quarta-feira, 5 de maio de 2010
terça-feira, 4 de maio de 2010
Ho Chi Minh quer ser locomotiva da Ásia
Quarto artigo de Breno Altman, publicado no sítio Opera Mundi:
As avenidas amplas no centro da cidade e a arquitetura de seus prédios mais antigos remontam ao passado colonial, quando Saigon era parte da Indochina francesa. Fundado há mais de 300 anos, às beiras do rio que deu origem a seu nome, o município também foi tocado pelo dedo planificador de Georges-Eugène Haussmann, o barão que remodelou Paris entre 1852 e 1870.
Mas nas colônias tudo era impuro. Os funcionários do império, com suas roupas elegantes e costumes ocidentais, se misturavam à massa de camponeses que circundava e alimentava a cidade. A arquitetura que se pretendia imponente estava ilhada pelos campos de arroz e borracha.
A longa guerra pela independência, contra franceses e americanos, quebrou os muros que separavam aristocratas e camponeses na paisagem urbana. O desenvolvimento econômico, antes e bem depois do conflito, fez a sua parte. Os vietnamitas encravaram na antiga capital do sul seus edifícios estreitos e cumpridos, de dois ou três andares, sua lojinhas acanhadas, o comércio ambulante.
Depois que todas as levas de invasores foram empurradas da porta para fora, Saigon virou Cidade de Ho Chi Minh. Quando os últimos americanos escaparam de helicóptero, do telhado de sua embaixada, em 1975, pela primeira vez deixou de ter donos estrangeiros.
Os primeiros momentos foram dramáticos. Os empresários sulistas, ligados aos norte-americanos, levaram embora seu capital, tecnologia e muitos funcionários. O bloqueio ocidental interrompeu as artérias da economia. A miséria e a fome pareciam ser a vingança dos derrotados contra o burgo colonial que ganhara o nome do líder comunista.
Apenas o período de renovação, iniciado em 1986, tiraria Ho Chi Minh do cadafalso. Mais de 20 anos depois, transformou-se no principal centro econômico e urbano do país. Não disputa a primazia política com Hanói, a capital, mas é nas suas ruas que o mundo voltou a falar com o país da estrela dourada.
Um quinto do produto interno bruto do Vietnã sai da cidade. Um terço do orçamento federal por aqui é arrecadado. Quase 8 milhões de pessoas trabalham ou vivem em Ho Chi Minh, uma espetacular densidade demográfica de 3,4 mil habitantes por quilômetro quadrado. As bicicletas foram praticamente substituídas por vespas e pequenas motocicletas. Cinco milhões desses veículos com duas rodas transitam todos os dias.
A apenas 60 quilômetros do Mar da China, o porto fluvial de Ho Chi Minh tornou-se um atrativo para a instalação de grandes empresas importadoras e exportadoras. Os novos investimentos, associados às mudanças da vida no campo, promoveram a expansão de um amplo setor de serviços, da atividade turística e da produção industrial.
Motor do país
Hotéis de todas as categorias espetam a paisagem. Centros comerciais são construídos sem pausa. Ho Chi Minh pode não ter a elegância ou a organização de outras grandes cidades do mundo, mas não há nada no portifólio de suas congêneres que também não exista na velha Saigon.
Mais de 300 mil empresas foram criadas, algumas de grande porte, que atuam nas áreas de alta tecnologia, eletrônica, processamento de alimentos, construção civil e produtos agrícolas. Quinze parques industriais e zonas de exportação concentram as iniciativas de caráter estratégico.
Enquanto o Vietnã cresceu 5,3% em 2009, a cidade bateu nos 8%, repetindo a performance dos anos anteriores. Dos 3 milhões de turistas que visitaram o país, mais de 70% passaram pela ex-capital colonial.
“Nós somos o motor do país”, afirma Nguyen Trung Truc, integrante da comissão política do Partido Comunista. “Temos a responsabilidade de executar os principais projetos de infraestrutura e desenvolvimento”.
Os objetivos são ousados. O comitê popular da cidade, responsável por sua administração, desenvolveu um plano diretor que vai até o ano 2050, mas está detalhado para a próxima década. De acordo com esse planejamento, Ho Chi Minh terá de 20 a 22 milhões de habitantes em dez anos. Chegará ao fim do período estudado com 30 milhões de moradores.
Reforma
Além de sua área atual, a região do município passaria a abarcar imediatamente oito províncias ao sul, formando uma área de 30,4 mil km2 – atualmente são apenas 2 mil km2. Esse território hoje responde por 57% da produção industrial vietnamita, 60% das exportações e 47% do orçamento estatal. A meta, nada modesta, é fazer de Ho Chi Minh o maior polo econômico da Ásia.
Toda a nova megalópole seria distritalizada, fixando distintas atividades econômicas e projetos habitacionais para cada núcleo. A região central, transformada em centro financeiro, seria descongestionada. Bairros industriais seriam construídos nos arredores, perto da moradia dos trabalhadores que atualmente se deslocam quilômetros para seus empregos. As fábricas mais poluentes ficariam distantes.
Sistemas de metrô e ônibus constituiriam uma alternativa de transporte coletivo entre os distritos. Grandes parques e jardins seriam erguidos, como espaços de lazer e para reduzir os danos ambientais. A área central acabaria esvaziada sem afetar a paisagem, os locais históricos e a herança arquitetônica.
Pressão demográfica
A ambiciosa reforma urbana permitiria à cidade acomodar a pressão demográfica e estabelecer novos satélites de desenvolvimento. Desde que começou a abertura, muitos vietnamitas migram para Ho Chi Minh atrás de emprego, formando cinturões de residências precárias. O atual desenho do município não permite mais a expansão da economia em ritmo adequado e a construção de moradias decentes.
Alguns criticam a solução que está sendo estudada. Alegam que milhares de camponeses dos anéis periféricos perderiam o usufruto da terra. Ainda que recebessem compensações financeiras, como é previsto, teriam seu futuro ameaçado.
As autoridades, no entanto, afirmam que a produção agrícola estaria preservada na reorganização dos distritos. Mas enfatizam que os agricultores menos produtivos, ou seus filhos, irão preferir trabalhar nas novas empresas, aproveitando a indenização prometida para investir em algum pequeno negócio paralelo ou na construção de casas. Além do mais, apostam suas fichas nos polos tecnológicos do distrito de Go Vap, já em funcionamento, e que incluem terras para agricultura orgânica e de alta tecnologia.
Imóveis
Outro perigo atende pelo nome de especulação. Os mais ricos poderiam promover uma forte concentração imobiliária. O governo relativiza essa hipótese. “Nós temos uma estrutura de impostos crescentes para quem compra mais de uma residência”, afirma Truc. “Além do mais, o direito ao usufruto de terras e terrenos só pode ser adquirido mediante projetos de investimentos aprovados pela administração.”
As intenções dos administradores de Ho Chi Minh ainda dependem do governo central. Depois de concluídos os estudos, Hanói precisa dar sua concordância. Apesar de arrecadar impostos sobre moradia e serviços, a cidade depende do orçamento nacional para implementar seus fabulosos planos.
Não é só isso. Os chefes do país vão ter de aceitar o risco de criar uma megalópole que pode desequilibrar a relativa harmonia entre as distintas regiões. Apesar da reunificação do país, o norte parece seguir vigilante para que o sul, ao erguer a ponte principal em direção ao ocidente e ao capitalismo, não acabe abrindo caminho para novos dissabores ao Vietnã socialista.
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Vietnã cresce em ritmo de guerra
Terceiro artigo de Breno Altman sobre o Vietnã, publicado no sítio Opera Mundi:
Bat Trang é um pequeno vilarejo na zona suburbana ao sudeste de Hanói. Lá vivem cerca de mil famílias. Conhecida por muitos turistas e comerciantes, desde o século XIV é um centro de artesanato, especializado em cerâmica. Depois da guerra, como tantas outras cidades e regiões do país, sua vida econômica estava destruída.
Durante dez anos, até 1986, os artesãos eram obrigados a trabalhar em uma cooperativa, rompendo a tradição local da produção familiar. Era a fase que os vietnamitas chamam de “período do subsídio”: a economia funcionava de forma centralizada e a propriedade só podia ser estatal ou coletiva. Todas atividades eram comandadas pelo Estado, com seus planos anuais e quinquenais.
Na prática, não havia qualquer compensação tecnológica, financeira ou comercial para quem fosse cooperativizado. Os trabalhadores de Bat Trang foram perdendo o estímulo para a produção. Muitos voltaram para o campo, ao menos para tentar plantar o que comer. O povoado correu o risco de virar uma cidade fantasma.
Tudo começou a mudar no final dos anos 1980. Com o país vivendo uma profunda crise, incapaz de se reconstruir e afetado pela desagregação da União Soviética, o Vietnã socialista teve que se repensar. Adotou medidas de abertura econômica, permitindo outras formas de propriedade. O velho modelo estava com os dias contados.
As famílias de Bat Trang puderam voltar a produzir e vender com liberdade. Os mais bem-sucedidos foram os Minh Hai. Seu pequeno negócio, no ano 2000, cresceu a ponto de se transformar em uma pequena empresa privada, a Minh Hai Ceramic. “Hoje faturamos 1 milhão de dólares por ano”, conta o gerente Nguyen Mạnh Hung, 34 anos, formado em administração. “Setenta por cento de nossa produção é para exportação. Empregamos 65 trabalhadores. Crescemos 20% ao ano”.
Um desses operários é a jovem Nguyen Thi Thanh, 24 anos. Casada, com uma filha de 10 anos, é a primeira pessoa de sua família a sair do campo. Nas épocas de plantio e colheita do arroz ainda ajuda os pais, mas sua vida começou a mudar. “Estou na fábrica há sete meses”, conta Thanh. “É a primeira vez que trabalho apenas oito horas por dia e tenho um salário”.
Ela estudou até o ensino médio e planeja fazer faculdade de contabilidade. Ganha apenas 1,5 milhão de dongs por mês (algo como 85 dólares). O chefe da fábrica, Hung, salário mais alto da empresa, recebe cinco vezes esse valor. Ambos estão convencidos, porém, de que a vida está melhorando.
A história de Bac Trang, dos Min Hai, de Thanh e Hung é um retrato do Vietnã atual. O país escolheu um modelo para se desenvolver que seus dirigentes chamam de “economia de mercado orientada ao socialismo”. Ao lado de pequenas empresas convivem companhias estatais, propriedades familiares, cooperativas e corporações estrangeiras. O Estado tem um forte papel regulador, mas os velhos métodos aprendidos com os soviéticos estão enterrados.
“A economia de mercado é produto da História, não uma invenção do capitalismo”, afirma Nguyen Viet Thong, secretário-geral do Conselho Teórico do Partido Comunista. “Para nós é um instrumento de desenvolvimento. Não se pode falar a sério em socialismo e igualdade com pobreza e atraso. Não abdicamos das ideias marxistas, ao contrário. Apenas julgamos que o igualitarismo não é o melhor caminho. Já o experimentamos. Foi um fracasso”.
Na primeira década do pós-guerra, o Vietnã quase sucumbiu. Asfixiado pelo bloqueio norte-americano e da maioria dos países europeus, convivia também com o ocaso da União Soviética e seus aliados. O custo da reunificação tinha sido muito elevado. Os empresários do sul, com seu capital, fugiram depois da vitória comunista. A política de coletivização geral da propriedade, abaixo do paralelo 17, repetindo a receita aplicada no norte, não era capaz de impulsionar a economia.
O país cresceu, entre 1976-1986, abaixo de 1% ao ano. Mais de 50% dos vietnamitas viviam na miséria, ganhando menos de 1 dólar ao dia. A produção agrícola, desorganizada, deixou a população de várias regiões sem ter o que comer. Centenas de milhares lançaram-se ao mar em barcos improvisados, desesperados pela sobrevivência. A nação heróica, que tinha vencido inúmeras guerras impossíveis, corria o risco de ser derrotada na paz.
Veio, então, a grande virada de 1986. Os comunistas, no sexto congresso de seu partido, decidiram aplicar uma política chamada dao moi (renovação, em vietnamita). A primeira medida tomada foi uma reforma agrária. Os camponeses, que compunham mais de 90% da população, receberam parcelas de terra em usufruto privado. Ganhavam também liberdade para plantar, vender e aplicar como quisessem o eventual lucro de suas atividades.
Logo essas reformas se difundiram para outros setores, como serviços e certos ramos da indústria. Os pequenos negócios se multiplicaram no país. Dentro de uma mesma família várias atividades passaram a se cruzar. Os camponeses capazes de extrair excedentes de sua produção começaram a construir casas de dois pisos nas cidades que abrigavam suas cotas de terra, quase sempre na margem das estradas. Viviam no segundo andar e abriam lojinhas ou artesanatos no primeiro.
Os filhos das famílias com menor produtividade agrária eram contratados pelas empresas recém-abertas. A indústria, impulsionada também por esse nascente mercado interno, entrou em uma etapa de florescimento. Mas a alavanca primordial veio da abertura de portas para o investimento estrangeiro. As reservas naturais do Vietnã, sua privilegiada posição geográfica e o baixo custo da mão de obra foram atrativos irrecusáveis para vários empresários.
Os resultados da política de dao moi provam que a pátria de Ho Chi Minh foi redesenhada. O produto interno bruto, entre 1990 e 1997, prosperou a uma média anual de 8%, um ritmo que seguiria ao redor de 7% até 2008. O Vietnã, mesmo com a crise mundial, cresceu 5,3% em 2009. Somente a China suplanta esse padrão de expansão econômica.
A pobreza extrema caiu, em 23 anos, para 12,3%. A taxa de desemprego não chega a 3%. A agricultura ainda emprega 51,8% dos vietnamitas, cujo lastro é a pequena propriedade familiar inferior a 3 hectares, mas não representa mais que 20,7% da economia. A fatia industrial é de 40,3%; a de serviços, 39,1%. Mais de 30 mil empresas foram criadas, com diferentes tipos de propriedade.
A queda relativa da produção agrícola deriva da rápida industrialização. O país é hoje o segundo maior exportador mundial de arroz, o maior de caju e pimenta negra, além de desempenho relevante na venda de chá, café, borracha e peixe. A fome rondava o Vietnã nos anos 1980. Hoje o país exporta comida.
Planejamento
O Estado ainda controla 45% da economia, através de empresas próprias ou em sociedades acionárias (nas quais geralmente os trabalhadores de cada companhia detêm 49% das ações, contra 51% que pertencem ao governo). O restante das formas de propriedade se divide entre privada, estrangeira ou cooperativa.
O poder público, além de predominar sobre setores estratégicos como o sistema financeiro, a produção de energia e a indústria militar, exerce a direção prática da economia. Qualquer projeto de investimento privado ou associativo tem que ser negociado com o Ministério do Planejamento, que determina a região e as demais condições de implantação do negócio, incluindo compensações ambientais e sociais.
“Quando ressaltamos nossa orientação ao socialismo, estamos definindo que a lógica de nosso modelo é determinada pelo controle social sobre a acumulação de renda e riqueza”, afirma Thong. “Não somos uma economia de livre mercado. O papel do Estado é colocar os métodos capitalistas a serviço do desenvolvimento, do combate à pobreza e do enriquecimento dos vietnamitas”.
Não é um caminho fácil. O Vietnã sofre das dores de parir um crescimento tão acelerado. Os problemas de corrupção, tráfico de drogas e contaminação ambiental alarmam seus dirigentes. A taxa de inflação, atualmente mais domesticada, chega perto de 8%. A balança comercial registra déficits crescentes, pois o país exporta cerca de 57 bilhões de dólares em produtos agrícolas e de baixo valor agregado, mas importa 70 bilhões de dólares em máquinas e equipamentos para garantir seu desenvolvimento. O rombo só é coberto porque os investimentos internacionais continuam a trazer divisas.
Novos ricos
O desequilíbrio comercial também se explica pelo consumo cada vez maior de bens luxuosos, adquiridos pelos novos ricos vietnamitas, que o governo busca sustar com elevação de taxas e impostos. Mas esse quadro é revelador de que o país, hoje mais desenvolvido que no período anterior, é também mais desigual.
“A desigualdade não nos assusta. É possível atenuá-la com a intervenção do Estado”, diz Thong. “Uma certa diferenciação social é inevitável em nosso modelo, e até positiva. O estímulo material é uma força propulsora do crescimento. Quem produzir mais e melhor, deve ganhar mais e viver melhor”.
Muitos comunistas ortodoxos se assustam com a posição dos vietnamitas. Não são poucos que insinuam um suposto abandono das ideias socialistas. Pode ser. Mas também não faltava quem, durante a guerra contra franceses e americanos, achasse absurda a estratégia de enfrentar exércitos poderosos com armas de caça, emboscadas na selva e deslocamento de tropas debaixo da terra.
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Leitor da Veja ataca Lula na internet
Reproduzido do sítio Conversa Afiada
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O mais plebeu dos barões
No dia 14 de maio, às 19 horas, será lançado em São Paulo o Centro de Estudos da Mídia Alternativa “Barão de Itararé”. O nome é uma homenagem a um dos criadores da imprensa alternativa no país e o “pai do humorismo brasileiro”. Reproduzo abaixo a singela biografia redigida pelo jornalista e cartunista Gilberto Maringoni, publicada na Revista de História da Biblioteca Nacional:
- O que o senhor deseja?
- Trabalhar no seu jornal.
- E o que o senhor sabe fazer?
- Tudo, desde varrer o chão até dirigir o jornal, mesmo porque não há muita diferença.
Testemunhas desse diálogo, acontecido em meados de 1925 na redação de O Globo, no Rio de Janeiro, garantem que um dos protagonistas era o diretor da empresa, Irineu Marinho. As mesmas testemunhas dividem-se quanto à identidade de seu interlocutor. Algumas dizem tratar-se de um gaúcho baixo, um tanto rechonchudo, e muito abusado, chamado Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly. Outros juram ser aquele nada mais, nada menos que o ilustre fidalgo Barão de Itararé, o Brando, senhor feudal de Bangu-sur-Mer.
É possível que os primeiros tivessem mais razão, por um pequeno detalhe. O Barão de Itararé só chegaria ao mundo seis anos depois. Já Apparício nascera em 29 de janeiro de 1895, no Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o Uruguai. A imprecisão do local tem sua razão de ser. Ele próprio conta: “Minha mãe queria ter o parto na fazenda do meu avô”, em Pueblo Vergara, no país vizinho. Ela e o marido saíram da cidade de Rio Grande de barco, até Artigas. “De lá até a fazenda viajaram de diligência. No meio do caminho, uma das rodas se partiu e houve um tremendo choque. Com todo aquele barulho e movimento, nada mais natural que eu me apressasse a sair, para ver o que se passava”.
O Barão só viria à luz bem mais tarde, no ano seguinte da Revolução de 1930. O nome foi dado em homenagem a um dos episódios mais dramáticos dos conflitos entre as tropas legalistas, de Washington Luís, e as forças leais a Getúlio Vargas, que subiam do Rio Grande do Sul em direção ao Rio de Janeiro. A cidadezinha de Itararé, no sul do estado de São Paulo, se desenhava como o palco da mais sangrenta batalha na disputa pelo poder. Rota natural para a Capital Federal, todas as suas casas foram evacuadas e tomadas pelas tropas da Força Pública paulista, no início de outubro de 1930. Os batalhões rebeldes, liderados pelo ex-comandante da Coluna Prestes, Miguel Costa, com maior efetivo, cercam o lugar por mais de duas semanas, à espera do melhor momento para atacar. No dia marcado para o confronto, chega a notícia de que Washington Luís fora deposto. A batalha de Itararé jamais aconteceu.
Pacifista e acompanhando a situação com humor, Apparício aproveita para se autoconceder o título de duque de Itararé, logo rebaixado para barão, “como prova de modéstia”. Assim, as duas personalidades passaram a conviver numa só pessoa, um dos mais criativos e irreverentes humoristas de que o Brasil tem notícia, um “herói que a Pátria chora em vida e há de sorrir incrédula quando o souber morto”, segundo suas próprias palavras.
Mas voltemos a fita. Quando trava aquele diálogo com Irineu Marinho, o jovem Apparício havia abandonado há pouco seus estudos de medicina na capital gaúcha – onde já se dedicava ao jornalismo – e se aventurava pela então sede da República. Para sua surpresa, é admitido em O Globo, no qual assina uma crônica por alguns meses, sob o pseudônimo de Apporelly.
Depois de passar por A Manhã, de Mario Rodrigues, Apparício junta dinheiro para lançar seu próprio jornal, em 13 de maio de 1926. O nome é uma óbvia gozação com o diário do pai do dramaturgo Nelson Rodrigues: A Manha. Sob o dístico “quem não chora não mama”, o Barão fez uma verdadeira revolução no jornalismo de humor brasileiro, superando as já gastas fórmulas das revistas O Malho, Careta e Fon-fon, lançadas na primeira década do século.
Enquanto as três praticavam um gênero de sátira política e de costumes bastante comportados – apesar de contarem com a colaboração de caricaturistas geniais, como J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto Cordeiro – Apporelly voltava-se contra o lado conservador da sociedade. Demolindo falsos mitos, tripudiando sobre a pompa de fraque e casaca do mundo político, Itararé praticou um gênero de humor que buscava laços com quem estava por baixo na sociedade.
A Manha, tablóide que alcançava quase todo o país, torna-se um sucesso editorial, num tempo em que não existiam pesquisas de opinião, estratégias de marketing ou verificação de circulação. Era “o único quinta-feirino que sai às sextas”, alardeava seu editor, fazendo troça das dificuldades de produzir praticamente sozinho o jornal inteiro. Graficamente, além de apresentar desenhos de Nássara, Mendez e Martiniano, A Manha publicava colagens e fotos retocadas de políticos e personalidades, numa molecagem editorial que os expunha ao ridículo a cada edição. A contrapartida era clara: ao contrário da maioria dos órgãos de imprensa, a folha de Apparício não recebia nenhum tipo de verba governamental.
As notícias primavam pelo absurdo. “A Manha propõe a regularização dos horários dos desastres da Central do Brasil”, “Foi admitido nos quadros de redatores desta folha o simpático senador Lauro Müller, general de divisão e profundo conhecedor das outras três operações de guerra – adição, multiplicação e subtração” e “O dia é hoje consagrado a Tiradentes, uma das grandes vítimas da política mineira” são exemplos de que os disparos verbais de seu editor quase não tinham limites.
Na edição de 5 de julho de 1930, ao comentar o manifesto de Luiz Carlos Prestes aderindo ao comunismo, A Manha assegurava que “as teorias explanadas pelo chefe revolucionário estão muito aquém das idéias vigorosas e radicais predicadas e praticadas pelo talentoso homem de letras que está à frente desta empresa”. O jornal classificava de "ridícula, simplesmente ridícula" a parte do manifesto que reivindicava a redução da jornada de trabalho para oito horas, perguntando “por que não pleiteia, como nosso chefe, a abolição completa do trabalho?”
A irreverência do Barão levou-o inúmeras vezes à cadeia, após a chegada de Getúlio ao poder. A primeira delas se deu em 2 de setembro de 1932 e durou apenas um dia. Mas inauguraria uma série de agressões que se repetiriam pelos anos seguintes. Se ainda não era um homem claramente de esquerda, o Barão, por essa época, já exibia sua forte ojeriza ao integralismo, movimento de extrema-direita que se espelhava no fascismo europeu.
Em outubro de 1934, o editor d’A Manha partia para uma nova empreitada. Juntamente com Aníbal Machado, Pedro Mota Lima e Osvaldo Costa, lança o Jornal do Povo. As tensões políticas se acentuavam. Em São Paulo, no dia 7, integralistas e comunistas haviam se enfrentado numa batalha campal na Praça da Sé. Quatro dias depois, vários militantes aqui radicados há anos são expulsos do país. No meio desse torvelinho, o novo diário sobrevive por dez dias. A publicação de uma série sobre a Revolta da Chibata (1910), dos marinheiros no Rio de Janeiro, foi o que bastou para o Barão ser seqüestrado e espancado por seis oficiais da Marinha. Após cuidar dos ferimentos, ele volta para A Manha. Coloca na porta a tabuleta: “Entre sem bater”.
Cada vez mais simpático ao Partido Comunista do Brasil (PCB), o “talentoso homem de letras” é preso novamente em dezembro de 1935. A acusação é ser fundador e militante da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente política liderada pelos comunistas. Agora a repressão é dura: são encarcerados, também, centenas de militantes e simpatizantes do PCB, como o escritor Graciliano Ramos, a cronista Eneida de Moraes e o jornalista Moacir Werneck de Castro, além de Luiz Carlos Prestes, sua esposa Olga Benario e boa parte da cúpula do partido.
O Barão foi interrogado pelo juiz Castro Nunes, da Vara Federal, na Polícia Central, que lhe perguntou a que atribuía sua prisão.
– Tenho pensado muito, excelência, e só posso atribuí-la ao cafezinho.
– Ao cafezinho?
– Vou explicar, excelência. Eu estava sentado num bar, na avenida Rio Branco, tomando meu oitavo cafezinho e pensando em minha mãe, que sempre me advertia contra o consumo excessivo do café. Nesse momento chegaram os policiais e me deram voz de prisão... Só pode ter sido isso, por eu ter desobedecido aos conselhos de mamãe.
Apesar do humor, a situação era séria. Vários presos foram barbaramente torturados. Olga Benario seria entregue aos nazistas. Graciliano recorda-se do Barão em numerosas passagens de seu Memórias do Cárcere como um companheiro afável e bem humorado. A Manha, por motivos evidentes, deixa de circular. Por um ano seu editor permanece encarcerado, sem culpa formal.
Quando volta às ruas, percebe que os tempos andam difíceis. No plano pessoal, Itararé havia perdido sua esposa, pouco antes da prisão, vítima de câncer. No mundo à sua volta, avançava o nazi-fascismo na Europa e o regime lançava as bases para um endurecimento. Mesmo assim, tentou relançar A Manha, que circula precariamente em 1937. No fim daquele ano, Getúlio dá novo golpe e instaura a ditadura do Estado Novo, com suspensão de direitos constitucionais, banimento dos partidos políticos e censura à imprensa. Para o nosso humorista, esse era apenas “o estado a que chegamos”.
Tentando sobreviver, mantém uma crônica regular no Diário de Notícias por seis anos. Evita provocar a direita enquanto dura a colaboração, voltando suas baterias para temas mais amenos. Algo mudara radicalmente no Barão desde que saíra da cadeia. Era sua aparência. Agora exibia uma vasta barba, precocemente grisalha, o que lhe dava ainda mais aparência de um nobre dos tempos da monarquia. Sua figura fica ainda mais popular.
Em abril de 1945, A Manha é relançada. Aproveitando-se do clima de mobilizações populares pelo fim do regime ditatorial, contando com a sociedade do político Arnon de Mello (pai de Fernando Collor de Mello) e a colaboração de intelectuais como José Lins do Rego, Marques Rebelo, Rubem Braga, Raymundo Magalhães Júnior e outros, o sucesso é ainda maior que na fase anterior. Quem escrevia e editava a maior parte das matérias, além de fazer a direção de arte, era mesmo o ilustre fidalgo, que por seu talento, chegou a ser chamado de o "Bernard Shaw do Brasil", em referência ao dramaturgo inglês. “Seria mais lógico que se considerasse a Shaw como o Itararé da Inglaterra”, respondeu nossa ilustre figura.
Suas posições políticas o aproximam do PCB. Depois de participar ativamente da campanha presidencial do comunista Yedo Fiúza, em dezembro de 1945, o Barão candidata-se a vereador pelo Distrito Federal. Na ocasião, duas denúncias inquietavam a população: a constante falta d´água e as adulterações no leite. O slogan da campanha não poderia ser mais certeiro: “Mais água, mais leite, mas menos água no leite”. Ainda candidato, seu primeiro ato foi promover seus cabos eleitorais a sargentos. É eleito com relativa folga.
Na Câmara Municipal, o Barão caracteriza-se como um parlamentar combativo e espirituoso na defesa dos interesses da população pobre. Divide seu tempo entre o legislativo e a direção d´A Manha, o que significa uma jornada exaustiva. Mas sua carreira parlamentar dura pouco tempo. Influenciado pelos ventos da guerra fria, o Tribunal Superior Eleitoral suspende o registro do PCB, em maio de 1947. Sete meses depois, todos os parlamentares do partido são cassados, incluindo Itararé.
Nesse meio tempo, apesar da grande aceitação popular, seu jornal não ia bem das pernas. Sem capital e estrutura empresarial para garantir a regularidade, A Manha é novamente suspensa, em 1948. Mas o último nobre da República não desiste e logo vem com mais uma novidade. Chama seu antigo colaborador, o artista gráfico paraguaio Andres Guevara, para lançar o primeiro de seus Almanhaques, em 1949. Aproveitando o sucesso que faziam os almanaques populares com dicas, conselhos e curiosidades astrológicas, o Barão acrescenta à fórmula seu humor anárquico. Essa edição traz logo na abertura uma biografia da impoluta personalidade, cuja “vida pública é uma continuidade da privada”. Ali ficamos sabendo que Itararé, “cioso como ninguém da pureza de sua estirpe, é o único nobre do mundo que, pelo menos uma vez por mês, injeta, por via endovenosa, uma certa quantidade de azul de metileno, para manter inalterada a cor da nobreza do sangue”.
O que era para ser uma publicação semestral só voltou a circular por duas vezes, em 1955. Aos 60 anos, cansado, o Barão colabora por algum tempo na Última Hora, de Samuel Wainer. Quando vem o golpe de 1964, com a volta da repressão, cassações e prisões, Apparício vê repetir-se um filme já conhecido. “Esse mundo é redondo”, dizia ele, “mas está ficando chato”.
Nos últimos anos, Itararé torna-se um recluso em seu apartamento no bairro de Laranjeiras. Lê vorazmente e estuda matemática, biologia e eletrônica, paixões desde a juventude. Cercado de livros, vivia também rodeado de baratas, tratadas por ele como “companheiras”, por terem exercido tarefas importantes nos tempos de cadeia, levando amarrados nas costas papeizinhos com mensagens para seus colegas de cárcere. Com a saúde abalada e só – sua quarta mulher se suicidara anos antes e seus filhos não moravam com ele – Apparício Torelly morre em casa, aos 76 anos, em 27 de novembro de 1971. Era o fim do herói de dois séculos”, como se autodenominava, parodiando o revolucionário italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882), que lutara em seu país, no Brasil e Uruguai, conhecido como “o herói de dois mundos”.
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