sábado, 3 de abril de 2010

Serra aplica táticas antigreves de Yeda




Reproduzo artigo de Marco Aurélio Weissheimer, publicada no sítio Carta Maior com o título “Infiltração e repressão: Serra repete práticas de Yeda”:

O governo José Serra (PSDB) adotou as mesmas táticas policiais utilizadas pela também tucana Yeda Crusius no Rio Grande do Sul. Integram essas táticas, entre outras, duas medidas básicas: reprimir violentamente protestos e manifestações de ruas e infiltrar policiais a paisana nestes protestos e manifestações. O episódio da foto onde um homem carrega uma PM ferida nos protestos de 26 de março expôs, involuntariamente, esse tipo de prática.

Inicialmente, um texto do jornalista Leandro Fortes reproduziu a versão difundida pela Agência Estado dando conta de que o homem era um manifestante que participava do ato dos professores. Diante da repercussão causada pela foto, dois dias depois, o comando da PM de São Paulo divulgou nota garantindo que se tratava de um policial à paisana “que estava passando por ali por acaso”. A PM negou tratar-se de um “infiltrado”, mas negou-se a divulgar o nome do mesmo o que só reforça a tese de que se tratava de um homem do chamado “serviço de inteligência” da polícia.

Uma das regras básicas do trabalho desse “serviço de inteligência” é não ser identificado publicamente. Vale tudo para assegurar o anonimato, desde disfarçar-se de manifestante ou mesmo de jornalista. No dia 30 de abril de 2009, um homem, apontado por manifestantes como sendo agente da PM2, o serviço secreto da Brigada Militar (a PM gaúcha), usou indevidamente o nome da Carta Maior ao infiltrar-se em uma manifestação de servidores públicos contra o governo Yeda Crusius, em Porto Alegre, e fazer fotos dos manifestantes.

Não foi a primeira vez que servidores de órgãos de segurança disfarçaram-se de fotógrafos no Rio Grande do Sul, identificando-se como profissionais de imprensa para espionar manifestações de sindicatos e movimentos sociais. Em geral, essa prática conta com a cumplicidade (pelo silêncio) da imprensa local, que tem conhecimento da mesma, mas não fala no assunto.

O papel dos infiltrados é duplo: recolher informações e fazer fotos de manifestantes, por um lado; e, eventualmente, dar início a provocações que levem a distúrbios e conflitos que, posteriormente, serão atribuídos aos manifestantes. Essa prática, aplicada várias vezes contra sem terras, professores e servidores públicos no Rio Grande do Sul, é repetida agora em São Paulo com as acusações de que os professores em greve seriam “baderneiros” e responsáveis pelos conflitos com a polícia.

A decisão do PSDB de São Paulo de entrar na Justiça contra o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo também segue a mesma cartilha utilizada pelo governo Yeda no RS. Segundo a representação encaminhada em conjunto pelo PSDB e pelo DEM, “o movimento se organiza em torno de palavras de ordem e outras manifestações que tendem a interferir no âmbito eleitoral, partidarizando o movimento”.

No Rio Grande do Sul, dirigentes sindicais, jornalistas e lideranças de movimentos sociais já perderam a conta do número de processos, no âmbito civil e criminal, movidos pela governadora Yeda Crusius. O Ministério Público do Rio Grande do Sul chegou a determinar, em 2009, a retirada de cartazes e outdoors que faziam parte de uma campanha de sindicatos de servidores públicos e movimentos sociais denunciando casos de corrupção envolvendo o governo Yeda. A atual presidente do Centro de Professores do Estado do RS (CPERS/Sindicato), Rejane Rodrigues, está sofrendo vários processos, um deles por ter participado de uma manifestação em frente à casa da governadora.

O fato é que os governos tucanos apresentam uma uniformidade no trato com manifestações sociais: o que domina é a lógica da repressão, a ausência do diálogo e a aversão ao contraditório. O uso de policiais infiltrados nas manifestações é típico de tempos autoritários, onde a “interlocução” de governos com a oposição é feita nos subterrâneos, com práticas nada transparentes. Não é por acaso, portanto, que cenas e práticas similares vêm sendo vistas nas ruas de São Paulo e do Rio Grande do Sul.

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Desabafo de Lula e intolerância da mídia

Reproduzo artigo do jornalista e escritor Washington Araújo, publicado no Observatório da Imprensa com o título “cadê a intolerância: o ataque presidencial à imprensa?”:


E os jornais entraram em parafuso. O assunto rendeu manchete, colunas políticas, notas, e editoriais inflamados. Tudo porque a Constituição Federal, promulgada em 1988, conhecida como a Constituição Cidadã – aquela que ficou congelada na foto histórica e hoje a todos acessível, no momento mesmo em que o doutor Ulysses Guimarães a erguia na mão.

Pois bem, a Constituição assegurava a todos o direito à livre expressão. E à circulação de idéias. E à liberdade de pensamento. E de imprensa também. Uma coisa é que o que está esculpido na Constituição, outra coisa bem diferente é o que cada um entende dos direitos fundamentais, da cidadania, do Estado democrático de direito. Pelo que li nos jornais de quinta-feira (25/3), passei a supor que o todos mencionado na Constituição exclui, logo de saída, a pessoa do presidente da República.

É um todos assim meio envergonhado, uma espécie de marquise que abriga a todos, menos o chefe do Poder Executivo, o presidente eleito através do voto universal e secreto em duas eleições seguidas – 2002 e 2006 – pelo mesmo povo brasileiro que, em 1986, elegeu um Congresso Constituinte composto por 559 parlamentares, 487 deputados e 72 senadores, e presidida pelo deputado Ulysses Guimarães, conhecido à época como o "Senhor Diretas". Foi uma Constituinte diferente porque foi alvo da pressão popular que conquistou o direito de apresentar emendas. Essas emendas alcançaram o total de 12.265.854 assinaturas.

"O vezo antidemocrático"

Vamos ao que interessa. Essas foram as manchetes dos grandes jornais no dia 25/3/2010:

* Folha de S.Paulo: Editorial – "Devaneio autoritário" ; "Para presidente, imprensa cobre com `má-fé´ a ação do governo"

* O Globo: "Lula fala em continuidade e ataca a imprensa"

* O Estado de S. Paulo: "Lula volta a acusar imprensa de má-fé"

O editorial da Folha expressa sua total contrariedade já a partir do título – devaneio autoritário. E alinha algumas sacações da empresa, a meu ver, muito equivocadas. Derrapadas mesmo. Exemplos? "O vezo antidemocrático de Lula se expõe quando o que está em pauta é a divergência de opinião e a liberdade de imprensa".

Ora, ora, quem está sendo antidemocrático? O presidente porque fala de sua insatisfação com a imprensa ou o jornal porque não aceita ser criticado pelo presidente? E se o que está em pauta é "a divergência de opinião", é no mínimo curioso que o editorialista acuse nos outros o pecado que comete: o jornal procurou aceitar a "opinião divergente" emitida pelo presidente sobre nossa grande imprensa? Afirma o editorial: "Lula não tolera ser criticado e convive mal com esforços de fiscalização de seu governo".

Cadê o ataque?

Desde quando mostrar insatisfação com a cobertura da imprensa pode ser tachado de intolerância? Teria ele ordenado a invasão dos jornais, a prisão de jornalistas, a não-renovação de concessão para funcionamento de emissoras de rádio ou TV? Não. Então, cadê a intolerância? Ou intolerância é qualquer ato de não alinhamento automático com as posições da imprensa?

Fico por aqui. O editorial empilha idéias que não ficam de pé por si mesmas. Na reportagem da Folha, chama a atenção o subtítulo: "Presidente volta a criticar a imprensa, afirmando que a leitura de `determinados tablóides´ o deixa triste todas as manhãs". Um caso raro em que o subtítulo e o título da matéria parecem brigar pelo tom a ser dado ao texto. O título carrega no "má-fé"; o subtítulo arredonda para o estado de humor do presidente, algo cuja "leitura o deixa triste". E durma-se com um barulho destes.

O carioca O Globo escala o beligerante verbo "atacar". Quem não teve tempo de ler nada mais que a manchete deve ter ficado com a pulga atrás da orelha: como foi o ataque do presidente à imprensa? O presidente ameaçou fechar jornais? O presidente exigiu, como se fazia em passado recente, a demissão de algum jornalista em especial? O presidente deu nome aos bois? Por exemplo, afirmou que a revista Y é tendenciosa ao extremo e só publica inverdades? Apontou que o jornal X chantageia o governo em troca de favores oficiais? Colocou o dedo em riste dirigindo-se à emissora de TV Z como filhote maior do capital especulativo e predador?

Não achamos nada disso na reportagem. Então, cadê o ataque presidencial à imprensa? Será este excerto?: "Para ele, esses críticos gostariam que houvesse alguma desgraça no país para que pudessem afirmar que ele, por não ser `letrado´, não tem capacidade para administrar o país".

"Predileção pela desgraça"

Será que ninguém nunca olhou enviesado para a cobertura feita por determinado órgão da imprensa para o governo atual e, avanço mais, será que nunca o leitor minimamente incauto não identificou as pegadas do preconceito social e cultural deste ou daquele articulista sobre a figura do presidente? O que ele disse foi elaborar de outra maneira a clássica lição das faculdades de jornalismo: "Notícia é um homem morder um cachorro e não o contrário". É ilustrativo repercutir essas aspas do presidente encontradas em O Globo:

"Fico imaginando daqui a 30 anos, quando alguém quiser fazer uma pesquisa sobre a história do Brasil e sobre o governo Lula e tiver que ficar lendo determinados tablóides. Ou seja, esse estudante vai estudar uma grande mentira neste país. Quando, na verdade, poderia estar estudando a verdade do que aconteceu neste país."

Li a frase em voz alta, de mim para mim, apenas para encontrar algum tom de agressividade, alguma forma insuspeita de ataque à imprensa e confesso que não encontrei traço algum. Está muito mais para desabafo que para um ataque do presidente.

O vetusto Estadão segue a mesma toada dos irmãos-maiores. Título: "Lula volta a acusar a imprensa de má-fe". Subtítulo: "Lula se diz vítima de `má-fé´ da mídia". O objetivo é tratar o desabafo (sim, banco o termo) presidencial como sendo um elo adicional à corrente de acusações do presidente à imprensa e, logo em seguida, jogar luz ao discurso vitimizante do presidente. O jornal dos Mesquita é bem mais transparente na forma aprovada para dar ares de escândalo e de ofensa ao que, no fundo mesmo, nada tinha de escândalo e muito menos de ofensa. Destaco o trecho que realmente importa:

"O presidente, no discurso de ontem, disse que estava fazendo o desabafo para o noticiário não piorar ainda mais. `Se você se acovardar, eles (jornais) vêm para cima. Se tem uma coisa que não temos que ter é vergonha do que fizemos neste país´, afirmou. Ele reclamou, em especial, da cobertura das inaugurações de obras. `Esses dias eu fiquei triste. Inaugurei duas mil casas e não vi uma nota no jornal. Mas, quando cai um barraco, eles dizem que caiu uma casa´, disse. `É uma predileção pela desgraça.´ Ele ainda reclamou que empresários do setor foram convidados a participar da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), organizada pelo governo no ano passado, mas não compareceram."

Olho no olho, gestos largos

Sublinhei o substantivo masculino "desabafo" propositalmente. Ao menos um dos três grandes jornais do país reteve a mesma percepção que tive ao ler as declarações do presidente no dia 24/3/2010. Nem ataque, nem acusação; desabafo de um presidente.

O Estadão fez a cobertura mais equilibrada ao informar seus leitores o pensamento do presidente usando suas próprias palavras. Quando lemos o excerto acima de olhos fechados conseguimos imediatamente imaginar estas palavras sendo ditas pela boca presidencial. A menção ao "valor-notícia = 0" para inauguração de 2 mil casas e para o "valor-notícia = 100" concedido quando cai um barraco e... sua prosaica conclusão de que, uma vez formada a equação com tais variáveis, o resultado só pode ser "uma predileção pela desgraça" é típico do pensamento e da visão de mundo do presidente. E é sincero. Não precisa ser presidente para concordar com este raciocínio, tal a clareza, a transparência do enunciado, a assertividade da conclusão. E não deixou passar em branco o boicote que empresários da grande imprensa, inclusive suas entidades classistas, fizeram quando da Confecom. Uma resposta ao encontro do Instituto Millenium.

O presidente da República apresentou à nação um novo figurino de chefe do Executivo. Um presidente falante, que fala língua das ruas, becos e vielas, que fala com o ribeirinho à margem do rio Juruá, no Amazonas, com a mesma desenvoltura com que responde a uma pergunta formulada pela rainha Elizabeth II, do Reino Unido. Para ele, trocar cinco minutos de prosa com catadores de material reciclável na periferia de São Paulo tem a mesma importância que discutir em Davos, na Suíça, os rumos que a economia mundial é forçada a trilhar.

Neste figurino encontramos o sujeito que, ao que tudo indica, pode até não saber a diferença entre conjunções coordenativas adversativas, aquelas que possuem a função de estabelecer uma relação de contraste entre os sentidos de dois termos ou duas orações de mesma função gramatical, e as conjunções subordinativas causais, aquelas que subordinam uma oração a outra, iniciando uma oração que exprime causa de outra oração, à qual se subordina.

Afinal, pensando bem, será mesmo imprescindível que um governante saiba a diferença entre as duas conjunções?

É um figurino feito para nocautear qualquer assessoria da Presidência. O sujeito simplesmente dispensa os textos pré-escritos, prefere escrever o texto ali mesmo diante da audiência, olho no olho, com gestos largos, metáforas nascidas no sufoco do último Fla x Flu, conselhos aos técnicos de futebol entremeados com o tema da inauguração, seja um hospital ou um novo trecho da nossa Transiberiana, a eterna construção da nossa conhecida ferrovia Norte-Sul.

Não pode falar da imprensa

O estilo de contumaz "sincericida" (aquele que comete sincericídio) pode estar na origem da aprovação popular que desfruta para desgosto de quem escreveu o editorial da Folha, quando ao referir-se ao presidente disse que "agora, ao criticar mais uma vez a imprensa, comporta-se como quem aspira à unanimidade – algo que está longe de ser um padrão democrático." Se as declarações do presidente, quando reunidas, se transformassem em bolo... diríamos então que o editorial da Folha sob enfoque seria sua cereja. É verdade que a grande imprensa até que se esforça para não vestir as carapuças distribuídas com generosidade pelo presidente. Verdade também que estas, quando bem encaixadas – como é o caso do editorial aventado –, vestem muito bem.

Por dizer o que pensa e não o que os assessores gostariam que ele dissesse, o presidente é duplamente rechaçado pela grande mídia. Suas frases escalam o topo das manchetes, principalmente se forem ardilosamente descontextualizadas. Um termo comum nas ruas do país passa batido por qualquer analista político ou redator de editorial. Mas se o termo provier da boca do presidente... é um Deus-nos-acuda!

E foi exatamente o que aconteceu em 10/12/2009. Em São Luís do Maranhão, o presidente, para afirmar que seu governo investe em saneamento básico, disse textualmente: "Eu quero saber se o povo está na merda e eu quero tirar o povo da merda em que ele se encontra". E como alguém que de bobo só tem os amigos, o presidente previu que seria criticado e disse que os comentadores dos grandes jornais destacarão o uso de um palavrão no seu discurso. Arrematou a função de vidente com a afirmação: "Mas eu tenho consciência de que eles falam mais palavrão do que eu todo dia e tenho consciência de como vive o povo pobre deste país".

Tenho uma coleção de frases do presidente, pois afinal defendi tese na academia com o explicativo título-tema "As frases do presidente Lula", cobrindo os primeiros cinco meses de seu primeiro mandato, de 1/1 a 31/05/2003. Portanto, tenho assim um mínimo de conhecimento do assunto. Mas aqui o assunto é outro. O que me causa perplexidade é que este presidente, sempre tão loquaz, tão espontâneo, palpiteiro que dá dó, com um porcentual de aprovação do povo brasileiro na marca recorde de invejáveis 83%, pode falar de tudo... opa!, tudo não, ele não pode falar da imprensa. Mas o contrário, falar dele e de forma pouco lisonjeira, é a mais lídima verdade. A imprensa pode falar o que quiser, descontextualizar suas falas com grande regularidade, provocar sua indignação, reduzi-lo a um reles analfabeto que chegou à Presidência da República.

Político bivocabular

Até o filme que retrata parte de sua vida parece ter como título "O filho do Demo", e não "O filho do Brasil": a revista Veja apresenta o filme em seu sítio como um dos 10 piores filmes da história do cinema brasileiro. Desde quando ter 900 mil espectadores em dois meses de exibição é um fracasso de público? Será que o filme não foi o sucesso que se esperava "porque os brasileiros sabem tudo sobre Lula"? E que os brasileiros podem vê-lo e tocá-lo todos os dias? Sabem toda sua história de menino pobre, contada mil vezes por ele mesmo?

Para chegar aos 83% de aprovação popular, pode-se inferir o que escreveu o diário espanhol El País: "Os brasileiros gostam do Lula de verdade, de carne e osso, com seus erros de gramática quando fala, o Lula vestido por estilistas famosos, elegantíssimo em Davos, e o Lula com o boné da Petrobras e a camisa de operário, entre os camponeses do Movimento dos Sem Terra."

A mídia não gosta de seus amigos e faz questão que todos eles, assim de cambulhada, sejam tratados como persona non grata. Alguns bem controvertidos, polêmicos quando não ditadores, e tiranos. Alguns amigos do presidente – Fidel à frente, Hugo Chávez, Evo Morales, Cristina Kirchner, Fernando Lugo, Mahmud Ahmadinejad etc. – não podem ser convidados para a mesma mesa (nem para o mesmo restaurante) que a grande mídia brasileira. Mas, principalmente, os amigos do presidente e a grande mídia não deveriam nem mesmo fazer parte de uma mesma frase. O problema é que o presidente perseguiu uma política de boa vizinhança que o deixa muito à vontade com seus atuais amigos de infância, gente como Nicolas Sarkozy, Barack Obama, Silvio Berlusconi, Michelle Bachelet, Gordon Brown.

Se o presidente, para desanuviar a cabeça em seu gabinete no Palácio do Planalto, sintonizar a rádio que toca notícias, a CBN, terá cinco chances em cinco de ouvir os gracejos do jornalista Heródoto Barbeiro colocando no ar vinhetas editadas em que suas falas são confundidas com as falas do saudoso prefeito de Sucupira, o grande Odorico Paraguaçu. Essas vinhetas, sempre muito engraçadas, são difundidas apenas como forma de expressar o desalento da emissora e do apresentador para a pessoa do presidente.

Como o objetivo é ridicularizá-lo, chamá-lo de caipira, coronel do Brasil profundo, iletrado, fisiológico, tacanho, antiético, político de duas palavras (na linguagem do prefeito Odorico, seria `pessoa bivocabular´), entende-se que a vinheta deve ser do agrado de todo mundo que rende homenagens ao maior ator do Brasil, Paulo Gracindo. Dificilmente o presidente deveria gostar de ver sua voz, sua fala, ser ironizada e sarcasticamente apresentada como sendo do prefeito sucupirense. E boa parte daqueles que o admiram certamente tenderão a ser solidários com o presidente. Tão simples quanto isso.

Estamos nos idos de março. Pelo andar da carruagem, a temperatura poderá ferver bem acima do esperado antes mesmo de chegar setembro, outubro de 2010.

Relações cordiais

Se as declarações do presidente sobre a forma como a imprensa noticia seu governo são recebidas com tanto açodamento, entendo que não demora muito para que uma colisão se materialize. É fato que a relação entre governos e imprensa é em geral muito sensível, delicada e sempre à beira de um impasse ou, ao menos, de turbulências. Nos Estados Unidos, as relações entre o presidente Obama e alguns veículos de comunicação são profundamente conflituosas. Basta recordar que, não faz muito tempo, a Casa Branca informou que passaria a tratar a conservadora rede de TV Fox News como partido de oposição, e não veículo de comunicação.

Alguém já imaginou tal evento no Brasil? Alguém já pensou como seria a repercussão de um comunicado da Secretaria de Comunicação da Presidência da República dizendo que a partir daquela data o governo consideraria a revista Veja como porta-voz da oposição? Ou, então, a rede Globo ser vista como irmã siamesa da Fox News norte-americana, com viés eminentemente político-partidário e sempre vociferando contra tudo que traga consigo a lembrança do governo?

Ora, não preciso ser amigo da madame Carlota para, pegando de empréstimo sua bola de cristal, antever o clima do filme 2012 transbordando por toda a sociedade brasileira. No caso do Brasil, não consigo imaginar o presidente se policiando e se omitindo de expressar sua opinião sobre qualquer assunto, pois seria uma espécie de autossabotagem. Também não consigo ver a imprensa deixando de fazer o que acredita ser seu papel: noticiar tudo o que quer, da forma que quer e como deseja que seja vista, lida e analisada esta ou aquela ação governamental.

Uma coisa é certa: o Brasil nada ganha com uma queda de braço entre governo e mídia. Ao contrário, só tem a perder. As energias de um e de outro seriam deslocadas de sua missão principal para articular ataques e contra-ataques, baseados em fatos ou fundados em versões, criar escaramuças e tudo isso redundar na velha conhecida guerra das vaidades, dos egos inflados e feridos, mágoas e ressentimentos. É o momento de os dois aparentes antagonistas refletirem pausadamente sobre a relação que desejam ter porque só valorizamos o clima de harmonia entre governo e imprensa quando, infelizmente, já o perdemos.

É tempo de posicionar o carro dos bombeiros, conferir os equipamentos, atentar para o volume de água disponível. E esperar que estas relações sejam cordiais, quando não amistosas e sinceras. Sem dúvida, é algo mais fácil que – parafraseando Don Henley, vocalista do Eagles – o inferno congelar.

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Smart power dos EUA na América Latina

Reproduzo artigo do jornalista Hideyo Saito, publicado no sítio Carta Maior:

O intervencionismo atual dos EUA na América Latina é resultante do aperfeiçoamento da estratégia de “guerra psicológica” formulada na década de 1940 com o objetivo de conter o comunismo no mundo. Incorporou, em nossos dias, inovações como o uso de novas tecnologias de informação, do poder da mídia dominante e de recursos de marketing para impor sua visão de mundo e mobilizar a juventude do país alvo em causas que interessam a Washington. A súbita emergência de um organizado movimento estudantil que contesta o governo venezuelano não é mera coincidência, como mostram precedentes nos países do leste europeu.

Essa política começou a ganhar forma logo após o final da Segunda Guerra, com a criação da CIA, conforme relatou a jornalista britânica Frances Stonor Souders com base em documentos da própria organização (1). A estratégia foi explicada, na época, pelo presidente estadunidense Dwight Eisenhower, da seguinte forma: “Nosso objetivo não é a conquista de territórios nem a subjugação pela força... É mais sutil, mais penetrante e mais completo... A ‘guerra psicológica’ é a luta pela mente e pela vontade dos homens” (2).

Com essa filosofia, a CIA patrocinou, durante décadas, mais de 20 revistas culturais e controlou entidades de fachada em 35 países, promovendo exposições, concursos literários e artísticos, conferências internacionais e outras atividades de grande repercussão. Envolveu intelectuais de renome, de preferência progressistas (desde que não fossem marxistas e, muito menos, simpatizantes da União Soviética), considerados os únicos com credibilidade para destruir a “mitologia comunista”. O que interessava era fomentar um clima internacional favorável aos valores do capitalismo liberal, desacreditando os relacionados ao socialismo.

A América Latina foi contemplada com a revista cultural Mundo Nuevo, editada em Paris com recursos da CIA. Segundo lembrou o jornalista Argemiro Ferreira em seu blog, era uma publicação sofisticada e atraente, que estampava entrevistas e textos de estrelas ascendentes como Gabriel García Marquez, Carlos Fuentes, Cabrera Infante e outros do mesmo calibre. Ferreira cita uma dissertação acadêmica que estudou o papel exercido pela revista, escrita pelo estadunidense Russell St. Clair Cobb, da Universidade do Texas: “Mundo Nuevo, a revolução cubana e a política da liberdade cultural”.

Cobb sustenta que a publicação foi criada para combater a revolução cubana, usando uma “retórica de literatura descomprometida e cosmopolita, para se contrapor ao modelo revolucionário da literatura engajada” (3). A “guerra psicológica”, contudo, era apenas parte de uma política muito mais abrangente, que compreendia desde sutis iniciativas para impor uma visão anticomunista de mundo, até brutais ações de assassinato de líderes e de derrubada de governos considerados indesejáveis.

A atual estratégia de propaganda ideológica dos EUA continua marcada pelo mesmo pragmatismo e flexibilidade. Para organizá-la Washington criou, na década de 80, a National Endowment for Democracy (NED), que vem fazendo (mais ou menos) abertamente o que a CIA praticava de forma clandestina. Apresentando-se como órgão dedicado a apoiar os direitos humanos e a democracia, a NED acumula um respeitável histórico de intromissões na política interna de cerca de 90 países da África, América Latina, Ásia e Europa Oriental (4).

Ela age em parceria com a Agência para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), o Instituto Nacional Democrata (do Partido Democrata), o Instituto Internacional Republicano (Partido Republicano), além de think tanks (centros de pesquisa) e organizações não-governamentais como Albert Einstein Institution, Freedom House, Ford Foundation, Cato Institute e Open Society Institute (este, do especulador George Soros). Seu braço propagandístico por excelência é a Voz da América (VOA), serviço de radiodifusão internacional do governo estadunidense.

Criada em 1942 como parte do esforço dos aliados para conter o expansionismo nazista, a VOA foi reciclada no imediato pós-guerra para participar do combate ao comunismo no mundo. Continua ativíssima em pleno século XXI, agora com as antenas principais voltadas para a América Latina, especialmente os países mais importantes da Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América (Alba): Cuba, Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua (5). São mais de 1.250 horas semanais de transmissões radiofônicas (programas culturais, educacionais e noticiários) em 45 idiomas, para uma audiência mundial de 134 milhões de pessoas, segundo apregoa a própria emissora.

A VOA conta ainda com 319 emissoras de rádio afiliadas na América Latina, sendo 199 na Bolívia, 77 na Colômbia, sete no Equador e igual número no Peru. As demais estão na Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai, Costa Rica, México, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras e Panamá. No campo da televisão, em que transmite em 24 idiomas, as estações afiliadas somam 95 na América Latina, 23 delas na Colômbia. Todas recebem, gratuitamente, farto material de áudio e de vídeo para suas programações. Finalmente, a emissora estadunidense oferece cursos de capacitação a jornalistas e estudantes de jornalismo latino-americanos (6).

Sustentação a líderes e movimentos alinhados

No governo Barack Obama, como foi explicado pela secretária de Estado, Hillary Clinton, durante sabatina no Senado para a sua confirmação no cargo, a política externa passou a trabalhar como conceito de smart power, que prevê o emprego tanto do hard power (invasão militar, imposição de governos locais e tutela bruta), como do soft power (diplomacia, influência econômica, guerra psicológica e cultural e campanhas de mídia), de acordo com a situação (7).

Mas essa política começou a ser testada nos países do leste europeu, envolvendo campanhas de marketing e de mídia, para fortalecer políticas, idéias e lideranças fiéis aos interesses dos EUA. Lá, além das notórias “consultorias” prestadas por economistas neoliberais para a transição à economia de mercado (cujos resultados estão à mostra em nossos dias, com a virtual bancarrota de todos eles), as intervenções encabeçadas pela NED serviram para colocar dirigentes cooptados por Washington no poder, como foi o caso de Vojislav Kostunica na Sérvia. Promoveram também a Revolução Laranja, na Ucrânia, e a Revolução Rosa, na Geórgia.

Em cada caso, consultores especializados analisaram a realidade política local para escolher um movimento considerado promissor (Otpor, na Sérvia, Porá, na Ucrânia...), assim como possíveis partidos políticos e lideranças que passariam a ser objeto de apoio, além de idealizar e ajudar a executar um plano de ação indicado para a situação. Houve um processo de “profissionalização” e fortalecimento do movimento social escolhido, que foi dotado de uma identidade claramente reconhecível e de slogans e materiais propagandísticos de alta qualidade. Jovens passaram por cursos de capacitação como militantes, enquanto mídias e personalidades “independentes” foram alinhadas à campanha.

A bola da vez tem sido a Moldávia, onde um trabalho similar ao descrito resultou no aparecimento, em abril de 2009, de um movimento juvenil que se declarou distante de partidos tradicionais e sem ligações com o passado, em suma, “anti-ideológico e puro” – mas que recebeu entusiástico apoio de entidades como a Rádio Free Europe (braço da citada VOA) e o Atlantic Council...

As maiores vitórias dessa política, alardeadas pela própria NED, foram o apoio a Lech Walesa e ao movimento Solidariedade, que acabaram tirando o Partido Comunista Polonês do poder em 1989, e ao grupo Carta dos 77, que levou Vaclav Ravel à presidência da então Checoslováquia, um ano mais tarde. A infiltração estadunidense na Polônia teve início em 1984, através de ajuda financeira para a criação de sindicatos, grupos de defesa de direitos humanos e jornais “independentes”, os quais recebiam ampla divulgação internacional (8). A mesma receita é aplicada em Cuba desde aquela época, com farto financiamento e apoio a potenciais dissidentes, jornalistas “independentes”, defensores de direitos humanos e campeões da liberdade de expressão como a blogueira Yoaní Sánchez, mas sem grande êxito até o momento.

Movimento estudantil de direita na Venezuela

Qualquer semelhança desses fatos com acontecimentos recentes na Venezuela não é mera coincidência. Sabe-se que consultores da Penn, Schoen and Berland Associates, de Washington, que foram presença constante no leste europeu, também andaram dando o ar de sua graça em Caracas antes dos pleitos de 2004 (referendo sobre a continuidade do mandato de Hugo Chávez) e de 2006, segundo as fontes citadas na nota 5. O quadro fica mais claro quando se observa a movimentação de lideranças universitárias que emergiram subitamente como força nova na política venezuelana em 2007, como Yon Goicochea (que recebeu, no ano seguinte, o Prêmio Liberdade Milton Friedman, coincidentemente conferido pelo Cato Institute, aqui também seguindo o mesmo roteiro aplicado no leste europeu e em Cuba).

Sabe-se, por exemplo, que Goicochea é assíduo em atividades patrocinadas pelo Departamento de Estado, como a reunião da Aliança de Movimentos Juvenis, realizada entre 14 e 16 de outubro de 2009 na Cidade do México. O encontro foi aberto por ninguém menos que Hillary Clinton (via internet) e contou com diversas organizações venezuelanas, como Primeiro Justiça (que se transformou em partido político), Venezuela Primeiro e a Fundação Futuro Presente, todas resultantes do ativismo desse ex-universitário (9). A reunião na capital mexicana teve a presença ainda de nomes como Marc Wachtenheim, do Cuba Development Initiative, Maryra Cedeño Proaño, do Fórum da Juventude de Guayaquil, no Equador, Eduardo Ávila, de Voces Bolivianas. Segundo a advogada estadunidense Eva Golinger, que tem denunciado ingerências de Washington na política venezuelana a partir de documentos oficiais do governo dos EUA, todas essas entidades são patrocinadas pela Usaid.

Dentre os palestrantes do evento figuraram desde expoentes de organizações que atuam como apêndices da já citada NED, como o Freedom House e o Instituto Republicano, até jovens criadores de ferramentas de tecnologia de informação, como Twitter, Facebook, Google, Meetup e Youtube. Para Golinger, reuniões como essas revelam as novas facetas que o smart power vem adotando, com a mobilização de jovens e de novas tecnologias para apoiar a dominação política e cultural estadunidense.

O papel dos oligopólios da comunicação

A outra face visível do smart power nos países integrantes da Alba tem sido desempenhada pela respectiva mídia dominante, tendo a Voz da América como protagonista muitas vezes oculta (10). Em todos, os oligopólios da comunicação procuram, em uníssono, fomentar as respectivas oposições internas, denunciando os governos locais de promoverem uma suposta escalada autoritária, com ameaças à liberdade de imprensa, aos direitos humanos e à própria democracia (11). Na Venezuela já chegaram à fase de difundir rumores sobre uma iminente revogação do pátrio poder pelo governo Hugo Chávez, para que as crianças venezuelanas fiquem sob controle do Estado para serem submetidas à “doutrinação comunista” (12).

A revolução bolivariana tem enfrentado essa barreira de propaganda aplicando com rigor a legislação, como quando a Comissão Nacional de Telecomunicações resolveu não renovar a concessão da RCTV, em 2007, e, sobretudo, com a democratização do processo de concessão de direitos de transmissão (13). Até 1998, início do governo Chávez, simplesmente não havia canais comunitários de rádio e TV em funcionamento no país. Hoje, estão no ar 245 rádios FM e 37 emissoras de televisão, operadas por entidades sociais, sindicais e de bairro. Há ainda 82 estações públicas de rádio e 12 de televisão. O setor privado comercial dispõe de 471 emissoras de rádio FM e 65 de televisão. Para completar, floresce em todo o país a produção independente de conteúdos audiovisuais para essas emissoras, graças à abertura dada por dispositivos da Lei de Responsabilidade Social no Rádio e Televisão. Essa lei foi aprovada pelo legislativo venezuelano em dezembro de 2005, após mais de um ano de debates e audiências públicas realizadas em todas as regiões do país.

É fácil ver que não existe, na Venezuela, nada parecido com concentração da mídia nas mãos do governo, como denuncia a imprensa hegemônica. O que há, isso sim, é a progressiva quebra do poder virtualmente monopólico dessa mídia no país, que tem de enfrentar a crescente concorrência de órgãos de comunicação públicos e comunitários. A referida Lei de Responsabilidade não apenas assegura a mais completa e irrestrita liberdade de expressão, como também o direito à informação objetiva e fidedigna por parte da sociedade. Curiosamente, o código anterior, vigente desde 1984, previa expressamente a censura prévia (14). A virulência da grande imprensa venezuelana no combate ao presidente Hugo Chávez confirma essa realidade.

Mídias alternativas e forças democráticas

Na Bolívia, o presidente Evo Morales denunciou publicamente a atividade, no país, de organizações não-governamentais financiadas pela Usaid e de uma rede informal de rádios que atuam organizadamente para desestabilizar o seu governo, com apoio da Voz da América (15). A emissora estadunidense, como vimos, mantém grande número de retransmissoras na Bolívia. As estações de alcance nacional e as regionais do Oriente (Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Chuquisaca) se converteram em repetidoras da linha editorial emanada da VOA.

Para a jornalista Inés Hayes, há uma reedição do trabalho de propaganda contrarrevolucionária que operou durante os governos nacionalistas de 1952 e de 1969-1970. As disputas ideológicas foram travadas principalmente pelo rádio, ainda hoje o meio de comunicação de maior penetração no país. As emissoras radiofônicas de mineiros e de camponeses de Oruro, Cochabamba e La Paz surgiram desses embates. Hoje elas se somam às 80 estações comunitárias concedidas pelo governo de Evo Morales, para se posicionar como uma rede alternativa às emissoras comerciais privadas, sob a liderança da Rádio Pátria Nueva, do setor público.

A Nicarágua e o Equador também têm sido alvos do poder de fogo da Voz da América. Com a volta do sandinista Daniel Ortega ao poder em Manágua, a VOA se apressou em reforçar suas transmissões para aquele país, com novos investimentos em instalações e equipamentos. A emissora se tornou a principal fonte de denúncias de supostas fraudes nas eleições municipais de 2008, que em seguida foram amplificadas pelo mundo afora. No Equador, durante as manifestações de protesto contra o governo de Rafael Correa, lideradas pela Confederação de Nacionalidades Indígenas (Conaie) em 2009, a mídia dominante deu inédito respaldo a esses setores até hoje marginalizados, ao mesmo tempo em que divulgou seguidas pesquisas de opinião que mostravam queda na popularidade do governo.

Não é casual, portanto, que o combate aos oligopólios da comunicação esteja na pauta das forças democráticas da América Latina. A Alba decidiu, na reunião de cúpula de outubro de 2009, realizada em Cochabamba, na Bolívia, criar uma rede regional de mídia para contrabalançar a avalanche de propaganda estadunidense. Outros países da região, que contam com governos de orientação progressista, também despertaram para a necessidade de aprovar ou fazer valer legislações que imponham limite à oligopolização dos meios de radiodifusão, sobretudo rádio e televisão, e sua “propriedade cruzada” (controle simultâneo de diversos tipos de mídia por um mesmo grupo econômico).

Essas iniciativas, já adotadas ou em curso na Venezuela, na Bolívia, na Argentina, no Equador e no Uruguai – e defendidas no Brasil pela 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) – são denunciadas com estardalhaço e cinismo pelos próprios oligopólios da comunicação, como ameaças à liberdade de imprensa e à democracia. Eles transformam em interesse da sociedade a defesa de um privilégio que amesquinha a democracia e impede a circulação de ideias e propostas alternativas, quando contrárias às das camadas dominantes. A verdade, portanto, é que sem o controle desses oligopólios pela sociedade, dificilmente teremos liberdade de expressão e democracia efetivas na região.


NOTAS

1. Saunders, Frances Stonor. Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura. Tradução de Vera Ribeiro. Record, Rio de Janeiro: 2008.

2. Saunders (Op. cit., p. 167).

3. Blog de Argemiro Ferreira. Ver post de 19/01/2010, em http://argemiroferreira.wordpress.com/.

4. Hernando Calvo Ospina. A mão (quase) invisível de Washington. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, jun/2007; Ian Traynor. US campaign behind the turmoil in Kiev. The Guardian, Londres, 26/11/2004; Joan Roelofs. Las ONG y el uso imperial de la filantropía. IAR-Noticias, 16/07/2007 (http://www.iarnoticias.com/secciones_2007/autores/0017_joan_roelofs_14en07.html, acesso em 22/10/2007,); e Thierry Meyssan. Las redes de la injerencia “democrática”. Voltairenet, 21/11/2004 (http://www.voltairenet.org/article122880.html#article122880, acesso em 12/02/2008).

5. Ver Juan O. Tamayo. La Voz de las Américas expande penetración en América Latina. El Nuevo Herald, 29/10/2009. A Alba é composta ainda por Dominica, São Vicente e Granadinas, Equador e Antígua e Barbuda. A ditadura que derrubou o presidente Manuel Zelaya, em junho de 2009, retirou Honduras da organização.

6. Como o caso de Cuba foi considerado mais grave pelos estrategistas estadunidenses, o país foi contemplado com emissoras próprias: a Rádio Martí, criada em 1986, e a TV Martí, na década seguinte. São emissoras pertencentes ao governo estadunidense, que transmitem propaganda anticubana diretamente ao território de Cuba, ao arrepio do regulamento da União Internacional de Telecomunicações, órgão especializado da ONU. A maioria dos chamados dissidentes cubanos, travestidos em "jornalistas independentes", costuma passar reportes e informações para uso dessas estações.

7. O acordo entre Colômbia e Estados Unidos, assinado em 30 de outubro de 2009, que autorizou o uso, pelo exército estadunidense, de sete bases militares em território colombiano, prevê também a livre atuação, com plena imunidade, de agentes de mais de 30 empresas privadas terceirizadas, para executar missões de inteligência, espionagem e operações exploratórias e de defesa na América Latina, segundo documentos oficiais de Washington. Dentre as contratadas está a tristemente famosa empresa de mercenários Blackwater. Esses fatos, somados à reativação da IV Frota Naval dos EUA, indicam que o país se prepara para eventuais conflitos militares na América Latina. Ver Eva Golinger. Blackwater na Colômbia. Portal Vermelho, 16/03/2010. http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=125822&id_secao=7.

8. Calvo Ospina e Meyssan (Ver nota 6). Os financiamentos da NED, diretos ou por meio de entidades como CIPE, IRI, NDI ou AFL-CIO, são divulgados em http://www.ned.org/about/nedTimeline.html.

9. Eva Golinger . «Revolução Twitter» na Venezuela http://www.telesurtv.net/noticias/opinion/1385/goicochea-y-clinton-planifican-la-revolucion-twitter-en-venezuela

10. Inés Hayes. Voz de América: de la Guerra Fría al combate frontal contra el Alba. Alainet, 04/02/2010. http://alainet.org/active/35978 (acesso em 25/02/2010).

11. No Brasil, o mesmo roteiro é seguido cotidianamente por porta-vozes da mídia dominante, tendo se expressado sem meias palavras no recente seminário promovido pelo Instituto Millenium. Ver Bia Barbosa. Grande mídia organiza campanha contra candidatura Dilma. Carta Maior, 02/03/2010; e Gilberto Maringoni. O rosnar golpista do Instituto Millenium. Carta Maior, 06/03/2010.

12. Essa abjeta campanha de atemorização teve lugar também na União Soviética e em Cuba.

13. Mário Augusto Jakobskind. Venezuela: Sobre o que a imprensa conservadora silencia. Carta Maior (do Observatório da Imprensa), 28/02/2010.

14. http://www.portalfio.org/inicio/repositorio//CUADERNOS/CUADERNO-2/LA_NUEVA_LEY_VENEZOLANA_DE_RESPONSABILIDAD_SOCIAL_EN_RADIO_Y_TELEVISION.pdf.

15. Em agosto de 2008, Morales expulsou do país o embaixador dos EUA, Philip Goldberg, assim como representantes da Usaid e da Dea, acusando-os de intervenção nos assuntos internos bolivianos.

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PL-29: ouviu-se uma voz do Planalto

Reproduzo importante e polêmico artigo do professor Marcos Dantas, publicado no sítio do Partido dos Trabalhadores (PT):

Em muito boa hora, há quase um mês, o professor Marco Aurélio Garcia, assessor especial do presidente Lula, deu uma declaração segundo a qual os canais a cabo estrangeiros são “quase tão importantes” quanto a IV Frota para o exercício de dominação por parte do Império. Pequena retificação: são mais importantes. A dominação política e cultural do “esterco” (palavra de Garcia) por eles despejado em nossa sociedade é muito mais difícil de ser enfrentada e combatida do que uma eventual dominação direta e explícita que a IV Frota por hipótese ameaçaria.

Nossos valores éticos, nossa visão de mundo, nossa posição diante da vida, nossos sonhos e projetos, nossos compromissos com o próximo e com a sociedade, nossa crença na nossa Nação, tudo isso resulta de nosso ambiente familiar, das relações de amizade, da educação formal e informal e, em grande medida, daquilo que nos alegra ou nos entristece, que nos emociona ou motiva, que passa-mos a crer ou descrer a partir do que lemos ou vemos em livros, jornais, revistas e, hoje em dia, numa dimensão impensável quando o autor dessas linhas era criança, em canais de TV e portais de internet.

Grande parte das nossas referências cotidianas apóia-se no que vemos e ouvimos na televisão. Grande parte da formação psicológica, mental e intelectual de crianças e jovens brasileiros, hoje, finca raízes, para o resto de suas vidas, nos seriados de TV, desenhos animados, filmes que lhes penetram as retinas após horas fixadas ante alguma tela de televisão ou de computador.

Risco de grande retrocesso

Salvo engano, esta terá sido a primeira vez que um integrante do núcleo presidencial manifestou-se tão explicitamente sobre a penetração cultural e ideológica, vulgar, colonizadora, hedonista e consumista, promovida pelos canais pagos de TV, quase todos estadunidenses, em nosso país.

Ou seja, o governo falou. Considerando que há mais de dois anos tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 29 (PL-29) que, visando dar novo ordenamento à regulamentação da TV por assinatura, tomou, a partir de substitutivo apresentado pelo deputado federal Jorge Bittar (PT-RJ), exatamente um rumo que vai ao encontro das preocupações de Marco Aurélio Garcia, tal manifestação pode estar sinalizando uma nova postura, mais atenta e ativa, do governo, na tramitação daquele projeto.

Sim, porque até agora, embora se saiba que, em conversas de gabinete ou pela ação direta, mas discreta, de alguns dos seus altos dirigentes, a Casa Civil e o MinC tenham muito ajudado a construir os avanços contidos na PL-29, o governo enquanto tal vinha preferindo deixar que o processo parlamentar seguisse o seu curso próprio, a nele fazer sentir a sua força, como o faz sempre que lhe convém.

Pois o processo parlamentar, que muito avançara nas comissões de mérito, especialmente na de Ciência, Tecnologia e Comunicação, está ameaçado de sofrer um grande retrocesso. Na Comissão de Constituição e Justiça, alguns deputados levantaram fortes questionamentos à constitucionalidade da PL-29, brandindo argumentos que, até agora, passavam despercebidos. Em poucas palavras, esses deputados lembram que, pela Constituição, somente as atividades de radiodifusão podem sofrer algum tipo de controle público quanto à licença para prestar o serviço e quanto aos conteúdos por ela fornecidos. Tais controles não se aplicariam às telecomunicações, uma atividade prestada em “regime privado”, logo, por extensão ao novo “serviço de acesso condicionado” que a PL-29 pre-tende criar.

Urgência da reforma na Constituição

De fato, a PL-29, desde suas primeiras versões, deixa claro que ela não se aplica à radiodifusão, assim tentando se ajustar à Constituição. Também define, como a anterior Lei do Cabo definia, o serviço de televisão por assinatura como um serviço de telecomunicações. E aqui começam os problemas, problemas estes derivados do fato elementar de que, em toda essa discussão, estar-se buscando contornar a questão central da inadequação da nossa própria Constituição ao processo tecnológico, econômico e político denominado “convergência de mídias”.

Simplesmente, quando a Constituição tratou de radiodifusão como um segmento particular das telecomunicações sobre o qual caberia aplicar regras mais específicas e exclusivas, não existia a TV por assinatura, nem as comunicações móveis “celulares”, nem internet, nem TV digital... Ao que parece, a partir da intervenção da CCJ, os legisladores e o próprio governo não mais poderão se iludir: precisamos de uma legislação que englobe todo o processo convergente, começando por uma reforma na própria Constituição.

Em termos corretamente teóricos, provavelmente corretos também juridicamente e certamente consuetudinários, regular sobre telecomunicações exclui considerar a produção ou veiculação de conte-údos relacionados a entretenimento, jornalismo, educação, cultura etc. Telecomunicações se definem como atividades neutras relativamente àquilo que é comunicado pelos seus sistemas. Dito mais claramente: a receita e o lucro resultam da oferta de um serviço que permite a transmissão física de um sinal, não importando o conteúdo significativo, logo político-cultural, desse sinal. Uma operadora de telecomunicações é uma mera transportadora de sinal.

As operadoras e o pedágio

No entanto, basta olhar qualquer publicidade de operadora de comunicações móveis “celulares” para perceber que o negócio delas já deixou de ser o transporte do sinal. Elas vendem práticas sociais, acesso à internet, inclusive, em alguns pacotes, canais de televisão. A receita e lucro dessas operadoras dependem de conteúdo. Da mesma forma, a receita e lucro de uma operadora de televisão por assinatura depende de... programação de televisão.

Numa analogia simples, para ainda melhor entender, a operadora de telecomunicações funcionaria como um concessionário privado de estradas de rodagem: retira os seus ganhos do que puder cobrar pelo tráfego de veículos, para isto precisando assegurar as melhores e mais livres condições possíveis de tráfego. Se, porém, o concessionário da estrada de rodagem passa também a oferecer, por exemplo, um serviço de transporte interurbano por ônibus, ou de transporte de carga por caminhão, ele começa a extrapolar a sua função social e econômica. No jargão das comunicações, ele estaria também oferecendo “conteúdo”. Claro que, ao fazer isto, a lei pode permiti-lo ou não. Ou, quem sabe?, vai fazê-lo devido a um vazio legal... Na verdade, é o que acontece, hoje, na norma legal brasileira para as comunicações.

Quando a Constituição foi redigida, em 1988, não se podia antecipar essa hipótese. A única tecnologia disponível para o transporte a longa distância de conteúdos jornalísticos ou culturais por meio de sinais eletromagnéticos, era a radiodifusão hertziana atmosférica. Excluída esta, só a velha imprensa de Gutenberg, na forma de jornais, livros e revistas, ainda assim, no caso de longa distância, somente se por avião ou caminhão...

O enorme poder da radiodifusão

O poder da radiodifusão atmosférica para transmitir a longa distância e em tempo real eventos jornalísticos e culturais, fez dela um poderoso instrumento de mudança social, para o bem ou para o mal. É diferente da imprensa escrita que, devido aos custos de distribuição, atua sobretudo localmente, ou, se mais amplamente, pode apenas gerar mudanças quase metastáveis. Desde os seus primórdios, o problema político-cultural da radiodifusão não se reduzia à engenharia do sinal, mas a seus impactos na formação das mentalidades, na arregimentação ideológica, na produção de consu-mo, nos rumos da mudança social, em fim. Numa palavra, conteúdo. Por isto mesmo, a radiodifusão sempre foi muito controlada, não raro estatizada, inclusive em países liberal-democráticos, como o Reino Unido dos anos 1930-1960 (a BBC estatal deteve o monopólio da radiodifusão, de 1926 a 1954).

A Constituição brasileira tão somente abrigou esse modelo tradicional. Ocorre que, de lá para cá, esse poder – esse exato poder – da radiodifusão estendeu-se a outras plataformas tecnológicas: o cabo, o satélite, o celular.

Conseqüentemente, todo o modelo de negócios mudou radicalmente. Nas freqüências usadas pela radiodifusão tradicional cabem poucos canais de TV e uma centena de emissoras de rádio. Mas nas freqüências – sim, também são freqüências hertzianas – usadas pelas transmissões por cabo, satélite ou celular cabem centenas de canais de TV, muitos outros de rádio, além, também, de serviços interativos, logo, internet, num salto quantitativo que dá outra qualidade às condições do próprio negócio.

Por um lado, continuamos falando de conteúdos – e tudo o que isso implica em termos de mudança social, agenciamento cultural, interesse nacional. Exatamente como sempre o foi na radiodifusão. Por outro lado, estamos falando da incorporação às freqüências antes estreitas da radiodifusão de uma amplíssima gama de novas freqüências e, com elas, novos recursos econômicos e políticos. Onde, antes, tínhamos umas tantas emissoras de TV ou rádio, agora temos centenas de canais de televisão, rádio ou internet que, simplesmente, para funcionarem, sequer precisam, até agora, de alguma licença do Estado – enquanto que os canais de TV ou rádio atmosféricos continuam a necessitar, para funcionarem, de alguma licença do Estado. E se submeterem às suas regras.

Ora, nada diferencia, em seus impactos políticos e culturais, essas centenas de novos canais, dos antigos poucos canais atmosféricos tradicionais. Por que então não submetê-los também às mesmas regras? É legítimo pretender que o constitucionalista, ao se preocupar com as finalidades educativas, culturais, éticas, etc., da radiodifusão, poderia, por simples extensão, visar também toda e qualquer comunicação social eletrônica, não importando por qual plataforma. Apenas, estas outras eram então inexistentes. Foi por assim entender, em coerência com o espírito da Constituição, que os relatores Bittar e, depois, Lustosa, produziram, na comissão de C&TCI, o inovador projeto que viria a ser enviado à CCJ.

Um passo na inclusão social

Depois da manifestação de Marco Aurélio Garcia, é de se esperar que o governo venha a dar atenção oficial à PL-29. Para isso, tem inclusive o total respaldo político da Iª Conferência Nacional de Comunicação. São muitas as propostas aprovadas, algumas delas por consenso (isto é, com o voto também dos empresários) que pedem isonomia de tratamento entre a TV aberta e a fechada, nos termos da Constituição. Aliás, algumas pedem até que as cotas para conteúdos nacionais e regionais atinjam 50% dos pacotes ou da programação de canais. Vá lá que, hoje, 50% será um certo exagero, mesmo porque não temos produção audiovis ual para tanto.

Mas com o fomento de recursos públicos (também demandado pela Confecom) e com garantia mínima de cotas, tudo baixo os princípios do capítulo dos artigos 220 a 223 da Constituição, o Brasil estará aproveitando a oportunidade aberta por essa completa refundação da comunicação social que vem a ser a “convergência de mídia” para avançar mais um passo na inclusão social e afirmação de soberania nacional, ao abrir centenas de canais para a nossa poderosa, rica, diversificada, multifacetada cultura. Resta esperar que os parlamentares respeitem o espírito da Constituição e, enquanto não a reformam de vez, saibam preservá-lo no que já se demonstrou ser possível na proposta contida na PL-29.

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