sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

China e estratégias para enfrentar a crise

Por Lecio Morais, no blog de Renato Rabelo:

Nesta semana as bolsas chinesas tiveram nova queda expressiva e o banco central chinês fez nova intervenção de liquidez. O banco central renovou por mais 7 dias a operação da semana anterior, mantendo no mercado US$ 12,2 bilhões, e emprestando por 28 dias mais 39,7 bilhões de dólares.

Estes episódios na bolsa, bem como as intervenções do banco central chinês, alimentam previsões de novo aguçamento da crise iniciada em 2008. Dentre essas previsões, destacou-se o relatório alarmante de crash iminente do banco britânico RBS. [1]

Não é minha pretensão realizar exercícios de previsão. O que quero expor é uma hipótese de como as diversas estratégias geopolíticas dos principais estados do mundo vêm se confrontando e determinando o desenrolar da crise, desde 2008.

Minha hipótese é que, a partir de 2008, incorporou-se aos objetivos geopolíticos dos principais estados do mundo a necessidade de preservação de seus capitais da destruição que a crise capitalista sempre desencadeia (por desvalorização ou insolvência). Na concepção marxista, a destruição de capitais é característica da crise e condição necessária a uma nova expansão. Além de uma afirmação teórica, a ocorrência de destruição de capitais durante uma crise, em especial numa grande crise, é um dado histórico bem estabelecido.

A estratégia e os instrumentos utilizados pelos estados para preservar seus capitais se dá de forma diferenciada, de acordo com sua força e posição, bem como com o estágio de sua economia, em especial a importância que nela ocupa o capital financeiro e produtivo.

Minha análise tratará da estratégia geopolíticas dos quatro principais estados do mundo, aqueles que possuem bancos centrais mais relevantes. Os do centro hegemônico, liderados pelos EUA, e integrado também pelo Japão e o quase-estado da União Europeia (EU). E em outro polo, o estado chinês.

Vou examinar o objetivo principal que parecem ter as diferentes estratégias e onde elas se confrontam de modo a tornar ineficazes, ou mesmo inúteis, as medidas de ultrapassar a crise por meio de políticas monetárias e comerciais, estendendo sua duração.

A estratégia americana e do centro capitalista hegemônico à crise

Sempre considerei a saída da crise promovida pela superliquidez do FED contraproducente com a dinâmica do capitalismo. Embora tenha permitido que parte de seu capital produtivo tivesse reduzido seu valor ou mesmo falido, o FED empenhou-se de forma inédita em priorizar o salvamento do valor da enorme massa de seu capital financeiro, bem como daqueles de origem externa que lá se domiciliam, passando a pagar tributos ao estado americano.

O FED emitiu uma montanha de dólares para garantir a compra de papéis financeiros que passaram a valer muito pouco ou mesmo nada, o que garantiu o funcionamento do mercado. Também reduziu suas taxas de juros a quase zero, mantendo elevado o valor desses capitais. Com o sistema financeiro de novo funcionando após o 15 de setembro de 2008, Wall Street permaneceu ditando a principal taxa de juro no mundo e alimentando o valor desses capitais. Por essa razão, a gigantesca massa de capital financeiro dentro dos EUA [2] está maior do que era em 2008, apesar do longo período da crise e da tendência mundial à estagnação.

O FED abusou e abusa de sua posição de emissor da moeda internacional, uma moeda sem nenhuma limitação seja de lastro ou qualquer outra, já que é o mercado doméstico americano que determina seu valor frente às demais moedas conversíveis. A promoção de desvalorizações cíclicas do dólar prejudica as exportações de outros países, o que tem como consequência a desvalorização de seus capitais.

Esta é uma das formas dos EUA transferirem para o resto do mundo sua (enorme) cota de destruição de capitais, mesmo às custas de um enorme custo fiscal, em especial, pelo valor inédito da dívida federal e pela insolvência de estados como a Califórnia e de muitas cidades grandes ou pequenas.

Seguindo os EUA: União Europeia e Japão

A Eurolândia (a Alemanha e o resto) e o Japão foram obrigados a seguir também a estratégia americana, compraram os títulos financeiros desvalorizados e baixaram também suas taxas de juros. O Japão que já vinha desde 1990 com taxas muito baixas, tornou-as negativas.

Sendo detentores em seu território de grande volume de capital financeiro, a política do FED obrigou-os a priorizar também o salvamento de seus capitais financeiros. Mas houve um motivo defensivo para seguir o FED. Caso não protegessem sua riqueza financeira, a UE e o Japão poderiam vê-la migrar para as praças dos EUA e para a proteção do FED, o que os sujeitava ao risco de permanecer no condomínio do poder hegemônico americano. Em consequência, passaram também a empurrar para longe deles a destruição de capitais.

Com isso, mais e mais capitais sob a forma financeira ficaram abrigados no centro hegemônico, protegidos em seu valor pelos respectivos bancos centrais. O resultado deste “seguro” contra a destruição destes capitais foi empurrar a crise para diante. E pressionar para que destruição necessária de capital seja transferida para o resto do mundo.

Mas tanto o Japão como a União Europeia (EU) não puderam aplicar a estratégia do FED em toda sua extensão.

Para os EUA, por incrível, os reflexos internos da crise foram relativamente mais benignos do que vem acontecendo, em especial, na Europa. Eles puderam manter ainda boa parte de sua demanda interna sem maiores problemas, pois podem continuar elevando seu déficit externo de pagamentos. Também para seguir rolando seu déficit externo, basta emitir dólar, como, aliás, vêm fazendo desde a década de 1970.

Outra vantagem dos EUA é que o corte necessário de gastos governamentais vem sendo bem menor do que o exigido da maioria dos países membros da EU para alcançar o equilíbrio fiscal. Ainda mais porque a situação fiscal é condição de existência do euro. Problema que obviamente os EUA não têm. Isso vem fazendo com que para os outros países do centro hegemônico, em especial para a União Europeia, a estratégia venha saindo econômica e politicamente mais cara.

Da mesma forma, o Japão teve de manter sua estagnação, que já se estende desde a bolha imobiliária de 1990, e a UE impor sua tristemente famosa política de “austeridade”. Em troca mantêm sua massa de capital financeiro relativamente intocável e a EU não perde sua moeda regional, uma perda a que a própria união regional não sobreviverá.

Em seu conjunto, a estratégia do “centro hegemônico” tem feito crescer, e não diminuir, a superacumulação de capitais sob a forma financeira.

Qual a estratégia da China?

Diferente dos países do centro, o poder que a economia traz à China está na sua incomparável produtividade que a vem transformando em “fábrica do mundo”. Um diferencial que decorre das características de sua força de trabalho, do seu planejamento estatal e da sua trajetória histórica muito específica. O poder geopolítico dado por sua economia está assentado principalmente em seu capital produtivo, não no financeiro. [3] E sua força depende de manter sua expansão, mesmo que a taxas de crescimento menores.

Crescer e expandir é sua estratégia diante da crise. A diferença é que cresceu seu interesse por expandir o mercado interno para fortalecer sua demanda como forma de prevenir-se da queda da atividade nos mercados externos.

Na crise, os mercados externos passaram a trazer desafios concorrenciais tremendos. Mas trazem também boas oportunidades de aquisição de capitais em desvalorização.

O mercado interno é uma forma mais segura de realizar acumulação, já que seu acesso e regulação dependem do próprio estado nacional. Mas, a expansão pode ser mais lenta. Um dos problemas é ter o estado de prover todas as condições ao mercado de uma forma também acelerada, especialmente crédito. Em especial porque o consumo interno é relativamente muito pequeno.

A compensação a perdas no mercado externo é um forte desafio. O problema não é faltar consumo, o nível de pobreza na China ainda é alto e sua população mais longe dos centros dinâmicos internos é imensa. O problema é existir renda disponível de modo a sustentar uma demanda solvente, capaz de comprar. Não é possível elevar rendas de salários, por exemplo, em poucos anos. Seria insuficiente.

A solução é a expansão do crédito que significa antecipar para o presente o crescimento mais lento da renda futura, que, no final, pagará os créditos do passado e se recomeça um novo ciclo de crédito. O problema é que quanto maior for o volume de crédito, maior é o risco da receita futura não se cumprir, criando inadimplência e interrompendo o crescimento.

O entrechoque das estratégias

Para o centro hegemônico, a estratégia chinesa de proteger capitais produtivos significa, de fato ou potencialmente, elevar a superacumulação mundial relativa que desencadeia a crise. Pode acontecer também que o esforço de expansão chinesa de manter seus mercados externos traga consigo uma queda ininterrupta de preços, deflagrando um processo de deflação que vem a ser o terror dos capitalistas.

A queda dos preços destrói o lucro e o capital sai de circulação, refugiando-se no entesouramento. É uma fase catastrófica da crise capitalista, mas a última vez que isso ocorreu foi na crise da década de 1930.

Para a China, como para a maior parte do mundo, é a preservação e o crescimento da massa de capital financeiro no centro capitalista a fonte da estagnação e da instabilidade financeira que se vive.

Este, a meu ver, é o impasse que prolonga a crise e que pode trazer uma tensão cada vez mais forte entre o centro capitalista e a China e, atrás deles, o resto do mundo.

Em um primeiro momento, até 2010, a expansão da China manteve a demanda global de bens primários e intermediários, impedindo a “necessária” redução de capitais tanto na China como na periferia do sistema capitalista. Isto que permitiu à China fortalecer sua posição geopolítica e facilitando sua liderança na periferia.

Por essa razão, nota-se, desde 2013, as reclamações cada vez mais insistentes de que os chineses estão a promover uma deflação no mundo.[4]

Porém, o comércio externo da China sofreu um forte freio em 2011, e passou a desacelerar. A força do centro hegemônico como consumidor e como controlador das principais rotas e preços do comércio de commodities se afirmou. O alto crescimento chinês perdeu fôlego, como a estratégia chinesa já devia prever, embora talvez não tão rápido, e a economia da periferia passou à estagnação ou à depressão.

Desde então, a estratégia chinesa foi flexionada, aparentemente acelerando o crescimento para dentro, visto que a perspectiva externa se arruinou rápido enquanto a produção dos investimentos do passado chegava ao mercado. Embora sem abandonar a pressão sobre os mercados externos (não há espaço para este luxo).

A China em uma posição mais fraca?

A meu ver, a aceleração da “interiorização” da expansão aconteceu com a China em uma posição mais fraca do que aquela do imediato pós-2008. Não só a interiorização tem que substituir mais rapidamente a deficiência da exportação como a própria economia chinesa passou também a enfrentar uma aparente superacumulação (o “excesso de capacidade”). Um caso mais evidente na sua indústria pesada, como a siderúrgica e no setor imobiliário.

A aparente superacumulação relativa na indústria imobiliária é particularmente preocupante por ela está ligada à expansão do mercado interno. É também o setor que vem assumindo a ponta desta expansão. Em 2014, por exemplo, o setor imobiliário foi o que maior contribuição deu ao crescimento do PIB. E é ele que aparece, desde 2015, como o foco da crise do mercado acionário chinês.

Os problemas do setor imobiliário devem estar ligados a emissão maciça de crédito e um aumento da inadimplência. Dificuldades que vêm se somar a conhecida presença de shadow banking na economia chinesa já a mais tempo.

Neste momento, a estratégia chinesa teve seu risco aumentado. Ainda mais porque a continuidade da queda de preços de exportação deve estar a pressionar para baixo a expectativa das taxas de lucro.

Por outro lado, para fortalecer sua posição financeira no mercado monetário internacional, a China tem desenvolvido um esforço premente para internacionalizar o yuan. O primeiro passo à integração do yuan na cesta de moeda do DES, a unidade de referência monetária do FMI.

A problema é que este primeiro passo teve um preço. Foi necessário a China concordar em abrir, mesmo parcial e limitadamente, canais para uma maior liberdade de movimento para capitais, bem como afrouxar a regulação para a entrada de capitais em seu mercado bursátil e financeiro. O que se constitui, certamente, uma maior exposição à transmissão da política monetária americana para a economia chinesa.

Se ocorrer novo crash de liquidez nos mercados financeiros, a crise pode, de novo, se aguçar. Até agora, os dois países que melhor vêm se saindo na crise são os EUA e a China. Porém o balanço de forças continua muito instável e a crise não dá mostra de caminhar para uma solução. E a disputa estratégica sobre quem sairá perdendo ao seu final está, ao que parece, longe de acabar.

* Lecio Morais é economista e mestre em Ciência Política. Atua como assessor técnico na Câmara dos Deputados.

Notas:

[1] Ver: Sell everything ahead of stock market crash, say RBS economists

[2] Os mercados de Wall Street negociam mais de 50% da riqueza financeira do mundo. O volume operado na City londrina, a segunda maior do mundo, é apenas um terço da de New York.

[3] O volume do capital financeiro chinês é relativamente pequeno, especialmente quanto ao capital de grande liquidez – sob a forma de títulos e securities. Embora possuísse, em 2010, um capital financeiro superior a 270% de seu PIB, quase metade dele é de empréstimo bancário, sob a forma de contratos não negociáveis, o que reduz fortemente o volume de capital líquido circulante.

[4] Ver: “Excesso de capacidade da China amplia efeitos da deflação em todo o mundo”.

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