16]. Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; sendo que cada uma dessas "redes" representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas.
Com esse quadro reduzido de atores, as peças encenadas são sempre as mesmas. Quando eu era jovem – e já lá se vão alguns decênios – dizia-se que para ser bem informado era preciso ler vários jornais. Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos a serem noticiados, ou dos assuntos a serem comentados – o famoso agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo.
Princípios fundamentais
No passado, a edição de livros ou jornais representava o exercício de uma liberdade fundamental perante os órgãos do poder estabelecido. Era o modo de se desvendarem os abusos oficiais, perante o público leitor. Eis por que o soberano político, ou os chefes religiosos, não abriam mão da censura prévia. Os leitores eram constrangidos a pensar e a se exprimir como as autoridades ordenavam. Tal situação persiste ainda nos atuais Estados autoritários e totalitários.
Sucede, porém, que nos atuais países em que a democracia existe só como fachada, a apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papéis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências.
A verdade que o poder político não se assenta apenas na coação física, mas necessita também, para ser estável, de um mínimo de obediência voluntária. Ora, esta, nas sociedades contemporâneas, só pode ser obtida com a colaboração dos meios de comunicação de massa. Quando estes últimos são organizados sob a forma de empresas privadas, atuando livres de toda regulamentação, eles se tornam os grandes mentores da opinião pública, distribuindo loas e labéus a aliados e adversários, assim como as autoridades religiosas do passado zelavam pela ortodoxia dos fiéis, prometendo a salvação para uns e a condenação eterna para outros.
A atual inversão de papéis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social. A menção a pessoas não gratas aos novos barões da imprensa, do rádio e da televisão é terminantemente proibida. Tudo se passa como se tais renegados houvessem desaparecido deste mundo, sem deixar vestígios. Conheço, assim, um professor universitário paulista que goza do odioso privilégio de ter seu nome censurado nos dois principais jornais de São Paulo.
O que importa hoje, portanto, antes de tudo, é montar uma estratégia de combate aos abusos consolidados no vasto setor de comunicação social. Como toda estratégia, ela implica a fixação de princípios, a montagem de um programa de reformas institucionais e a organização de forças políticas empenhadas em levar avante o movimento geral de transformação.
Os princípios fundamentais são os três acima citados: a República, a Democracia e o Estado de Direito. O essencial é preservar, sob controle do povo, o espaço público de comunicação de massa, e evitar cair nos desvios do estatismo e do privatismo.
Oligopólio empresarial
Ofereço a seguir, como contribuição à montagem de um programa de reformas institucionais, sob a égide desses princípios, as propostas seguintes:
** Prioridade absoluta deve ser reconhecida à criação de rádios ou televisões públicas; sejam elas de comunidades locais, com reduzido espectro de transmissão, sejam de âmbito nacional ou regional. Estas últimas devem ser geridas pelo Estado, mas com a participação majoritária, em seus conselhos de administração, de representantes legítimos da sociedade civil.
** As entidades privadas de imprensa, rádio e televisão não podem se organizar como empresas capitalistas, mas devem funcionar sob a forma de associações ou fundações. Metade, pelo menos, dos componentes do conselho de administração dessas entidades deve ser eleita pelos jornalistas que nelas trabalham.
** Nenhuma empresa privada de comunicação pode possuir o controle, direto ou indireto, de mais de um veículo.
** A concessão pública de funcionamento de entidades privadas de rádio e televisão, bem como a sua renovação, devem ser feitas sempre mediante licitação pública (Constituição Federal, art. 175), revogando-se o disposto no § 2º do art. 223 da Constituição ["A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal"].
** O Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da Constituição Federal, deve ser composto, metade por representantes dos veículos públicos de comunicação social e a outra metade por representantes dos veículos privados.
** Devem ser criadas ouvidorias populares para fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação social, em todas as unidades da federação.
** Além do direito de resposta tradicional, a lei deve instituir um direito de resposta para a defesa dos direitos coletivos e difusos, a ser exercido por associações ou entidades que tenham em seu estatuto social essa finalidade.
** Além dos partidos políticos, devem poder exercer o chamado direito de antena, já instituído nas Constituições da Espanha e de Portugal, as entidades privadas ou oficiais, reconhecidas de utilidade pública. Ou seja, elas devem poder fazer passar suas mensagens, de modo livre e gratuito, no rádio e na televisão, reservando-se, para tanto, um tempo mínimo nos respectivos veículos.
Quando da independência dos Estados Unidos, James Madison, um dos seus Pais Fundadores, afirmou que um governo democrático (a government by the people), sem uma imprensa controlada pelo povo (a popular press), seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas.
No Brasil, a criação do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa durante o regime militar (1964 a 1985) logrou, de fato, unir a farsa à tragédia. Não foi por outra razão que esse amálgama monstruoso mereceu de um jornal de São Paulo a leviana qualificação de ditabranda.
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Mais uma vez, Venício de Lima, ao fazer a crítica aguda da "desorganização" dos meios de comunicação de massa, contribui apreciavelmente para a reforma do nosso sistema político.
A Constituição de 1988 abre-se com a declaração solene de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito. Acontece que nenhum desses três magnos princípios é adequadamente obedecido neste país. Não somos uma verdadeira república, porque o bem comum do povo, que os romanos denominavam exatamente res publica, não prevalece sobre os interesses particulares dos ricos e poderosos. Não somos uma autêntica democracia, porque o poder soberano não pertence ao povo, mas a uma minoria de grupos ou pessoas abastadas; o que é a própria definição de oligarquia. Tampouco constituímos um Estado de Direito, porque, com escandalosa frequência, as pessoas investidas em cargos públicos – no Executivo, no Legislativo e até mesmo no Judiciário – exercem um poder sem controle, e logram pôr sua vontade e seus interesses próprios acima do disposto na Constituição e nas leis.
Em suma, vivemos um regime político de dupla face. Para efeitos externos, a nossa República, como declara a Constituição, é um Estado Democrático de Direito. Para efeitos internos, porém, como todos sabem, a realidade é bem outra.
O povo brasileiro tem sido regularmente impedido de exercer o poder soberano. De um lado, por falta de adequada informação sobre as questões de interesse público; de outro, pela impossibilidade em que se encontra o conjunto dos cidadãos de manifestar publicamente suas opiniões ou protestos.
Liberdade pública
Na democracia ateniense, a comunicação cívica era presencial: o povo reunia-se na ágora, para discutir e votar as grandes questões de interesse da pólis. Nas sociedades de massas do presente, a comunicação dos cidadãos entre si exige a mediação da imprensa, do rádio, da televisão, ou da internet. Ora, no Brasil e em vários outros países, esses meios de comunicação de massa, com a só exceção (por quanto tempo?) da internet, foram ocupados e apropriados por particulares, que deles se servem em proveito próprio, ou das classes e entidades a que estão ligados.
Em verdade, nas sociedades contemporâneas os veículos de comunicação pública exercem função semelhante à do sistema de circulação sanguínea nos organismos animais. Trata-se de levar fatos, opiniões, ensinamentos, propostas ou espetáculos ao conjunto dos cidadãos, com a suposição de que estes saberão reagir a tais estímulos. É sempre o duplo movimento de sístole e diástole.
Ora, ninguém ignora que o sistema de comunicação de massa, aqui e alhures, tem funcionado com obstruções e insuficiências, semelhantes à manifestação de uma aterosclerose. Pior: na maioria esmagadora dos casos, não existe propriamente comunicação, no sentido original da palavra. Na língua matriz, communicatio, com o verbo correlato communico, -are, significava o ato de pôr algo em comum, de partilhar. Não é o que acontece hoje no campo das transmissões radiofônicas e televisivas, nem no da imprensa periódica: as mensagens são unilateralmente transmitidas ao público, e a este, salvo em hipóteses excepcionais, não é reconhecido o direito de contestá-las, e, menos ainda, o de abrir uma discussão a respeito delas.
Venício de Lima opõe com razão, desde o título da obra, os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa (transformada, no sistema capitalista, em liberdade de empresa).
A partir das declarações de direitos do final do século 18, estabeleceu-se a distinção entre liberdade pública, com o sentido político de autogoverno ou autopoder, e liberdades privadas, como contrapoderes; vale dizer, instrumentos de defesa do cidadão perante os poderes oficiais.
Benjamin Constant, em conferência pronunciada no Ateneu Real de Paris, em 1819, sustentou que, enquanto os gregos e os romanos só se preocupavam com a liberdade pública, isto é, a participação do cidadão no exercício do poder político, e desconheciam a autonomia privada, os modernos atribuem ao Estado, praticamente, uma única função: garantir as liberdades individuais. Com isto, perdemos tanto uma, quanto as outras.
Hoje, é preciso compreender que entre liberdade pública e liberdades privadas não há oposição, mas sim complementaridade. A liberdade pública é o quadro de organização das liberdades privadas. Tomemos, por exemplo, a liberdade de voto em eleições populares. Durante o regime militar brasileiro de 1964 a 1985, a Constituição garantia a liberdade de voto, mas as eleições não eram livres: só podiam existir partidos autorizados pelo governo, e os candidatos a postos eletivos eram submetidos a severa triagem ideológica.
Agenda setting
Esse foi um caso emblemático, em que as liberdades individuais deixaram de existir, em razão do excesso de restrições regulamentares.
Mas pode também ocorrer que as liberdades privadas sejam prejudicadas pela ausência de regulamentação. É o que vemos hoje, em nosso país, no campo da comunicação de massa. A Constituição declarou livre a manifestação do pensamento (art. 5º, inciso IV), mas deixou a regulamentação do quadro geral de exercício dessa liberdade individual à legislação ordinária. Sucede que até hoje, passados mais de vinte anos da entrada em vigor da Constituição, as suas principais disposições sobre a matéria ainda não foram regulamentadas. O Congresso Nacional é sistematicamente paralisado pela pressão dominante das empresas de comunicação.
Se, numa sociedade de massas, as opiniões, idéias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.
O vale-tudo empresarial nesse campo, aliás, não é próprio do Brasil. Ele se espalhou pelo mundo todo com o movimento de globalização capitalista, a partir do último quartel do século 20. Não há dúvida, porém, que fomos dos primeiros a aderir à nova moda. Nos Estados Unidos, bastião inconteste do capitalismo, a desregulamentação dos mass media somente ocorreu com a lamentável lei de 1996 [cf. Ben H. Bagdikian, The New Media Monopoly, Bacon Press books, 2004, pp. 137/138; C. Edwin Baker, Media Concentration and Democracy – Why ownership matters, Cambridge University Press, 2007, pp. 1, 12 e ss]. Aqui, nem precisamos de lei para deitar abaixo a regulamentação mínima do setor. Neste ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal, manifestando completa desinteligência dos princípios jurídicos em relação à realidade hodierna dos meios de comunicação de massa, julgou revogada a Lei de imprensa de 1967. O fundamento dessa decisão "libertária" foi o fato de que ela fora editada durante o regime militar. Os empresários rejubilaram, exclamando como o velho sertanejo: a onça fugiu, o mato é nosso.
Nunca é demais repetir que público opõe-se a próprio. Público é o que pertence a todos. Próprio, o que pertence exclusivamente a um ou alguns. A comunhão ou comunidade é o exato contrário da propriedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a liberdade de expressão, enquanto direito fundamental, não pode ser objeto de propriedade de ninguém, pois ela é um atributo essencial da pessoa humana, um direito comum a todos. Ora, se a liberdade de expressão se exerce atualmente pela mediação necessária dos meios de comunicação de massa, estes últimos não podem, em estrita lógica, ser objeto de propriedade empresarial no interesse privado.
É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco [cf. Ben H. Bagdikian, op. cit., pág. 16]. Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; sendo que cada uma dessas "redes" representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas.
Com esse quadro reduzido de atores, as peças encenadas são sempre as mesmas. Quando eu era jovem – e já lá se vão alguns decênios – dizia-se que para ser bem informado era preciso ler vários jornais. Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos a serem noticiados, ou dos assuntos a serem comentados – o famoso agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo.
Princípios fundamentais
No passado, a edição de livros ou jornais representava o exercício de uma liberdade fundamental perante os órgãos do poder estabelecido. Era o modo de se desvendarem os abusos oficiais, perante o público leitor. Eis por que o soberano político, ou os chefes religiosos, não abriam mão da censura prévia. Os leitores eram constrangidos a pensar e a se exprimir como as autoridades ordenavam. Tal situação persiste ainda nos atuais Estados autoritários e totalitários.
Sucede, porém, que nos atuais países em que a democracia existe só como fachada, a apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papéis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências.
A verdade que o poder político não se assenta apenas na coação física, mas necessita também, para ser estável, de um mínimo de obediência voluntária. Ora, esta, nas sociedades contemporâneas, só pode ser obtida com a colaboração dos meios de comunicação de massa. Quando estes últimos são organizados sob a forma de empresas privadas, atuando livres de toda regulamentação, eles se tornam os grandes mentores da opinião pública, distribuindo loas e labéus a aliados e adversários, assim como as autoridades religiosas do passado zelavam pela ortodoxia dos fiéis, prometendo a salvação para uns e a condenação eterna para outros.
A atual inversão de papéis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social. A menção a pessoas não gratas aos novos barões da imprensa, do rádio e da televisão é terminantemente proibida. Tudo se passa como se tais renegados houvessem desaparecido deste mundo, sem deixar vestígios. Conheço, assim, um professor universitário paulista que goza do odioso privilégio de ter seu nome censurado nos dois principais jornais de São Paulo.
O que importa hoje, portanto, antes de tudo, é montar uma estratégia de combate aos abusos consolidados no vasto setor de comunicação social. Como toda estratégia, ela implica a fixação de princípios, a montagem de um programa de reformas institucionais e a organização de forças políticas empenhadas em levar avante o movimento geral de transformação.
Os princípios fundamentais são os três acima citados: a República, a Democracia e o Estado de Direito. O essencial é preservar, sob controle do povo, o espaço público de comunicação de massa, e evitar cair nos desvios do estatismo e do privatismo.
Oligopólio empresarial
Ofereço a seguir, como contribuição à montagem de um programa de reformas institucionais, sob a égide desses princípios, as propostas seguintes:
** Prioridade absoluta deve ser reconhecida à criação de rádios ou televisões públicas; sejam elas de comunidades locais, com reduzido espectro de transmissão, sejam de âmbito nacional ou regional. Estas últimas devem ser geridas pelo Estado, mas com a participação majoritária, em seus conselhos de administração, de representantes legítimos da sociedade civil.
** As entidades privadas de imprensa, rádio e televisão não podem se organizar como empresas capitalistas, mas devem funcionar sob a forma de associações ou fundações. Metade, pelo menos, dos componentes do conselho de administração dessas entidades deve ser eleita pelos jornalistas que nelas trabalham.
** Nenhuma empresa privada de comunicação pode possuir o controle, direto ou indireto, de mais de um veículo.
** A concessão pública de funcionamento de entidades privadas de rádio e televisão, bem como a sua renovação, devem ser feitas sempre mediante licitação pública (Constituição Federal, art. 175), revogando-se o disposto no § 2º do art. 223 da Constituição ["A não-renovação da concessão ou permissão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal"].
** O Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da Constituição Federal, deve ser composto, metade por representantes dos veículos públicos de comunicação social e a outra metade por representantes dos veículos privados.
** Devem ser criadas ouvidorias populares para fiscalizar a atuação dos veículos de comunicação social, em todas as unidades da federação.
** Além do direito de resposta tradicional, a lei deve instituir um direito de resposta para a defesa dos direitos coletivos e difusos, a ser exercido por associações ou entidades que tenham em seu estatuto social essa finalidade.
** Além dos partidos políticos, devem poder exercer o chamado direito de antena, já instituído nas Constituições da Espanha e de Portugal, as entidades privadas ou oficiais, reconhecidas de utilidade pública. Ou seja, elas devem poder fazer passar suas mensagens, de modo livre e gratuito, no rádio e na televisão, reservando-se, para tanto, um tempo mínimo nos respectivos veículos.
Quando da independência dos Estados Unidos, James Madison, um dos seus Pais Fundadores, afirmou que um governo democrático (a government by the people), sem uma imprensa controlada pelo povo (a popular press), seria um prelúdio à farsa, à tragédia, ou a ambas as coisas.
No Brasil, a criação do oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa durante o regime militar (1964 a 1985) logrou, de fato, unir a farsa à tragédia. Não foi por outra razão que esse amálgama monstruoso mereceu de um jornal de São Paulo a leviana qualificação de ditabranda.
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